segunda-feira, janeiro 15

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

 

1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, dá para comparar com a Standard de James Strachey, traduzida do inglês para o português; com as “Obras incompletas da Editora Autêntica” traduzida do alemão. Não será obrigatório ter as coleções, embora desejável.

2 – Do estudo: entendemos que um grupo de estudos não é seminário; é formador, mas não é escola de formação – é uma formação contínua; grupo de estudos não é uma aula; o que faremos é uma coordenação da leitura. Seremos um guia, mas a experiência é pessoal. Não será fornecido certificado, por não ser estudo formal.

3 – Do programa: pode acontecer de não conseguirmos seguir o programa abaixo, por razão de algum tema que precise de mais horas para estudarmos. Neste caso, vamos adiando os outros textos, mantendo a sequência, o que pode atrasar o cronograma abaixo apresentado.

4 – Do método: leremos em casa, com nossos próprios recursos intelectuais, o texto do encontro seguinte. Faremos anotações das nossas dúvidas e as traremos para o grupo. Pode ser só a questão, com o número de página e a edição, para que possamos seguir o fio da discussão.

5 – Dos grupos: com poucas pessoas, as questões serão em pequeno número o que garantirá que nos debrucemos sobre as dúvidas que certamente acontecerão.

6 – A quem é indicado: a estudantes, profissionais e interessados em Psicologia, Psiquiatria, Filosofia, Antropologia, Sociologia e Humanas em geral.

Programa:

Grupo 1 – quartas feiras das 16:00h às 17:45h – o grupo iniciará o ano com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e Análise fragmentária de uma histeria (o Caso Dora) – Companhia das Letras – Vol. 6 (1901-1905) e encerrará com Totem e tabu em dezembro de 2024. Início: 07/02/24; término: entre primeira e segunda semana de dezembro.

Grupo 2 – terças feiras das 09:00h às 10:45h. O grupo iniciará com os “Estudos sobre a histeria”. Se houver necessidade de voltarmos a textos anteriores (1890-1892) faremos isso sem nos determos porque os textos sobre a histeria são suficientes para mapear as ideias de Freud. Encerraremos o ano com Psicopatologia da vida cotidiana. Início: 06/02/24; término: entre primeira e segunda semana de dezembro.

Grupo 3 – quartas feiras das 08:00h às 09:45h. Início: 07/02/24. Programa: idem acima.

Grupo 4 – quartas feiras das 10:00h às 11:45h. Início: 07/02/24. Idem acima.

Valor: pelo telefone 35-998409292 (WhatsApp).

Encontros ONLINE. 
Foto: Freud, desenhado por Salvador Dali

sábado, janeiro 5

Fragmentos de discursos do amor - Pros&arte - roda de conversas

Gaia em feltragem de Sandra Sgarbi
Pelo menos entre as línguas do tronco indo-europeu e mesmo muitas outras línguas que pouco devem a este tronco linguístico, como o chinês, os fonemas "m" e "a" unidos um ao outro carregam os sentidos de "mãe" e de "amor". E há uma ressonância linguístico-fonética entre o murmurar da criança, seu “m...m...m...m..” ou com sua mumunha, no sentido de manha, que por sua vez tem a ver com mãe. Se não passar como tese linguística, ainda assim lembramos que mãe, mamis, mama (inclusive o seio), manhê, mother, mater, material, matrix, matrka (fluido e matéria em sânscrito), matricial, mundo e outras derivadas destas, são muito provavelmente corruptelas, desvios ou deslizes semânticos e/ou gráficos deste "ma" e "am".
    Este vocábulo "am" é, possivelmente, a origem indo-europeia da palavra latina "amor", que ajuda a formar várias palavras do latim, normalmente ligadas a crianças ou ao cuidado com crianças. É o caso da palavra amita, que significa "tia" e mater, que significa "mãe". Há estudiosos insistindo que na raiz do verbo que designa amor em latim está impressa a ideia de plantar, semear. A união íntima entre um homem e uma mulher simbolizaria esse semear, plantar-se no outro. Atualmente, a palavra amor possui diversas acepções, desde a ideia de adoração e devoção, inclusive a deuses, até a atração baseada na pulsão sexual. A expressão “fazer amor”, por exemplo, substitui a expressão “fazer sexo”. Há ainda a possibilidade de que a palavra amor seja a antítese de morte, algo como “amors” ou amorte.
    Não parece por acaso que a palavra "mãe", é usada para designar um estado que é o do amor - de um lado "ma" e do outro "am". Do latim, amare, amor, na língua portuguesa, a palavra amor permaneceu com a mesma grafia usada originalmente (amare, amor) para apontar o sentimento de gostar de algo ou alguém, sentir afeição, desejo ou preocupação. “Gostar” de alguém se refere ao quanto é gostoso estar com alguém ou degustá-lo, saboreá-lo, portanto amor pode ser um encontro bem primitivo com o objeto de fruição… um encontro da boca com o corpo, do olhar com a imagem, dos ouvidos com os gorjeios do prazer.
    Se nos ativermos a linha do tempo na tradição greco-romana, vemos que Eros é o deus do amor, ou mais exatamente deus-amor. Hesíodo, no século VIII a.C escreveu a Teogonia, um épico em que vemos a mais antiga referência a Eros, que subsistiu até nossos tempos. Para o autor o universo se fez a partir do Caos (Káos), do vazio essencial, do espaço incomensurável de matéria eterna e rudimentar, massa confusa na qual se confundiam os princípios (as propriedades ou tendências) de todos os seres. Do Caos surgiram os deuses primordiais; primeiro Geia, Gaia ou Vesta, nomes da Terra – a sagrada mãe universal de todos os seres, origem de tudo. Das entranhas da terra, nasceu o inferno Tártaro, deus invisível. Por fim surge da mãe, Eros o deus Amor, o mais belo dos deuses, responsável pela união entre todos os seres, aquele que possibilita a procriação de tudo que há no universo.
    Os filósofos que antecederam Sócrates e Platão tinham preocupações em explicar o que é o ser, ou  matéria, ou universo, ou a vida. No entanto, alguns tentaram se haver com Eros e definir o amor. Empédocles de Agrigento (490-435 a.C.) introduziu nas querelas sobre o que é o universo e porque as coisas e o homem existem, dois princípios cosmogônicos: Filia - atração, junção, um, unidade, homogeneidade, fusão, casamento e Neikos - repulsão, disjunção, múltiplo, dois, desunião, heterogeneidade, difusão, divórcio. Aristóteles, mais tarde, citando-o, diz: “[os elementos água, ar, fogo e terra] que são eternos é que mudam aumentando ou diminuindo mediante mistura e separação; mas os princípios propriamente ditos, pelos quais são movidos, são Filia e Neikos […] ora misturados pelo Amor, ora separados pelo Ódio”. Citado por Simplicio: “E estas coisas, mudando constantemente, jamais cessam, ora por Amizade convertida em um todas elas, ora de novo divergidas em cada [um] por ódio Neikos". “Afrodite” “Amizade e inimizade” “semelhança e diferença”, são outros termos que Empédocles usa para falar da dialética amor/ódio. Nietzsche o examina: “Nesse mundo de discórdia, de sofrimento e de conflito, ele só descobre um princípio que lhe garanta uma ordem do mundo inteiramente diferente: é Afrodite; todos a conhecem, mas não como princípio cósmico. A vida sexual lhe parece o que há de melhor e de mais nobre, a mais forte resistência ao instinto de discórdia. […] aquilo que se pertencia, foi separado e aspira a se reunir. A Philía quer triunfar sobre o império de Neikos; ele a chama Philotes, Storge, Cypris, Aphrodite, Harmonia”. 
     Este pré-socrático não parece interessado em definir amor e ódio em termos de valoração moral. Ou pelo menos isso é secundário em seu pensamento. Quando se refere a Filia e Neikos parece entender com isso apenas a atração e repulsão responsáveis por manter todos os elementos em interação. Há uma harmonia entre os dois princípios do universo quando um supera o outro temos a desarmonia, sendo porém impossível o equilíbrio de forças. O amor absoluto reduziria tudo a pó e o ódio absoluto idem. Ambos precisam um do outro para funcionar; um subsiste ao outro indefinidamente.
    Seria Demócrito de Abdera (460-370) a qualificar, valorar moralmente o amor, ainda que de passagem. E por isso estabelece que “é amor reto desejar sem desmedida as coisas belas”, ou seja, é amor o desejo às coisas belas, desde que não exagerado; é amor louvável aquele que advém de um desejo correto; e desejo adequado é aquele que não é desvairado. Desejar de modo comedido as coisas belas é amar. E que seriam as coisas belas para um pré-socrático, um homem do seculo IV a. C.? Pois é, aí se entra no terreno das valorações; terreno pantanoso, difícil. Na época tinha a ver com discursar na Ágora, lutar uma luta justa, amar a cidade, cultivar a filosofia.
    De algum modo, Demócrito entrou na seara da língua, e foi ele quem se ocupou com a origem de algumas palavras, entre elas "mulher"; Genuíno Magno afirmou: "Segundo Demócrito, a palavra mulher é derivada de semente". Daí que isso nos leva a mãe Geia, que contem a semente de toda vida.
    Pouco depois dos pré-socráticos, foi Aristófanes, n'O Banquete, quem se arriscou a dizer que é "ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor". Para ele o amor é a procura do todo que, por conseguinte, nos falta, e nos causa desejo; amar é desejar ser uma totalidade, união, uno; portanto amar é buscar preencher um vazio com um objeto de desejo.
(As referências aos pré-socráticos e a Sócrates são encontráveis na coleção Os Pensadores)

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O texto acima se trata de fragmentos de conversas paridas pelos participantes do Pros&arte, onde aproximamos arte (cinema, literatura, poesia etc) e psicanálise, filosofia e saberes cotidianos de cada participante, no tema-eixo "discursos do amor". São encontros gratuitos, na forma de uma roda de conversas bastando trazer uns comes e bebes. É importante que reserve seu lugar com antecedência, devido ao número restrito de cadeiras. Para reservar seu lugar fale com Sandra (11)93228-8808). Local das conversas - Vila Mariana - São Paulo
Agenda de 2019  
Janeiro - dia 19 - sábado das 14:30h as 17:00h
Fevereiro - dia 16 - idem
Março - dia 16 - idem
Abril - dia 27 - idem
Maio - dia 18 - idem
Junho - dia 15 -idem
Julho - dia 20 - idem

terça-feira, janeiro 31

A psicanálise de crianças no adulto

Sandor Ferenczi (1873-1933), psiquiatra e psicanalista húngaro – considerado o “enfant terrible” do movimento criado por Freud – em sua efervescência intelectual e uma série de críticas à técnica ortodoxa de análise, acabou por descobrir a contratransferência – uma reação do analista aos ditos de seu paciente. A contratransferência se traduz pela tendência do terapeuta a considerar suas as questões do paciente. Após um período de alinhamento ao pensamento de Freud, que aconselhava o terapeuta a não se deixar enlaçar nas questões do paciente, Ferenczi, acabou por preconizar o uso da contratransferência e realizando uma análise em que ambos, terapeuta e paciente, fazem a análise mútua, de modo que os pensamentos, sentimentos e sensações corporais do terapeuta são comunicados ao paciente para que este saiba como o outro o sente e vê, num jogo especular. A análise dos sentimentos e sensações surgidas no terapeuta deveriam ser tratadas na sessão, usando as referências pessoais do paciente. Com isso o paciente se dá conta dos modos pelos quais produz sentidos para sua vida e também os sentidos que lhe são impostos.
Apesar do combate que os psicanalistas dedicaram aos escritos técnicos de Ferenczi, sua obra sobreviveu entre muitos sucessores, que as adaptaram para seus próprios proveitos. Dá para ouvir o eco de suas contribuições no trabalho dos freudianos americanos – principalmente a “técnica ativa”, uma intervenção na terapia, com demonstrações de afetos, sejam eles ternos ou agressivos, bem como a “análise mútua”, momento em que o paciente é incentivado a participar ativamente da terapia, como se fosse o terapeuta. É neste momento que a contratransferência é mais explorada.
Há poucos ferenczianos declarados, porém os winicottianos, falam de acolhimento, manejo, suporte e regressão à dependência, com traços ferenczianos o suficiente para traduzir um certo tanto da mutualidade em terapia. É por isso que às vezes um paciente ouve de um psicanalista: “Deve ter sido muito difícil viver na sua pele”. É tanto uma declaração de sensibilidade humana, quanto um distanciamento salutar, uma vez que nenhum terapeuta pode habitar a pele do seu paciente. Mas também é verdade que a terapia é da transferência e transferência é desejo, é amor. Ora, por conseguinte, a contratransferência também está no reino do amor. Daí que uma terapia é sempre terapia sobre a emergência transferencial.
Bem, os traços da obra ferencziana aparecem mais em outros psicanalistas, como os da Ego Psychology americana, que depois, sob a rubrica de Hartmann, se torna Self Psychology. No entanto, nestas alturas Winnicott já não concorda com o caminho que os Self ou Ego Psychologists impuseram ao pensamento de Ferenczi. De modo geral Winnicott continuará, apesar de sua renovação do pensamento freudiano, entendendo que o inconsciente é o objeto de análise. Enquanto que o freudismo americano coloca o ego (self, indivíduo) como o centro de sua atenção.
De minha parte gosto de saber que foi Ferenczi quem disse que fazia análise de crianças e não de adultos. A mim me parece que jamais analisamos adultos e sim crianças nos adultos. O amor infantil, reprimido ou recalcado; a criança no adulto que pede socorro, exige ser amada, implora carinho, sonha terrores, numa cadeia de desacertos existenciais. Penso que cada paciente me traz pela mãozinha uma criança para analisarmos juntos – falando de seus brinquedos (trabalho, hobbies etc), de seus medos (do amor, sexo, aniquilação, agonias etc). Depois de algum tempo, a criança analisada se torna o centro de uma vida viva e livre. O que vemos é um adulto amando amar e amando ser amado.
Foto: https://www.sandorferenczi.org/mdl/?ms_file=ms_3057.jpg

quarta-feira, janeiro 6

Sabiás, alma-de-gatos e árvores!

Metrô Santa Cruz, 07:00
Não sou daqueles que têm os cinco sentidos dos mais aguçados, até pelo contrário. Meus sentidos me dão experiências abaixo da média do esperado. Acho que nascer sem sentidos muito desenvolvidos me fizeram prestar mais atenção para certas nuances da experiência corporal. Por exemplo, ao cheirar um buquê de flores percebo mais de um perfume em uma mesma flor. No centro da rosa há um cheiro e nas bordas de suas pétalas outro aroma. O Sol pode lhes dar um perfume mais doce; em manhãs mais frescas o orvalho encolhe seu cheiro e assim por diante.
Mas, o sentido que mais se especializou em mim foi mesmo a audição. Talvez devido a um acidente, ainda no exército, quando o barulho infernal dos canhões, contra ouvidos já frágeis, acabou desensibilizando de vez minha audição. Como tive que prestar muito mais atenção ao que se passa por perto, atribuo a isso minha capacidade para ouvir alguns sons, em detrimento de outros. Pode-se dizer que privilegiei alguns barulhos desprezando outros, para sobreviver a algazarra da vida.
Coloco na conta da infância vivida entre árvores e bichos de toda natureza, minha escolha por ouvir aves e outros sons no meio dos sons mecânicos da cidade (junte-se a esta conta minha experiência como escoteiro do Dom Bosco e depois uma longa estadia nos contrafortes da Serra do Cervo). Entre todos os barulhos que as ruas produzem identifico o canto do sabiá de começo da noite entre as árvores, assuntando seu ninho. Ou, no meio do dia, os sanhaços e bem-te-vis citadinos numa gritaria danada quando dois machos e uma fêmea exercem seus buliços sexuais.
Há algum tempo descobri uma verdadeira trilha entre as ruas da Chácara Inglesa, repleta de pequenos ninhos e tocas onde vicejam ovos e filhotes, que depois vão fazer destes limites seu mundo. Um casal de sabiás, fez seu ninho em uma sebe bem fechada, que só pude achar devido a vozinha choca da fêmea. Sua irritação com minha proximidade e a tentativa do macho de me desviar a atenção me levou direto para seu esconderijo, onde dois filhotes dormiam aconchegados. Fiquei ali olhando sua respiração rápida, inflando as pequenas costelas, olhinhos cerrados. Achei que estavam bem guardados de gatos e outros predadores.
Acompanho há duas semanas o crescimento de dois outros filhotes, desta vez de pardais, que fizeram seu seu ninho em um semáforo (pasmem!) que fica no alto e em cima da rua. Em baixo passam, além de carros de toda espécie, ônibus articulados, com seu barulho infernal! O casal achou que ali está protegido o suficiente.
Foto: Geya Besse
Sabiás, bem te vis, sanhaços, pombos, perequitos, pardais, são muito comuns nas cidades, principalmente nos bairros mais residenciais. Um pouco menos comuns as curruíras e sebinhos. Convivemos tão bem com eles, que nem lhes prestamos atenção. Não supreende encontra-los em arbustos no jardim, na janela nos olhando com seus olhinhos inocentes e curiosos e até mesmo dentro de casa catando alguma faísca de comida. No entanto, nunca me acostumo com sua presença; sempre levo um "susto" com sua presença em meu caminho.
Foto: https://www.flickr.com/photos/flaviocb/304437095
Entretanto, uma supresa e tanto foi ouvir, dia desses, um gemido de gatinho novo seguido de um canto de bem-te-vi vindo do meio da folhagem de uma frondosa Sibipiruna, duas ruas acima de casa. Sabia que estava para ver um pássaro bem mais raro. Procurei um pouco e logo identifiquei uma longa cauda de penas marrons e manchas brancas, que eu bem conhecia da minha vida no campo. Tratava-se de uma Alma-de-gato, com seus olhinhos desconfiados. Por quê alma de gato? Tenho minha teoria bem particular. Ela escala os troncos, apesar de poder pular de galho em galho quando necessário. Pode cantar como um bem-te-vi, porém o que chama a atenção é que mia como gato bebê. Acho que por isso acabou sendo chamada por alma-de-gato. Ela não esperou muito minha contemplação. Logo subiu pelo tronco até quase o topo e depois mergulhou no ar corcoveando no seu jeito inconfundível de voar, sem nenhum pio para que nenhum gatuno pudesse saber onde é seu ninho... e desapareceu entre o casario. Fiquei ali, um instante, saboreando o momento, ciente de sua raridade. Pode ser que leve meses até que nos encontremos de novo. Valerá a espera.  

terça-feira, abril 7

Em caso de emergência...!

Metrô Santa Cruz: 07.04.15 - 08:05h
Escorrego para dentro do trem, resistindo a uma vaga de gente que sai. Fico feliz de encontrar um lugar que não preciso ficar olhando para o queixo ou o pescoço de um colega ou uma colega de aperto cidadão. É meu lugar preferido, já que andar de metrô é minha realidade, um pouco escolhida, outro tanto imposta. Acho que contribuo com o planeta se usar este transporte um pouco e outro pouco as pernas e solas dos sapatos. Considero sempre a possibilidade da magrela, ou bike seu nome inglês. Além do quê, é insano usar carro para se deslocar por três ou quatro quilômetros - se tenho tempo, não tenho dúvidas, opto pelo solado do sapato. Há de se prevenir com um guarda chuva e com um bom cálculo das distâncias. Se vou ter que andar mais de uma hora, vou de ônibus e metrô.
Igreja de Nossa Senhora da Saúde
Bem, como dizia, estou ali, no meu lugar preferido, bem em frente àquele espaço vazio entre a porta e as barras de apoio. Penso que serão apenas quinze minutos olhando para as letras gravadas por ali. Olho-as com bastante atenção. Dizem, que nas emergências, devo quebrar uma estrutura de plástico e puxar uma argola. Fiquei pensando em quebrar uma com um karatê e treinar o puxamento da tal argola. Afinal, por que não treinam a gente nisso?! Não tenho certeza de que consigo quebrar com um golpe de mão a onipresente redoma de plástico e que ao puxar a tal argola não ficarei com um fio na mão e todos olhando para mim dizendo: você usou de demasiada violência com a inocente argola! Agora vamos todos morrer por causa de sua incompetência para avaliar a situação!
Não consigo imaginar porque não fazem treinamento de quebrar o protetor e puxar argolas do metrô - aqueles treinamentos de bombeiros, sabem? Eu iria as seis da manhã numa meia dúzia de domingos - inclusive nos feriados - só para aprender a puxar argolas. Ficaria para sempre treinado no dito ofício e me sentiria muito seguro! Poderia anunciar a todos, em alto tom e boa dicção, quando entrasse nos metrôs: "podem teclar a vontade no whatsapp ou dormitar babando e tranquilos, aqui vos fala um expert em puxar argolas do metrô! Sua vida está a salvo!" Tenho certeza que cem por cento dos cidadãos querem fazer esse treino, desde que seja em suas horas vagas; penso mesmo que gostariam de treinar no dia das mães, um domingão, ao amanhecer, aprendendo a salvar vidas em homenagem àquelas que nos deram a vida. Ia longe com o pensamento quando o impensável aconteceu!
Uma garota, de seus 16 anos, escorrega para dentro do espaço entre eu e a parede onde está a tal argola. Sem nenhum constrangimento fica a vinte e três centímetros do meu nariz. Tem mais ou menos a mesma altura que eu e só vejo sua fronte com cabelos esticados a máquina, porque mal se posiciona, começa a teclar freneticamente no celular. Com o aperto das pessoas a volta, tenho duas opções. Olhar para as propagandas das paredes, ler e reler as instruções de como puxar a argola ou olhar para a menina. Opto pela segunda. Ela nunca saberia que estou olhando-a, detalhadamente, centímetro por centímetro. Olho-a com uma lupa...
Das orelhas descem fios brancos de plástico, que desaparecem por dentro da roupa; são orelhas morenas e belas, bem recortadas, destas que eu desenhava para a editora Ática num livro que ensinava a desenhar. Eu diria que suas orelhas são um modelo de orelhas. Os cabelos lisos a força, são escuros e poderosos, tocando-lhe os ombros com decisão. Brilham lindamente e são penteados com os dedos a cada 32 segundos. Contei para ter certeza.
É uma destas jovens muito belas, de lábios exuberantes e sobrancelhas bem desenhadas, feitas de uma mistura bem amalgamada de raças de vários continentes. Olhos de castanhos bem escuros, em cujo centro pululam imagens do whatsapp e facebook. É tão jovem que não vejo no rosto as marcas das refregas com a vida, com os desejos e os amores vividos - é lisa como uma porcelana morena. Nesta pele virginal, em alguns anos, poderemos ver os desenhos de suas caminhadas pelo mapa mundi de seu viver; mas, por ora, é puro viço de flor recém florescida. Não que não se perceba certa ansiedade com o aluvião de mensagens que chegam em suas mãos. Já estamos há alguns minutos nos "encarando" e não ergue os olhos da telinha alucinante. Vejo algum sorriso nascer de tempos em tempos nos cantos da boca e até mesmo um quase riso, que mostrou uma bela carreira de dentes. Pensei nos meus dentes empilhados e tortos e imaginei o quanto gosto que seja tão personalizados. Meus dentes são customizados. Nada da pasteurização dentária dos aparelhos de desentortar bocas. Ela tecla mais e mais, sem se incomodar com nossos 23 centímetros de distância, entre meu nariz e sua testa.
Tenho um pensamento incontrolável. Mostrar que também sei teclar freneticamente para competir com ela. Afinal meus mais de 40 anos a mais não petrificaram as juntas dos polegares (apesar de doer a beça) e posso provar numa competição, ali mesmo! Podíamos chamar o jovem com seis piercings na sobrancelha esquerda e tatuagem de dragão no pescoço, para ser nosso árbitro. Acho que é imparcial e pode nos ajudar como juiz. Se eu ganhar ela terá que me ensinar como postar no instagram; se ela ganhar, ensino-lhe a ler Dom Quixote de La Mancha. Bem, talvez ela não goste de Dom quixote. Quem sabe Cyrano de Bergerac... Bem, o jovem também tecla feito louco no seu celular e não presta atenção em nós. Não vou conseguir convencê-lo a nos ajudar na competição!
Uma voz anuncia que a estação Sé será a próxima e que devemos descer pelo lado esquerdo do trem. Ela liga a câmera frontal e se olha satisfeita com o próprio rosto. Penteia os cabelos com a mão aberta e dedos separados imitando um pente; ajeita a bolsa no ombro. A porta se abre e ela sai com toda a pressa da juventude. Pude voltar aos meus pensamentos. Será que se eu der uma tapona de lado consigo quebrar a caixa plástica com mais facilidade?  

quinta-feira, fevereiro 12

Basic look, forum e hábitos!


Barra Funda, 10.02.15;14:00h

     Uma torrente de jeans, camisetas e tênis jorra apressada para fora do metrô. Cada uma das partes desta golfada de vestimentas casuais tem o seríssimo intuito de chegar em algum lugar e se escoa à minha frente sem se ocuparem com minha presença - nada significo, anônimo e de jeans, camiseta e tênis também! Noto, de vez em quando, que uma vestimenta destoa da maioria, tanto nelas quanto neles. Nelas, os sapatos de salto alto não pedem licença e avançam resolutamente no coração da horda de jeans, batendo secamente contra o piso indiferente, num trottoir indiscreto. Neles, costumes prêt à porter, meio mal cortados, em certo desalinho e escolhidos fora da numeração, sobre camisas amarradas por gravatas baratas, se deixam levar pelo fluxo que os empurra para o gargalo das catracas.
     Apurando os ouvidos e olhos descubro que estes peixes fora dágua, estão indo a um templo. Não aqueles dos padres, pastores ou outros assentados da espiritualidade. Um outro templo em que togados dividem espaço com estes engravatados e mulheres empertigadas no alto de seus sapatos. Lá se fala da religião do direito e o deus é a lei. O incenso que lá queima é a escrita, os apensos dos processos; o sino que lá retina é a sentença que salta em firulas, elegantemente, da boca do magistrado em seu mandamus, o poder de mandar que se aplique o dispositivo divino.
     Embora eu não seja a criação de Arthur Conan Doyle, sei, por dedução, olhando os volumes de papéis em seus colos, com umas capas esquisitas; ou de ouvir perguntas do tipo "qual a saída para o forum" ou "quero ir ao forum", feitas por alguns jeans-camiseta-tênis, que estamos pertos de um destes amados e temidos templos. Forum significou praça pública entre os romanos - um foro, daí o atual "fora" em contraposição a "dentro". Por um caprichoso deslize de sentido, o que era forum virou dentro; uma barafunda de significados! Por uma luta com as palavras o forum é um dentro que é público, mas proibido para o público. Só entra lá réus, acusadores, defensores, juizes, policiais e um ou outro interessado. Digo isso, porque parece que ninguém tem vontade de ir a esta praça pública chamada Forum assim, assim, do tipo: "hoje acordei com vontade de ir ao forum" e coloca na mochila um sanduíche, refrigerante e uma necessaire com os itens básicos de higiene, uma toalha e vai fazer um piquenique no forum - que é dentro e não é público. E se fosse, não parece que queremos entrar neste foro. Aliás, piquenique de domingo no forum nem pensar!
     Me perco em pensamentos mergulhado em uma miríade de pequenos detalhes que separam os ternos-com-gravata dos jeans. Os primeiros obrigam seus portadores a se alinharem, manterem postura ereta e semblante mais sério que a maioria. Seu andar é um exercício de poder, de preocupação, de esmerada consciência de si. Os segundos são mais relaxados, cordiais talvez, com andar quase indolente e tranquilo. É claro que se eu olhar com mais atenção ou conversar por cinco minutos com qualquer deles, gravatas e jeans, me surpreenderei com vazios d'alma, amor e medo. E nisto vejo a trágica beleza do humano agarrados aos seus hábitos - jeans ou gravatas - sobrevivendo à dura realidade, fazendo com todo amor e detalhes o papel que lhes escolheram viver.
     Agora tenho que levar meus jeans-camiseta-tênis ao seu destino...    

terça-feira, fevereiro 25

Gustave Flaubert, o idiota da família - volume I de J-P Sartre!


Dizia meu avô Ismael, que em toda família nasce um idiota, no meio da prole geral. E dava uns dois ou três exemplos entre os vizinhos na Vila Nova, para provar sua científica observação. Tinha ares de pesquisa estatística e aqueles três exemplos provavam a tese levantada e não se falava mais nisso. Eu mesmo vira alguns idiotas, um ou dois amiguinhos de infância, de quem se dizia que não podiam desenhar o "ó" sentando em uma folha de papel! O problema é que a coisa se virou contra mim, logo aí pelos três ou quatro anos de idade e depois por longo tempo. Eu me movimentava, em muitos aspectos, naquela faixa de crianças bestas, boquiabertas até babar, com qualquer acontecimento mais ou menos trivial. Ia de uma carreira de formigas carregando tiquinhos de folhas em suas tenazes, até nuvens com formatos difusos, que me hipnotizavam longamente, passando por pessoas, animais, estradas, árvores, objetos de uso pessoal e um sem fim de letras, nos poucos livros, jornais e revistas que aportavam naquela casa.
De fato, as letras encabeçavam a longa lista de estupefacientes que me arremessavam no mundo do sonho, do devaneio, do delírio e acho que até da alucinação. Diferente de Flaubert, um idiota mais obtuso e renitente, eu aprendi ler antes dele; aos seis anos meu avô, aquele mesmo que descobria idiotas entre vizinhos, talvez preocupado com minha cretinice, me ensinou a ler a Bíblia. Isso, soube depois, me deu grande desvantagem na escolinha frente a Dona Lourdes; como as aulas do primeiro ano não me interessavam nem um pouco, levei broncas homéricas e castigos por falar demais na classe ou por ser arrebatado por um desenho nas madeiras das paredes - falar atrapalhava os colegas e divagar parecia uma afronta à mestre.
Se fui tão idiota quanto Flaubert não o sei, mas tenho certeza que ele foi um idiota genial e eu apenas um sofrível e normal sonhador com letras andando umas atrás das outras, fazendo frases e frases, numa faina infinita, que me causavam um alheamento bem visível. Ele escreveu Madame Bovary e eu ainda espero cair um raio do céu para me inspirar, tal como aquela graça da qual Agostinho nos fala - cai das colmeias celestes, uma gota qualquer que nos inunda e aí fazemos, finalmente, sentido. 
Minha avó materna, confirmando a lúgubre desconfiança, tinha um nome para mim: Náno! Dizia ela que se tratava de uma palavra em um dialeto qualquer da península itálica, que queria dizer "bobo". Um bobo-alegre na hipótese mais generosa. Uma vez eu ouvira ela exasperada me chamando por Náno, enquanto eu tentava entender porque as joaninhas que eu havia colocado em uma lata de terra, para cavarem e se esconderem, tinham desaparecido. Eu só queria proporcionar para as pequeninas, uma maneira de se defenderem dos perigos da noite. Devia, naquelas alturas, estar babando nos joelhos, pelo empenho da avó para me tirar daquela morbidez dos sentidos.
Doutra feita eu verifiquei linha por linha de uma longa colcha de fios de aranha, que por um mistério qualquer, formara uma joia finíssima incrustada por milhões de gotículas de sereno, sob a luz brilhante do sol da manhã. Era-me impossível não ficar contemplativo, pasmado, frente a estes acontecimentos impossíveis! Gustave Flaubert em uma de suas cartas estudadas por Sartre, disse que lhe restaram traços destes tempos de obtusidade do espírito, que se mantiveram íntegros até o final de sua vida. De minha parte posso garantir que me perguntam até hoje se sou concentrado ou distraído.
Flaubert, mesmo sob o peso da bazófia de parentes e conhecidos, prosseguiu sua escrita, e ainda nem bem tinha terminado sua longa adolescência e já estava sendo processado pelo genial perfil de sua obra de crítica aos costumes da época. Por causa de sua idiotia, pode olhar até perder-se em sua Bovary, criando uma das almas mais complexas da literatura do romance tal como conhecemos hoje e fazer um raio-x de certos costumes da época. O que não agradou certas suscetibilidades.
Já minha idiotia é quase sempre despertada pela natureza; olhar a vida que se manisfesta nas menores fendas do mundo é um gozo flaubertino; como não sei criar almas pelas letras e enquanto não aprendo seus segredos, vou lendo Sartre e sua obra sobre a inocência do menino Gustave, tentando não ser tomado pela estupefação. 

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...