sábado, setembro 4

Narrar é melhor que viver!

"Reconhecemos de imediato a triste abundância dessas vidas sem tragédia; são nossas essas mil aventuras esboçadas, perdidas, logo esquecidas, sempre recomeçadas, que deslizam sem deixar marcas, sem nunca comprometer, até o dia em que uma delas, igualzinha às outras, subitamente, como por descuido e à traição, enoja um homem para sempre, desmonta negligentemente um mecanismo" 
(Sartre, 1947, Situações 1 p. 37, falando do livro 1919 de John dos Passos).

Quando olhamos com uma lupa as vidas que desfilam defronte nossas faces, como elas nos parecem carecer desta raridade do teatro ou do cinema; o trágico é que o cinema, o romance, o teatro, e mesmo as novelas em sua longeva exposição ao nosso olhar, são olhares com lupas. Por quê não parecem com a vida real olhada pela lente de aproximação, se usam o mesmo truque de aumentar os detalhes para alcançar dramatização? Um resposta possível (e, é certo, não a única) é que se trata de uma narrativa. A vida tem a desvantagem de acontecer em primeira mão. De não ser um acontecimento contado, fabulado. 
      Foi Sartre, também, pela boca de um de seus personagens, a nos propor que narrar é melhor que viver. A narrativa daquilo que vivemos é certamente mais atraente que aqueles comezinhos instantes de existir, sem importância alguma, que fazem a maior parte do tecido da vida. Mas basta nos dispormos a contar o vivido e os fatos mais banais tomam cor, encorpam e brilham!
      Também não adianta muito usar uma lente panorâmica para ludibriar esse sentimento de  "deslizar sem deixar marcas". Uma vida inteira de ir e vir, do trabalho para casa, da casa para a desgastada praia de sábado e domingo, ou do feriadão, da casa para o trabalho, academia, cinema no sábado a tarde quando não é possível ir a praia etc., pode ser um frágil mecanismo a desmontar sem saber quando e nem por quê. O panorama de uma existência é salvo por uma biografia, uma nota numa revista, uma fotografia... uma narrativa.
      A abundância das existências não pode nada contra essa sensação de que só fazem sentido ao serem narradas em segunda mão. Daí, penso eu, depois de algumas análises de sujeitos apanhados pela drogadição, que o abuso do álcool, o uso de drogas químicas seja uma tentativa de narrar a vida sem vivê-la, o que, além de dramático, é trágico. São gritos de socorro contra a abundância de existência sem tônus.
      A psicanálise freudiana ou sartriana, embrea uma narrativa que acaba se tornando uma segunda vida, uma vida paralela, que acaba construindo uma biografia pela fala. Em muitos casos será a primeira vez que uma pessoa veio a ter uma vida para viver - aquela da narrativa psicanalítica. Um pouco de brilho narracional aos fatos de vida esboçados e ameaçados de desmilinguir talvez seja a melhor maneira de viver uma vida viva...
     Sartre propunha fazer da vida uma obra de arte. Será que podemos pensar em uma criativa narrativa de si mesmo como a arte de viver afastado desta tristeza que chamou atenção?

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...