domingo, dezembro 27

A beleza é uma contradição velada! (Sartre)

Beauté terá sido a palavra francesa que Sartre usou para compor esta frase? Não tenho o original em francês do seu Situations I, onde escreveu a bela frase, que em meu francês claudicante (lembrar que além de nascido francês Sartre escreveu como poucos - prosa, crítica literária, filosofia, peças teatrais etc, em sua língua) vou pensando em palavras como: contradiction e veillée. Bem, vejamos em português, que domino um pouco melhor.
Beauté [pronuncia-se botê] pode significar formosura, lindeza etc; contradiction é fácil - algo como oposição entre dois termos em uma mesma frase. Também dizemos espírito de contradição; ou aquilo que provoca contestação, é contestável, ou seja, o que possui contradição não é incontestável. Velada pode significar coberta, vigiada, véspera, serão, passar sem dormir, guarda; tem a ver com véu, também. Além de outras acepções que depois trarei para o diálogo. De qualquer modo podemos dizer a frase de Sartre - pelo menos a traduzida no Situações I - editada no Brasil, nos seguintes modos:
"A beleza é uma oposição vigiada"; "A beleza é um algo contestável vigiado"; "A beleza, por ser contestável precisa de vigília"; "A beleza só existe sob guarda, vigilância". Mas, afinal, onde isso poderá nos levar?
Sartre, ao que me consta, escreveu consequentemente, ou seja, nada de frases de efeitos só pelo espetáculo gramatical, sintático ou fraseológico. O que não nos exime do sentimento de que, em certas frases, estamos diante de um enigma. Mas podemos começar por aproximar seu dito de outro dito já popular: "A beleza se encontra nos olhos de quem a vê", ou seja, contestável, e por isso, exigindo eterna confirmação de que possui de fato a formosura que lhe imputamos.
A beleza, no dizer de Sartre, bem poderia ser uma realidade que não possui real, ou seja, que não tem certidão, constituindo-se em uma realidade a ser confirmada, guardada dos ataques dos olhares dos outros - guardada até mesmo de si próprio, tornando-se uma realidade de fé. Pois que não é verdade que as vezes nos damos conta de que estamos perguntando se o que vemos como belo de fato o é? Acontece nas melhores mentes, nas mais sinceras relações...
No dia 23 de novembro passado postei "Não te aflijas! O amor é mero acaso!", a propósito desta estranheza de amar-se o feio, transfigurando-o em bonito. Acho que Roxane, para ver Cyrano bonito deverá abstrair, de saída, seu grande nariz que enfeia irreversivelmente, suas faces, sua cabeça inteira. Isso não será problema se a beleza de Cyrano for constantemente velada... em todos os sentidos acima...
(o desenho se refere ao Cyrano histórico; nada a ver com o ficcional, criado por Edmond Rostand)  

terça-feira, dezembro 15

O espelho sem aço!

Seis da manhã. Espelho feminino em uma das mãos,  o homem olha para os vincos no rosto. Semblante sombrio. Traz na outra mão um papel amassado com algumas linhas manuscritas. Está em pé no parapeito do Viaduto do Chá. Olha para o asfalto lá embaixo e uma certeza lhe atravessa o corpo. Com método deixa cair o espelho, depois o pequeno bolo de papel, que encerram seu destino na dureza do chão. Um carro estilhaça o espelho, outro amassa o papel. O homem vira-se de costas, pula do parapeito e anda em direção ao Teatro Municipal. O rosto mais vincado ainda...

quarta-feira, novembro 25

O xilofone e a capa!

Saio do metrô e me dou conta de que chove! E muito! Sem guarda-chuva recorro a uma capa com seu capuz. O resultado foi bom, mas teria preferido parar num café para um chocolate quente. Não deu! Estava em cima da hora! Vendedores de sombrinhas, guarda-chuvas e capas brotam do asfalto molhado. Aos gritos tentam nos convencer que aquela chuva duraria o dia todo... E durou!
De certo modo me sinto confortável embaixo da capa onde dedilham pingos e seu barulhinho de xilofone desafinado. Agora é dormir numa noite mais fresca, úmida e os cães mudos... 

segunda-feira, novembro 23

“Não te aflijas! O amor é mero acaso!”

Bret tem as mãos de Cyrano entre as suas, comovido pela tristeza deste com sua desdita: um nariz por demais aparente, uma protuberância inaudita, um imenso membro no meio da cara, separando os olhos amiudados frente a tamanha deformidade. Tentando abrir em Cyrano alguma brecha para a crença no amor e que Roxane poderia ama-lo, apesar do nariz infernalmente atrevido, diz-lhe, com toda a sinceridade que pode reunir em si: “Não te aflijas! O amor é mero acaso!”
Não é a toa que dizemos que o amor é cego, talvez surdo; mudo certamente não! O amor carece até de inteligência! Talvez por isso Bret diz que o amor é uma sorte, um inesperado, uma fatalidade até, quando o coloca como obra do acaso. E dizemos, também, que a quem ama o feio bonito lhe parece, e é nisto que Bret aposta. Quando aquela mulher olhar para Cyrano, mesmo com aquele maldito vaso nasal, seu hilário apêndice olfativo, poderá acontecer um milagre e simplesmente amá-lo. Sem prestar atenção em sua tromba arreada, olhar para seus olhos honestos, ansiosos pela “ilusão celeste”, e deixa-lo fruir de sua graça, de sua alvura, de seu aveludado.
Antes disso, porém, Cyrano de Bergerac, inflado pela perspectiva do encontro com aquela mulher, sentindo-se mais forte que um Hércules ou Sansão, irá colocar Lignière em sua cama, um pobre trovador bêbado. Entretanto, até que venha a colocar o homenzinho descansando da bebedeira, no aconchego de sua casa, Cyrano terá que lutar contra cem homens. Aqueles mesmos que querem impedir o cantor de entrar em sua casa. Sai pelas ruas de Paris, perto do Sena, eufórico, invencível, ao encontro de seu destino...
“E haveis de assistir... ao que haveis de assistir!” Diz, um pouco sem palavras para definir sua senda. Viver, para Cyrano e para nós, tem muito de acaso... aquele mesmo do amor.

quarta-feira, novembro 11

"O rei reina, mas não governa"! E o Lula?

Foucault, no Segurança, território, população, cita L.-A.Thiers (em artigo escrito em 1830), na aula de 23 de fevereiro de 1978, para lembrar que em certo momento da história a soberania sobre o território passa a ser o governo de populações. Diz ele: "Poderíamos  acrescentar ainda o seguinte: quando falei da população, havia uma palavra que voltava sem cessar - vocês vão dizer que fiz de propósito, mas não totalmente talvez -, é a palavra 'governo'. Quanto mais eu falava de população, mais eu parava de dizer 'soberano'. Fui levado a designar ou a visar algo que, aqui também, creio eu, é relativamente novo, não na palavra, não num certo nível de realidade, mas como técnica nova. Ou antes, o privilégio que o governo começa a exercer em relação às regras, a tal ponto que um dia será [foi] possível dizer, para limitar o poder do rei, que 'o rei reina, mas não governa', essa inversão do governo em relação ao reino e ao fato de o governo ser no fundo muito mais que a soberania, muito mais que o reino, muito mais que o imperium, o problema do político moderno creio que está absolutamente ligado à população" (p99).
Me pergunto, e não sei responder (mas não custa perguntar, já que, como dizem os mineiros, perguntar não ofende) se no caso do Lula, não temos uma certa inversão da proposta foucaultiana: "Lula não governa, mas reina". Às vezes pela bufonaria, como quando responde a FHC, que questiona seu governo, com ataques hilários, dizendo que FHC estava despeitado por Lula não ter se dado mal na governança. Só mesmo, ao meu ver, um governo que se toma por um rei poderia dar-se ao luxo de não responder a um questionamento de suas práticas de governo - e fazer argumentação de cozinha ou de sala de estar em dia de jogo de buraco, na casa do amigo do primário. Como poderia um presidente responder como se fosse uma briga de comadres pelo melhor bolo de fubá, ou descer o nível da conversa ao fundo do inobservável, se não se sentisse inatacável como um rei, imperador, soberano. Lula deve ter realmente esse poder que o exime de uma discussão responsável, afinal, esperto como é, não se exporia a essa tagarelice surda. O povo o colocou no poder e ele sabe muito as técnicas de dirigir populações, conhece como ninguém os meandros da economia do poder e de como se manter nele e, finalmente, se diverte com seu reinado, já que governar, não estou certo de que o faça. Enfim, a população o colocou lá para que a governe, mas o que melhor ele sabe fazer é gozar da soberania. Que Foucault me perdoe a exorbitância a partir de seu texto!

sexta-feira, outubro 2

Tratado da eficácia – ou de como ter êxito nos propósitos!

François Jullien, filósofo e sinólogo, também especialista em Grécia antiga, nos apresenta um contraste criativo e consequente de duas maneiras de obter êxito, de ser eficaz: a grega (da qual somos devedores) heróica, marcada pelo modelo, pelas formas ideais, por movimentos espetaculares, pelo evento, pela tomada de decisão, pelo aproveitar da ocasião, pelo rompimento, pela ação; e a de potencial de situação, chinesa, fundada na transformação, na tendência a atualizar, no abandonar-se ao advir do efeito, na discrição, no processo, no não-dispêndio de energia. Em suma, a maneira chinesa de ser eficaz, de obter a vitória, nada tem do voluntarismo e traçado de planos, da contraposição teoria-prática, próprios a nós, herdeiros da saga homérica, hercúlea, onde Jasão, Teseu e outros, parecem a única fonte possível de nascimento da ação e único horizonte para a vitória. Contudo, os chineses pensam a eficácia a partir da idéia de se deixar portar pela situação; de deixar a situação se desenrolar, evoluir e, ao se deixar levar pelo efeito, alcançar êxito. Tentando dar conta destas diferenças e delas tirar consequências para uma teoria da eficácia, algo que, segundo o autor, jamais foi feito a contento no ocidente, este buscará respostas a partir da leituras de uns quantos textos representativos do Tao, particularmente os pensadores florescidos nos Reinos Combatentes (Mêncio, Zhong Yong, Sunzi e outros), bem como, no lado ocidental, em uma busca minuciosa principalmente em Aristóteles, Maquiavel e Clausewitz.
Assim, Jullien pergunta-se: Pois, o que é, propriamente falando, um efeito? Ou de que modo se realiza o real? Perguntas que irei acompanhando em minha segunda leitura de sua obra...

segunda-feira, setembro 21

Apresentação da minha dissertação à banca examinadora! (2008)

     “Para chegar a este momento, acumulei dívidas de gratidão com uma legião de pessoas. Nomeando-as aqui, de público, é o mínimo que posso fazer para agradecer seus préstimos, sabendo de antemão, que essa devolução será irrisória, perto do que me proporcionaram no percurso desse mestrado. Além disso, passarei pelo constrangimento certo de esquecer alguém que tenha me privilegiado com sua acolhida, ensino ou apoio.      Quero agradecer ao Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini por sua orientação, instigação ao pensamento e respeito por nossas diferenças. Agradeço aos Professores Doutores Ronaldo Teixeira Martins e Romualdo Dias, por aceitarem examinar e criticar minha dissertação. Às Professoras Doutoras Míriam Santos e Telma Domingues, que ciosamente me apontaram o rumo da Análise do Discurso, suas vicissitudes e alcances, na esperança de que eu pudesse um dia operar com as ferramentas apresentadas. À Profa. Dra. Maria Onice Payer, por sua leitura arguta, atenta e minuciosa na qualificação desta dissertação. À Profa. Dra. Hammes que me deu cálida atenção, na UFSC, lendo Bakhtin comigo. À Profa. Dra. Rahel Boraks, que me supervisionou, usando as idéias de Winnicott, durante minha graduação em Psicologia e, posteriormente, ao clinicar. À Profa. Dra. Elsa Dias e Prof. Dr. Zeljko Loparic, que me reafirmaram Winnicott. Dediquei esse trabalho à esposa Vania.
     Professoras, professores, colegas e amigos. Como vocês, passo pelas delícias e amargores de viver em um corpo, ou como um corpo, ou apesar de um corpo. E isso há tanto tempo, que o início disso tudo me desapareceu nas águas escuras da memória, lugar e tempo, não cronológico ou topográfico, que insisto em revisitar. Essa olhada para o passado já me impôs uma psicanálise pessoal; estudos de outros sentidos para o corpo nas culturas japonesa, chinesa e indiana; e, às vezes, algum assombro com a irrupção desse tempo ahistórico, no cotidiano, transbordando psicossomaticamente, me esculpindo a carne.
     Quando escoteiro me relacionei com a idéia de um corpo sempre alerta, espartano, conduzindo-me às melhores saídas frente as vicissitudes do terreno. Depois, tendo como veículo as artes marciais, toquei um mundo cujos corpos prometiam segredos de força e harmonia quase sobrenaturais; corpos que eram a extensão do mundo, onde tronco, cabeça, mãos e pés se uniam numa letalidade ritual e meditativa. Na sala templária do ensino marcial o corpo era campo de duas batalhas: contra os próprios sentidos, controlando a dor, e contra o oponente, controlando o medo. Ingressei no exército, onde corpo e máquina de guerra eram extensões de uma mesma unidade; onde olho e alça de mira unificavam-se no cálculo do deslocamento do ar, na apuração do pesadume da gravidade e pela fuga do alvo. Lugar onde o corpo, apropriado pelo Estado, é treinado até que sua materialidade seja o próprio corpo da lógica militar. Ao sair do regimento de cavalaria mecanizada retomei minhas disciplinas corporais, mais particularmente aquelas que advinham das artes medicinais indianas. Ali retomei contato, que mantive por décadas, com um sentido de corpo onde a anatomia, biologia e fisiologia formavam pilares de um corpo-templo em que se dava uma litania de fonemas e fórmulas verbais no formato de culto a forças corporais intangíveis, cujo fim seria sua transubstanciação – uma espécie de unção do corpo. Esse intento me fez estudar as seis filosofias clássicas indianas, cada uma com um sentido próprio desse fazer do corpo. Ansioso por conhecer um corpo indefectível, uma completeza de sentidos, vasculhei em Freud, Reich e Jung, na psicanálise, e Sartre na filosofia, outras possibilidades de significação de suas formas e outras abordagens aos seus limites. Mais um pouco e me tornei terapeuta corporal, pois acreditava que isto me dava mais liberdade para essa aventura com os corpos. Depois graduei-me em Psicologia, retomando Freud na versão de Donald Woods Winnicott e seu conceito de psicossoma, uma sua tentativa de reinventar um corpo para a psicanálise. Foi aí que ingressei na clínica psicossomática, envolvendo-me com a carne que sofre onde o simbólico se esgarça.
     Esta saga por entre sentidos de corpo e sua inexequível materialidade foi tão massiva e fascinante que, em muitos momentos, paradoxalmente, esqueci essa mesma evidência, sua existência, sua materialidade e me relacionei com a corporalidade como se não houvesse questões quanto a sua formação, sua relação com o sujeito e seu estatuto frente ao social. Com o passar dos estudos soube que ele é a presença sem a qual não podemos sequer ser demarcados como sujeitos; e mesmo quando o corpo não está lá onde é exigido a se apresentar materialmente, sua figura, sua numeração, suas digitais, seu formato e outros corpos são convocados a lhe dar suporte, existência e sentido à sua ausência. Na verdade, em certos casos, quanto mais ausente, mais presente ele se torna nos suportes cotidianos da vida citadina. Definitivamente, isso não nos incomoda e nem chama a atenção, mesmo que seja sua ausência, desde que seja uma ausência consentida e administrada pelas instâncias sociais erigidas para localizá-lo, dando-lhe corpo. Veja-se, por exemplo, o caso em que mesmo presentes, prescindimos do direito de falar, e um outro corpo, advogado por nós, fala de nosso lugar, somos falados por uma boca estrangeira, boca essa que nos representa e constitui. Ou nos casos em que, sob procuração, o corpo desaparece da cena, deixando traços, senão de sua presença, pelo menos de sua passagem; traços bem registrados em superfícies que possam atestar a sobrevida do corpo. É verdade que, às vezes, a evidência do corpo é definitivamente apagada, por que incômoda, por que embaraçante, por que produz mais sentidos na ausência; é o caso de um certo corpo subsumido na cruz e hóstia cristãs.
     No correr deste mestrado foi-se constituindo uma pergunta: o que de fato faz com que haja corpo? Bastam sua imagem e materialidade para que sua presença seja indiscutível. Mas, de que materialidade se trata? Qual seu estatuto, frente ao sujeito? Desde quando podemos dizer que há corpo? Em que momento esse construto se inicia? Primeiro haveria uma base material e depois um corpo aposto a ela?
     Com isso em mente acabei fazendo a questão que intitula a dissertação, O discurso encarnado: ou a passagem da carne ao corpodiscurso, pois em certo momento me pareceu que se poderia mostrar a passagem de simples tecidos vivos ao corpo pulsional ou ao corpo como efeito de linguagem. Nada que muitos autores, do campo psicanalítico já não houvessem tratado, com consequências importantes na compreensão de certos sentidos de corpo, para as ciências, mas que eu quisera olhar pela lente do discurso. Não fosse as contribuições de Orlandi, com sua abordagem ao corpo pela lente de uma teoria do discurso, localizando um corpo político, da pólis, unido ao corpo da cidade e não teria percebido que poderia me aproximar do corpo pulsional e do corpolinguagem pela via da historicidade, pelo ideológico. É certo que a carne estava ainda mais soterrada que antes, mas agora já podia falar de sua passagem ao corpo feito de discurso, ou seja, um corpo-efeito-histórico e construído a partir de uma agência ideológica. Como psicanalista psicossomatista, frequentemente vejo uma espécie de retorno da carne, que um dia desaparecera na cortina de fumaça da elaboração simbólica, retomando um certo grau de infans simbólico, revivendo no sujeito um cerne sem voz, que retoma a cena vindo à flor da pele, pondo-o em carne viva.
     Fui percebendo, já na tentativa de enunciar o problema que me impunha, que a carne aparece de tal modo atada à ordem de um discurso, funcionando dentro de uma dada formação discursiva, em um dado espaço social, que sua presença se apaga, sem apagar sua materialidade, pois sem a carne não haveria corpo. Porém, o que poderia se chamar por carne no corpo do sujeito? Autores como Freud, Lacan, Winnicott, Althusser, me ajudaram a sustentar uma argumentação que se dá na presença do sentido de carne como um impossível de se ordenar, porque é a ponta do real no corpo do sujeito, surgindo como algo a se matar pelo que decidi chamar pelo termo discursivização da carne. Essa discursivização me pareceu um correlato da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, na fórmula proposta por Althusser. Na verdade, foi a partir desse axioma que me surgiu o interesse de saber se não se trataria de uma interpelação da carne em sujeito pelo discurso, numa teoria do discurso. Há ainda, que se admitir, que o sujeito, apesar de ser o resultado de interpelação do indivíduo pela ideologia, aparece como sendo desde sempre sujeito, o que complica sobremaneira falar sobre uma carne que o antecede, ou como gênese do sujeito. Daí que reafirmei uma carne teórica, para localizar um certo tempo, lugar e modo pelo qual se dá a interpelação.
     Com isso em vista, passei a uma tentativa de saturar adequadamente meu objeto de estudos na forma de um possível sentido de corpo para a Análise de Discurso, seguindo os traços da presença dessa passagem em certos textos e autores que a representam e, nesse movimento, tentei verificar a existência de um corpo de carne que precede, mesmo que apenas como objeto teórico, o trabalho de simbolização. Poderíamos dizer que os sentidos de corpo são tracionados por uma base carnal para que se dê o discurso, assim como a cidade precisa do seu território, tal como nos propõe Eni Orlandi em sua obra Cidade dos sentidos? Estaria o corpo, por sua cabal materialidade discursiva, atado ao território-carne, sendo isso passível de descrição? Escolhi iniciar com esta obra, obrigado por minha trajetória pessoal, pelo discursivo do corpo em Orlandi e pela disposição da autora em considerar o corpo como um dos campos do político-ideológico.
     O que deveria eu fazer, então, se meu objeto de trabalho tem essa qualidade de ser volúvel, e não se deixar apreender? Que não (em)presta sua materialidade para estudos a não ser com muito custo e sem garantias? Que sua materialidade é plástica e se deixa moldar, mas com a condição de que o poder modalizante (o Estado, por exemplo) também se modifique no processo mesmo de modalizá-lo? Que seu fundamento é o assujeitamento à ideologia, à linguagem, ao sentido, por isso ao simbólico, ao imaginário, restando do sentido de corpo, algo que se confunde/aproxima do sentido de sujeito?
     Que o sentido de corpo é apreensível pelo discurso, tal como a cidade, Orlandi já me advertira em sua obra.
     Esse processo de discursivização da carne forçou-me a evoluir sentidos como o que contraí num enunciado com esta estrutura: a carne, interpelada em corpo pela produção de sentidos, pela linguagem, pelo ideológico, erige o sujeito. Sem sua materialidade não podia ver o corpo discursivo, mas isso nada facilitava em termos de entender o tempo e lugar dos processos que levam o corpo, que é discurso, surgir de simples tecidos vitais.
     Num segundo momento quis ressaltar, brevemente, os principais quadros polissêmicos da palavra corpo ao longo da História, na esperança que isso ajudasse me haver com o corpo da ordem do discurso. Os vários sentidos de corpo que fomos habitando texto afora só fizeram demonstrar sua opacidade, sua gritante ambiguidade; sentidos que se sobrepuseram, mesclaram-se, refundiram-se. O corpo já teve, por exemplo, os sentidos de máquina, instrumento da alma, túmulo da alma, mecanismo, organismo, só para citar alguns deles. Mais exatamente, me vi na contingência de aceitar uma simultaneidade de sentidos organicamente dispostos e fazendo efeitos uns nos outros. Devido ao quanto é especial essa relação entre carne, corpo e sujeito, um se torna metáfora do outro, sem recobrir todos os seus sentidos mais exercidos. Em certos momentos pude entrever claramente que para certos pensadores corpo significa organismo, e em outros aparece como um corpo existencial.
     Num terceiro momento, tentei entender o como se dá a aparição do indivíduo à ordem do discurso, pelo nascimento, a partir da carne. Como se dá a discursivização da carne e o processo pelo qual se constituiria a subjetividade, e, por conseguinte, o corpo do sujeito. Trouxe a mãe, eu diria uma mãe winnicottiana, e sua participação na construção fisiológica do indivíduo, tentando ver como ela pode encarnar o discurso ao ponto de liga onde o bebê inicial se embebe e pode dizer “eu sou”, para que mais uma vez se confirme o efeito ideológico elementar, onde o indivíduo se sabe sujeito desde sempre. Será que Althusser estaria dizendo, no centro, ou antes, ou por detrás de seu enunciado (aludido acima) que indivíduo se pareia com carne? Ou no esquema orlandiano que apresenta os dois passos da subjetivação, apresentado em Discurso e texto, o termo bio de “bio-psico” se poderia considerar no mesmo sentido de carne? Para isso, reproduzi seu esquema de individualização do “indivíduo em primeiro grau” (bio-psico) em “indivíduo em segundo grau” (social).
     Neste ponto, antes de continuar, devo informar sobre um incômodo que me acompanhou por todo o trabalho. A presença de traços de biologismo, desenvolvimentismo, psicologismo e idealismo, em quase todas as contribuições teóricas aqui trazidas para dialogar. Registre-se que em Pêcheux e Orlandi, em sua evocação de uma teoria do discurso, a biologia e seus avatares (desenvolvimento, psicologia) são recusados. Ao trazer Winnicott para descrever a passagem da carne ao corpo-discurso eu sabia de um certo biologismo em sua obra, mas de uma ordem que devo definir por “capacidade de existir”, em seus próprios termos. A “preocupação materna primária” - “episódio esquizóide, onde um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente” se torna um “ambiente especializado” produzindo uma certa biologia psicanalítica, por assim dizer. Quem se adapta é o ambiente e não o organismo. E se trata de uma adaptação invisível para a mãe – a mãe como ambiente, pois esta se encontra em um “adoecimento” (que reúne clivagem e delírio) acessando sua experiência de vivências como bebê. Não há, numa mãe boa o suficiente, um “eu sou” integrado que possa resistir ao episódio esquizóide. O ambiente é ela (a mãe) e não está lá fora e sim junto com o bebê, formando um – precariamente é verdade, mas nada que não possa levar as experiências acima citadas a formar um inconsciente – um sujeito.
     Nos parece vantajoso se pensar o ambiente/ideologia como um com o indivíduo; ambiente que está apagado pela inscrição materna desde dentro, mas que funciona desde fora. Também parece que isso justifica a ordem do discurso surgir sem ter origem – ser eterna, portanto. Apaga-se uma dualidade entre ser e existir e disso surge um sujeito já identificado com o “ambiente”, mas não adaptado, e sim, atuante.
     Nesse caso, “ideologia” deve ser entendida como uma tela de sustentação que não possui as qualidades de externo ou interno, mas que permite ao indivíduo se tornar sujeito, sem que para isso ela tenha de se comportar como um outro separado, frente ao qual tal assujeitamento se dá, ou como um indivíduo se adaptando à ideologia.
     Há ainda, de se considerar mais de perto o sentido de corpo neste ultrapassamento. Se tem algum valor o que vamos levantando, só poderíamos falar em sujeito como a relação entre ideologia e carne. Contraindo mais a fórmula, podemos entender sujeito como relação. Entretanto, essa relação acontecida a partir da carne que se torna discurso/interpretação, impõe um espaço entre a carne e o sujeito – o corpo. Com esse raciocínio passamos o corpo para uma instância de entremeio – nem carne, nem sujeito, ao mesmo tempo carne e sujeito, sem o qual nada acontece, nem no “exterior”, nem no “interior”.
     Num quarto momento voltei-me novamente para Orlandi; desta vez para tratar de textos onde a autora propõe formulações sobre a escrita no corpo, um corpo que pareceu apropriado a uma teoria do discurso, por sua plástica simbólica, sua inscrição no urbano e de novo seu atamento ao território da cidade. Pensei, com todas as dificuldades para se circunscrever meu objeto, que o estudo da tatuagem como uma materialidade discursiva que se dá diretamente no percebível do sujeito (seu corpo e sua pele), tem as propriedades primeiras, para se tornar um exemplo tanto da carne participando da evocação do sujeito a partir do sentido, quanto do sujeito sendo desenhado nos contornos da carne.
     Devo encerrar esta apresentação me contentando com o fato de ter captado um certo sentido de corpo já existente para a AD, mas, também, de ter levado adiante essa prospecção ao ponto deste sentido ter se tornado, diria, um pouco mais visível. Contornos apenas, é verdade. Com certeza a passagem da carne ao corpo; ou a discursivização da carne em corpo, como tentei sensibilizar, só fez problematizar o corpo ainda mais. Soube, com a construção do texto, que o conceito de corpo no interior dos vários nichos de saber se apresenta multívoco, ambíguo e deslocando-se constantemente, inclusive retomando conceitos total ou parcialmente abandonados e mesmo conceitos contrários convivendo em uma mesma sociedade de pensamento. Isso tornou muito difícil a saturação do problema, no momento em que enunciamos nosso objeto de estudos. Serei direto: o corpo não é essa evidência que nossos olhos ou certas mídias nos impõem. Nem a carne é tão evidente, quanto algumas ciências nos fazem crer. E porque se apresenta insaturável, aquela passagem carne-corpo nos coloca problemas que só fazem enriquecer o tema.
     Sem uma materialidade linguística escolhida para mostrar a passagem da carne ao corpo, me auxiliei de autores, alguns bem caros à AD, que fizeram sozinhos grande parte do trabalho. Se falhei em mostrar aquela passagem, penso ter chegado, com esses autores, a uma carne teórica, condição para pensar o corpo discursivo.
     Outra báscula desse nosso estudo é que ao tentar visualizar a passagem da carne ao corpo – o corpo como o produto da discursivização da carne – parece que acabei por entrar num viés onde o corpo é condição sine qua non para a constituição do sujeito, ou mais exatamente, que a discursivização da carne constrói o sujeito. Não me pareceu, com isso que algo se perdeu; até mesmo entendo que algo se fixou daquilo que Orlandi já trazia de um corpo, que tal como a cidade, deve ser entendido pelo discurso. Se a báscula se impôs, talvez algo deva ser dito desta composição corpo/sujeito, onde a barra pode ser a representação da situação sui generis de um sujeito cuja aparição só se dá pela corporalidade – resultado da discursivização da carne infans.
     Outra dificuldade da proposta são aqueles fantasmas de um certo biologismo e desenvolvimentismo, espectros de psicologismo, que desde Pêcheux se vem conjurando no correr da constituição da Análise do Discurso. É claro que isso não justificava eu não tentar me desvencilhar ainda mais destes percalços em outros estudos. Winnicott com a inversão da adaptação ao meio, onde o meio é o bebê e não o mundo, onde a carne é que força o mundo a atendê-la me ajudou no primeiro lance.
     Ao fechar esse percurso, estou convicto, até por causa do quanto parcial acabou se dando a abordagem aos sentidos de carne e corpo, naquela passagem que me tomou a atenção, que o assunto pode e deve ser enfrentado com outros autores e confirmando a presença de um Lacan para entender-se melhor o que nos propõe Orlandi, sobre corpo, em seu livro Cidade dos sentidos, em seu artigo sobre a inscrição no corpo e no artigo sobre a textualização do corpo. Lacan pode ser evocado no seu dizer: a letra é a inscrição do significante no corpo (Escritos, 1998).
     Outro ponto: Ao propor o termo composto corpo-discurso (como um corpo discursivo ou corpo do discurso), ainda no começo da empreita, não sabia do fardo a ser transportado, quando se abre essa caixa preta das palavras. Mas que outro termo levantar para dar conta desse corpo estranho ao sujeito e caro ao Estado e Ideologia, onde está investido o capital social, tanto na forma do custo econômico de sua manutenção, mas também no custo moral de sua territorialização? Pode-se avançar nesta trilha onde o corpo é um investimento caro ao Estado, tanto na ordem do político, quanto na ordem do econômico, e isso já se entrevê no trabalho, quando falamos o que pensamos ser o estatuto do corpo para que tenha essa propriedade de estar investido na forma de capital social, capital concreto (os preços e custos de sua manutenção) e capital simbólico (cultural).
     Ainda me pergunto se ao colocar, em um segundo momento, a barra entre sujeito e corpo (corpo/sujeito) fiz algum progresso em entender as relações discursivas do sujeito com seu corpo; ao falar de tatuagem, tendo Orlandi como guia, comecei algo que acredito deve-se continuar, se se quiser ir adiante com os sentidos de sujeito cujo corpo é subjetividade. Inclusive me indago sobre uma certa aproximação entre a já consagrada noção de corpo pulsional e a de um corpo discursivo; já sei que um não recobre ou verga o outro. Mas não ouso saber as consequências dessa diversão (divergência) de sentidos. Pode-se-ia responsabilizar essa condição de corpo/sujeito pelo sentimento do sujeito saber-se, sentir-se, entender-se como sempre-aí? Ou seja, sua condição de ser sujeito-em-um-corpo é que lhe impõe o sentimento de existir desde sempre, prescindindo de prova mental disso, sendo um dos efeitos mais fundantes da ideologia?
     Projeto continuar com o entendimento do que chamei por discursivização da carne e me parece necessário desenvolver a idéia de um ambiente que se adapta ao indivíduo, aproximando tudo isso dos esquecimentos pechêuxianos, a identificação com uma formação discursiva, e incluir o corpo vivo (a carne) no processo de assujeitamento. Talvez eu devesse dizer que minha estranheza em perceber um corpo cuja materialidade é discurso, me faz propor que o corpo é estruturado como uma linguagem, embora não saiba das consequências teóricas ou do peso da afirmação ou mesmo se me descubro chovendo no molhado. Com tudo isso no espírito, iniciei estudos em Foucault, Agamben e outros, prospectando os procedimentos de controle social a partir do corpo.
     A todos obrigado, mais uma vez, esperando que essa breve apresentação tenha localizado minimamente nosso objeto de estudo facilitando questões, críticas e sugestões àqueles que não leram a dissertação*” .
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*Disponível em www.levileonel.com.br ainda sem uma correção ortográfica final. Título: O discurso encarnado: ou passagem da carne ao corpo-discurso.

segunda-feira, agosto 17

O discurso encarnado! Ou a passagem da carne ao corpo discurso.

O discurso encarnado:
ou a passagem da carne ao corpodiscurso
(Resumo de dissertação no programa de Mestrado em Linguística da UNIVÁS, sob orientação do Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini)
Levi Leonel de Souza
(Psicólogo, Psicanalista, Linguista, Terapeuta Corporal, Terapeuta de grupo)
Apresentação
Apresento aqui o percurso de minha dissertação de mestrado e algumas consequências de se falar do corpo do sujeito tendo como perspectiva os saberes da Análise do Discurso, numa pesquisa teórica. O objeto de estudo foi um problema enunciado como a passagem da carne ao corpo como efeito do discurso. Trago os rumos tomados para complexificar a evidência do corpo, uma vez que este aparece como instância nodal do sujeito nos diversos saberes, impondo que só há sujeito em um corpo. Esta aparição do corpo à frente de qualquer relação do sujeito com o mundo encobre sua gênese e constituição. Nesta constituição fica esmaecido que o corpo é, em primeira instância, ainda que teórica, carne. A carne passa a corpo por um processo, que chamei, naquele texto, discursivização da carne, trabalho realizado ciosamente pelos agentes ideológicos que cuidam de imaginá-la, esperá-la, erguê-la, educá-la, administrá-la, alocá-la em corpodiscurso. Todo esse longo processo de discursivização da carne – cuja gênese vem desde antes da concepção e nascimento do indivíduo, se estende por toda sua vida – e não se acaba com o desaparecimento da carne. Esse infinito trabalho e retrabalho do corpo é feito discursivamente e isso implica língua, linguagem, história, ideologia; tendo isso em jogo trouxe à cena as conquistas teóricas da Análise do Discurso, a partir de Pêcheux e Orlandi, autores fundamentais na dissertação, para entender e ampliar a compreensão do corpo como efeito de linguagem, consolidando sua apresentação como a corporificação do discurso. O corpo é a materialidade do sujeito apropriada pelo Estado, remarcado pelas instâncias ideológicas e enformado por uma dialética política. Tal processo erige a subjetividade, desde que entre em cena uma tela de sustentação ideológica, cujos nós são as famílias e seus valores históricos. Foi nesse entremeio que a dissertação buscou entrever o como se dá a discursivização da carne em corpo, em que lugar isso acontece, em que momento, em que presença. De Louis Althusser emprestei a máxima “indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia”, para desenvolver a idéia de que o sujeito é um efeito ideológico elementar. De D. W. Winnicott usei a expressão “preocupação materna primária”, estado especial da mãe ou de quem faz a maternagem, como o momento onde os efeitos ideológicos se fazem apresentar por meio do corpo maternante e da maternagem. Essa “língua” materna, faz com que a língua estrangeira – a língua do outro – se torne familiar, e que o sujeito, por meio da inscrição deste texto na carne, faça o processo de identificação ideológica. Relembrei, numa teoria do discurso, que este processo se dá no e com o corpo do indivíduo inicial, na carne nascente. Ao interpretar a carne para o bebê a instância maternante erige o corpo, e nessa construção surge o sujeito.
Introdução
A questão “corpo” me inquieta há décadas, quando das práticas de artes marciais, que anunciava um corpo constituído por certa malha de linhas (meridianos) de energia vital, primordial e universal, cujo centro se localizaria a alguns centímetros abaixo do umbigo (tanden, na versão japonesa ou tantien, na chinesa). Tal energia seria o Ki (versão japonesa) e Chi (versão chinesa) que penetraria o corpo, o animaria e desenvolveria suas potencialidades. Esse corpo vital seria o “organismo” real de todo indivíduo. Estudei, ainda, os seis pensamentos indianos, especialmente a doutrina Shakta, que tratava de um “corpo sutil”, cuja anatomia e fisiologia ocultas basicamente se desenrolam por seis, oito ou vinte e sete corpos1 superpostos ou envelopados um no outro, na forma de centros nervosos, que irradiam suas potências a todo o conjunto. Paralelamente, segui com uma instrução informal em técnicas corporais de origem reichiana e junguianas. Mais tarde, durante a formação em Psicologia, acabei me interessando pelas idéias freudianas de Donald Woods Winnicott2, sendo treinado e supervisionado em clínica psicanalítica, tendo como referências suas contribuições para um novo pensamento sobre psicossomática, com seu conceito de psicossoma, recolocando o corpo no centro de uma psicanálise eminentemente freudiana. Nestas alturas, já dialogava com o conceito sartriano de corpo, particularmente onde o corpo é um ser-para-o-outro, o ser das possibilidades, conceitos que problematizam a questão em outras direções, ainda em investigação. Desta trajetória, marcadamente envolvida com a corporalidade do sujeito, sempre me chamou a atenção aquilo que nomeei corpose – a aparição peremptória do corpo no meio da existência do sujeito. Ou, aquilo que usualmente se utiliza falar como somatizações – o psicológico adoecendo o corpo. Já me acostumara a ver, durante algumas análises pessoais, uma espécie de retorno da carne do corpo, inscrevendo nele as vicissitudes da simbolização.
Assim, pensando nessa difícil relação do sujeito com seu corpo, especialmente quando a carne se apresenta tão inolvidável, tentei ver se havia pertinência e importância em se saber dos destinos da carne na constituição do sujeito, pois no saber cotidiano falamos do corpo do sujeito quando falamos do sujeito ou da subjetividade. Mas poderíamos falar da carne do corpo, nessa tomada do sujeito por sua corporalidade? Poderíamos dizer que um dia o sujeito e seu corpo subsumiram-se à carne? Que houve um momento da carne e um segundo momento onde a carne se mostra como corpo-que-é-sujeito? Ou será que jamais o sujeito foi carne? Sua única experiência como existente é a de sujeito em um corpo? Se um dia foi carne, havia lá um sujeito?
A discursivização da carne
Para dar início a uma possível resposta a estas questões, operei com a seguinte proposição: haveria uma passagem da carne ao corpo? Poderia ela ser acompanhada, descrita e posta a operar em outros enunciados? Pensei que para enfrentar essa possível passagem deveria partir de uma teoria do discurso tal como a Análise do Discurso francesa pratica a partir de Michel Pêcheux e a Análise do Discurso florescida no Brasil, a partir de Eni Orlandi, com seu arcabouço epistemológico. Portanto, corpo, carne e sujeito, se é que se pode separar estas instâncias, deveriam ser abordados pela lente dos sentidos praticados em uma dada situação histórico-simbólica e linguístico-ideologicamente enformados.
Fiz, no correr do texto, um esforço teórico para entender a discursividade do corpo, onde a carne aparece imbricada desde sempre à ordem de um discurso, funcionando dentro de uma dada formação discursiva, em um dado espaço social. Não se pode vislumbrar o sujeito e seu corpo-carne fora de uma formação social, que por sua vez se atrela ao urbano, com veria em Orlandi (2007). Autores como Freud, Lacan, Winnicott, Althusser, me ajudaram a sustentar uma argumentação que se dava na presença do sentido de carne como um impossível de se ordenar, como a ponta do real no corpo do sujeito, surgindo como algo a se matar pela discursivização.
Devido a que a instância viva do sujeito, o real do corpo, é interpelada pela ideologia, e nessa interpelação surge o sujeito, segundo cria, pensei ser útil epistemologicamente, tratar dessa passagem. Essa asserção – a ideologia interpela o indivíduo em sujeito (Althusser 2007, p. 96) – me fez surgir o interesse de saber se não se trataria de uma interpelação da carne em sujeito pelo discurso, numa teoria do discurso. Também pensei que o fato de falarmos em um corpo discursivo, justificasse as afirmações de Orlandi, quando esta diz que o corpo do sujeito é atado ao da cidade.
Os sentidos de corpo
Para continuar investigando a passagem da carne ao corpo, por meio da discursivização da carne, quis, também trazer alguns sentidos de corpo praticados no correr da história, tais como túmulo na Grécia pré e clássica, autômato cartesiano, corpo-sujeito merleau-pontyano, corpo-prazer e corpo-carne foucaultiano, corpolinguagem e corpo pulsional psicanalítico. Sentidos estes que não foram substituindo um ao outro, como se houvesse um aperfeiçoamento, um progresso em direção ao melhor modo de ver o corpo. Na verdade vários deles, já milenares, continuam a vigorar, tanto nas religiões, quanto nas ciências em geral. Entretanto, isso indicou que tais sentidos não só apontam que o termo carne de há muito é referência para se contrastar com alma, subjetivo, sujeito, eu, pessoa, ser, e outros sentidos, e pode ser eivado de significados úteis a minha investigação. O sentido de carne pareceu ajudar a entender, por exemplo, a idéia de corpo como uma presença de entremeio – que fica entre dois sujeitos – uma idéia com a qual já me havia deparado em Sartre, mas que, com o resultado desta investigação ganhou em discursividade.
O discurso se faz carne que se faz discurso...
Em um certo momento do trabalho se tornou necessário perguntar como se dá a discursivização da carne. A aparição do indivíduo à ordem do discurso, pelo nascimento, sucede um longo estágio em que este era vivido pela mãe, que lhe emprestava o corpo para sua construção fisiológica. Neste período, que vai da concepção ao nascimento, em absoluta dependência, o indivíduo é um ente fora da ordem discursiva, desde o ponto de vista da carne – embora sua hospedeira se confunda com o mundo, atravessada pela linguagem – um coágulo discursivo na massa universal do discurso. Nela, vagarosa e resolutamente, uma nova coagulação, que virá a ser um sujeito respondente por um “eu”, começa sua aparição. Sabido que a carne não teve uma gênese a não ser teórica, essa pode ser uma maneira de ilustrar a máxima althusseriana “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”, à qual aludi no início da investigação.
Freud, em seu ensaio de 1923 (O “Ego” e o “Id”)3, propõe que o corpo é a primeira forma de consciência que o sujeito um dia possuiu, tratando-a como “a superfície do aparelho psíquico” (p. 2705). Aqui pensei que a superfície do corpo pode ser o campo de uma primeira discursivização, levando o eu a surgir do caos de sensações fisiológicas. O eu, como efeito de sentido do discurso, deriva, em certo sentido – antes da elaboração imaginativa, noção de Winnicott – das sensações corporais. Falando em termos da Análise de Discurso, não há, ainda, assujeitamento para que o indivíduo possa se espelhar, mas, trazendo Lacan à discussão, é verdade que a criança inicial já é atraída pelo rosto humano. Contudo, não há um eu ali, que possa dizer que o rosto visto se trata de “alguém” ou se parece com o eu; não há eu e nem há outro, como o próprio texto de Lacan o diz.
Todos os processos de assujeitamento da carne em corpo-discurso e a necessária ereção do sujeito, são desdobramentos da materialidade ideológica, e precisamente por isso não se pode considerar o sujeito como uma substância – podendo se incorrer no erro de interpretá-lo como uma essência. Pode-se, assim, dizer que o sujeito é uma coagulação da ideologia, cujo cerne é linguístico-histórico-simbólico, ou seja, discursivo. Contudo, mesmo considerando o sujeito algo de ordem constitucionalmente discursivo, parece que todo indivíduo detém algo da individualidade carnal. Se isso for verdade, estamos diante de uma versão daquilo que Freud afirmou a respeito do “eu” possuir alguma propriedade mais essencialmente individual a partir de sua carnalidade; o que seria individual e essencial no sujeito é a propriedade de ter sensações de que o eu é antes de qualquer coisa um ser corpóreo, derivando, em última instância, das sensações corporais, podendo-se considerá-lo como uma projeção do corpo. Além disso, essa carnalidade parece constituir algo essencial, tanto aquilo de biológico no indivíduo, quanto de ser a matriz daquilo que depois será o corpo/sujeito; a aposição da pele discursiva é “esperada” já desde de “dentro” da carne. Talvez se pudesse dizer que a carne se completa como corpo, porque “a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência [como uma] exterioridade que é mais constituinte do que constituída” (Lacan, 1998 p. 98) acaba por prefigurar sua “destinação alienante” (Idem), ou seja, seu assujeitamento e corporalidade. O filhote do humano só poderia desenvolver-se em sujeito social. Se não houver perturbações importantes do processo, a carne se tornará sujeito e responderá por um eu, pois desde sempre, já discursivizada, comparece apenas como acidente.
Registre-se que em Pêcheux e Orlandi, em sua evocação de uma teoria do discurso, a biologia e seus avatares (desenvolvimento, psicologia) se apagam, retornando na forma de real do corpo – a instância do gozo lacaniano relacionada delevelmente com a Coisa freudiana, que por sua vez é o vivo do corpo. Lacan mesmo o diz: há psicanálise de um corpo vivo que fala (Seminário 20). Quando Lacan passa da idéia de uma aliança entre Gozo e saber (seminário XVII), para o Gozo do corpo, nos pareceu que isso o encosta de novo na carnalidade como a fonte do vivo e nos leva a uma certa biologia, mas que resta delimitar e que dá para aproximar, de certo modo, ao que de biologismo e desenvolvimentismo encontramos em Winnicott. Embora possua traços de biologismo, o que não satisfaz uma teoria do discurso – não idealista, não psicologista, não desenvolvimentista e não biologista – seu biologismo é de uma ordem que podemos definir por “capacidade de existir” e definitivamente se apega à idéia de que todas as funções orgânicas, e aí se incluem os instintos, passam pela elaboração imaginativa, que por sua vez depende de uma interpretação suficientemente boa da mãe (de uma instância maternante), de que esta tenha saúde psicossomática suficiente para entregar-se à maternagem – estado que cunhou por “preocupação materna primária” - “episódio esquizóide, onde um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente” (Winnicott, 2000 p.401). Grifei da obra winnicottiana “ambiente especializado” porque a biologia winnicottiana, se posso me expressar assim, produz uma ou duas inversões que definem uma certa biologia psicanalítica, por assim dizer: a primeira é a inversão da adaptação – quem se adapta é o ambiente e não o organismo. E se trata de uma adaptação invisível para a mãe – a mãe como ambiente (a segunda inversão), pois esta se encontra em um “adoecimento” (que reúne clivagem e delírio) acessando sua experiência de vivências como bebê. E o ambiente “invertido” é que ele (o ambiente) é ela (a mãe) e não está lá fora e sim junto com o bebê, formando um – precariamente é verdade, mas nada que não possa levar as experiências acima citadas a formar um inconsciente – um sujeito.
Me pareceu vantajoso trazer um ambiente que é um com o indivíduo; ambiente que está apagado pela inscrição materna desde dentro, mas que funciona desde fora. Também parece que isso justifica a ordem do discurso surgir sem ter origem – ser eterna, portanto. Apaga-se uma dualidade entre ser e existir e disso surge um sujeito já identificado com o “ambiente”, mas não adaptado, e sim, atuante. Sem perturbações à carne, suas forças biológicas permitem o embebimento ideológico, deixando-se atravessar pela linguagem, erigindo um corpo e dessa construção surgindo um sujeito que responde por um eu. O eu, efeito ideológico elementar (Althusser, 2007), se referiria, assim, a um estágio de assujeitamento posterior aos primeiros momentos da carne, onde a ideologia vem de fora, mas como um “ambiente” não intrusivo, de tal modo que quem se adapta é a ideologia e não o indivíduo. A carne, devido ao seu status de real do corpo, que resiste à discursivização absoluta, contribui para a singularidade do sujeito, permitindo que a pensemos como o fator antecipatório daquele “eu sou”, que se dará como efeito ideológico elementar althusseriano. Nesse caso, a ilusão de eu (eu como efeito ideológico) só se constituiria a partir da matriz corporal que é a carne – um momento de unidade, um em-si-mesmo4, a coisa freudiana, sem distância entre suas partes, um conjunto não integrado de vivências, sem sujeito5. Seria o ser em contraste com uma existência. Me senti propenso a aceitar o assujeitamento ao discurso como a integração dos impulsos (termo winnicottiano) da carne, representando aquele estado onde o bebê é uno, mas não a si mesmo, uno à mãe, por que não se relaciona com nada mais; diria que naquele momento há unidade, mas não integração, reservando o termo integração para o momento em que há suficiente assujeitamento, de tal modo que possamos falar em um “sujeito a”.
A ideologia é proporcionalmente mais eficaz na medida da naturalização de sua eficácia. Me parece necessário evidenciar, até repetindo parte do já dito, sobre o campo da carne e do corpo, que a eficácia ideológica se deve ao fato de que ela é construída (sua base inconsciente mais importante) justamente no período de maior dependência da carne à tela de sentidos cautelares que a antecede e lhe é exterior. Nestas alturas parece que já se pode dizer que o efeito ideológico elementar, senão mais importante, pelo menos o mais visível, é o efeito-sujeito (si-mesmo) e já disse que suas raízes parecem estar fincadas na carne, aparecendo aos olhos o corpo-discurso – um corpo simbólico. Sua materialidade se dá na individualização pelo Estado, na injunção ao Direito e no sentimento de ser alguém – um eu que é cidadão e vive sob os auspícios da lei. O efeito si-mesmo não é apenas da ordem de “eu sou um eu”, mas sim da ordem de “eu sou este eu”, “eu sou quem sou”, “sou o que sou” garantindo que a dependência inicial da carne tenha um representante existencial suficientemente engajado em si mesmo para não ser apenas um representante ideológico (um procurador da ideologia), mas sim um sujeito que é especialmente ele mesmo (já apagado o efeito ideológico elementar). É certo que deverá ser de tal modo coincidente a expectativa ideológica com a reação da carne, que o resultado é um sujeito que se situa empiricamente, sem saber que não é origem, nem de si, nem de conhecimento. Esta é a eficácia ideológica. Este ego, que é um acordo entre a tela de sustentação ideológica e os tecidos vivos com suas necessidades interpretadas por esta tela, surge antes do sentimento de ser um eu sou. E é por isso que “o ego se oferece para estudo muito antes de a palavra [grifo nosso] si-mesmo ter relevância” (Winnicott 1983, p.55).
Outro detalhe dessa constituição ideológica do si-mesmo é que o indivíduo assimila, neste processo, inclusive um falso si-mesmo, que é instrumental, operacional, intelectual, para enfrentar as exigências sociais. Não se trata de uma labuta interna do sujeito para fazer prevalecer os verdadeiros valores e eliminar os falsos valores. De fato o si-mesmo defende-se das injunções de sentido por meio do oferecimento de um simulacro de si mesmo; este é que negocia e barganha certos sentidos, preservando intimamente aqueles que são verdadeiros (não no sentido transcendental ou do sujeito epistêmico), que fazem sentido naquela posição. Como o processo de constituição do si-mesmo (em seus aspectos verdadeiros e falsos) são da ordem do discurso, esta é uma licença para resistir à individualização pasteurizada que seria, no limite, o objetivo dos aparelhos ideológicos. De fato, se houvesse apenas um sentido a ser experimentado a experiência se desfaria e teríamos a vivência de um sujeito ensimesmado, paralisado, por falta de deslize semântico. Essa labuta interna entre falso e verdadeiro si-mesmo é um dos mais acabados produtos ideológicos; aparece nos contos infantis, no cinema moderno, nas lutas bélicas, nas conversas sobre o time do coração – tanto na defesa do melhor sentido, como no escondimento dos sentidos mais íntimos, negando-se a expor o “verdadeiro” eu. Esse sentimento de possuir uma preciosidade resguardada, que não pode ser atingida e que impulsiona o sujeito em direção à perfeição, talvez seja um deslizamento do sentido de “Há um” ou do “Gozo” lacaniano decantado da carne inicial. Contudo, somente depois de existir um sujeito é que se poderá discutir a pertinência deste jogo de sentidos.
A tatuagem
A tatuagem, seguindo o texto de Orlandi (2001) me pareceu ilustrar algum aspecto desta discursividade do corpo a partir da escrita na pele. O corpo discursivo é consequência dos sentidos praticados entre sujeitos; sua heterogeneidade discursiva – vinda da memória do dizer e das condições de produção dos sentidos faz com que as inscrições na pele sejam um modo de historializar os embates pelo sentido que se dão em suas entranhas. O texto no/do corpo obedecem as circunstâncias de enunciação específicas e dos efeitos de caos à flor da pele podemos entrever as regularidades e os deslizamentos do dizer. Nas inscrições na pele se faz furo no ideológico exatamente pela multivocidade do discurso do corpo: por um lado sua constituição carnal (ainda que teórica), que dificulta a possibilidade de captar discursivamente a presença do outro no sujeito, por causa do impossível do real (da carne); por outro, o discurso estrangeiro se mostra no corpo do sujeito, por meio de um texto pré-construído aquém e além. São textualizações do corpo que se apresentam como novas, mas guardam, por sua multiplicidade discursiva, um fator de incorporação de novos elementos, fazendo com que o sujeito veja algo no exterior. Heterogeneidade e pré-construído são essenciais para que se compreenda a possibilidade de que a vivência da carne possa vir a ser experiência subjetiva, nos termos da relação mãe-bebê que aludimos antes.
Se, de fato, as inscrições na pele fazem furo no simbólico, o fazem na e a partir da formação discursiva, que é a presença, no corpo, de uma certa escrita que anuncia uma certa formação ideológica, engajando língua e discurso, num conjunto mais ou menos regular de posições-sujeitos, de posições de classe, em conflito com outras corporeidades. Essa fonte de sentidos é definida a partir do Interdiscurso – vozes discursivas outras interferindo nos sentidos de um certo corpo, a partir de dentro de sua própria pele, penetrando-a; é a alteridade dentro do mesmo corpo, tornando-o heterogêneo6. Mas também faz furo pelo quanto de carne escapa do discursivo e a tatuagem pode bem ser um desses modos de tentar dar conta do real. Escrever na pele, insta a pensar no tatuado como proprietário do argumento e evidência do sentido de uma tatuagem; enquanto que foi evocada a inscrição como um acontecimento imbricado na escrita que fura a pele e constitui o subjetivo. A inscrição da letra no corpo, afetando a distância entre corpo e letra, traçando na pele “o traço sagrado da letra” (Orlandi, 2001), fechando o corpo com sentidos ocultos aos outros, fazendo do corpo um amuleto da sorte; do destino, por conseguinte. Usando as tatuagens como pontuações que visam o olhar do outro, empreendem um trabalho de construção de fronteiras, de cercas, que tanto protegem quanto aprisionam, nesse deslize constante do significante. Rabiscam suas letras dentro da carne na tentativa de conter o significante, de dar conta de um “transbordamento de um excesso de linguagem o tempo todo visível sobre o sujeito, que passou à necessidade de um excesso de marcas visíveis em si mesmo” (idem).
Concluindo
Ao colocar ponto final na dissertação acreditei poder acrescentar a meu favor ter captado um certo sentido de corpo já existente para a Análise do Discurso e de ter levado adiante essa prospecção ao ponto deste sentido ter se tornado, digamos, ainda um pouco mais visível ao leitor. Com certeza a passagem da carne ao corpo; ou a discursivização da carne em corpo, como vimos tentando sensibilizar, só fez problematizá-lo ainda mais, dentro de vários programas de saber. Sem uma materialidade linguística escolhida para mostrar a passagem da carne ao corpo, pois fiz uma investigação eminentemente teórica, acabei tendo dificuldades em demonstrá-la, mas penso ter chegado a uma carne teórica, condição para pensar o corpo discursivo. Outra báscula se deu ao tentar visualizar a passagem da carne ao corpo – o corpo como o produto da discursivização da carne – parece que acabei por entrar num viés onde o corpo é condição sine qua non para a constituição do sujeito, ou mais exatamente, que a discursivização da carne constrói o sujeito. Não me pareceu, com isso que algo se perdeu e sim que algo se fixou daquilo que Orlandi já trazia de um corpo, que tal como a cidade, deve ser entendido pelo discurso. Se a báscula se impôs, talvez algo deva ser dito, em futuras investigações, desta composição corpo/sujeito, onde a barra pode ser a representação da situação sui generis de um sujeito cuja aparição só se dá pela corporalidade.
Outra dificuldade da proposta foram os fantasmas de um certo biologismo e desenvolvimentismo, espectros de psicologismo, que desde Pêcheux se vem conjurando no correr da constituição da AD. Se aparecem em meu texto se deve a que os autores evocados, propõem um certo biologismo (e com isso um certo psicologismo). Mas, em todos eles trata-se de uma biologia que não se solidariza, com a biologia, digamos, clássica. É claro que isso justifica fazer novas tentativas de me desvencilhar destes percalços e isso faz parte de meu programa de pesquisas futuras.
Finalmente, enumero um certo tanto de pontos que já começo a trabalhar na compreensão do corpo discursivo. O estudo da subjetivização foucaultiana está nesta direção, bem como sua pesquisa, inacabada sobre a substância ética sexual. Neste momento estudo a administração biopolítica e o biopoder sobre os corpos vivos dos sujeitos (Foucault, Deleuze, Agamben). Me parece que será necessário estudar a constituição da cidade para saber dos destinos do corpo e do sujeito. Outro apontamento se define ao propor o termo composto corpo-discurso (como um corpo discursivo ou corpo do discurso); agora devemos prospectar na Análise de Discurso o estatuto do corpo, seguindo os apontamentos de Orlandi e Pêcheux, bem como da psicanálise de extração lacaniana num diálogo com Winnicott. Que outro termo levantar para dar conta desse corpo estranho ao sujeito e caro ao Estado e Ideologia? Ainda nessa direção, me pergunto se ao colocar a barra entre sujeito e corpo (corpo/sujeito) fiz algum progresso em entender as relações discursivas do sujeito com seu corpo. E ao falar de tatuagem, tendo Orlandi como guia, comecei algo que acredito deve-se continuar, se se quiser ir adiante com os sentidos de sujeito cujo corpo é subjetividade.

Referências bibliográficas (para este texto)
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GADET, Françoise e HAK, Tony Por uma análise automática do discurso. 3ª edição Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997.
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HENRY, Paul A ferramenta imperfeita. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992.
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WINNICOTT, Donald Woods A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
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______, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
1Segundo o erudito Kumbharípava, nos manuscritos do Rajastão Ocidental, na Índia, apresentados na obra Corps subtil et corps causal (Tara Michël).
2Psicanalista inglês falecido na década de setenta, trabalhou como psiquiatra pediatra por várias décadas.
3Para tais referências usei: Obras completas de Sigmund Freud Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, Cuarta edicion, 1981 (tradução direta do alemão por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres).
4Em Sartre é dividido em Em-si e Para-si; no Em-si há unidade – o ser é o que é, sem distância a si.
5Winnicott fala de não-integração/integração; no primeiro o bebê não sofreu ainda a tentativa de integração pelo pensar os pensamentos; não há concernimento (Winnicott, 1983, p.59)
6Uma maneira de dizer isso o fizemos quando dissemos de um corpo, uma mente, uma vida para dois, seguindo Winnicott. Proporcionalmente inverso a dizer que no amor sexual há dois corpos para um (algo que não cabe desenvolver aqui).

terça-feira, agosto 11

A divina comédia – canto I: “Surgiu depois uma loba muito mirrada e ameaçadora; ela guardava as ambições sórdidas que levavam muitos homens à miséria. Dominado pelo medo que seu terrível aspecto me infundia, acreditei que não seria capaz de chegar ao alto da colina... e nisso assemelhei-me ao homem que, visando em tudo apenas lucro, explode em pranto se perde em vez de ganhar.”
Sem tardar, ainda no início do Canto I, Dante já nos anuncia seu empreendimento: listar os grandes e pequenos pecados que movem a humanidade, e descrever, minuciosamente, os castigos que cada um merece pela perfídia cometida. Resolveu começar já localizando aquele tipo de gente “que sente mais fome, depois que come”, completamente abatidos pelo desejo “do ouro e do poder”. São feras que fazem gelar o sangue até de Virgílio, e jamais saciam o apetite. “Com muito seres semelhantes ela [a loba insaciável] se acumplicia, e assim continuará fazendo até que a enfrente o galgo que haverá de lhe dar morte medonha”.
Isso me lembra os especuladores da bolsa, os atravessadores, alguns senadores e uma legião de exploradores do erário. São as lobas dantescas, mirradas e ameaçantes, sangrando sem dó, concupiscentemente, sem um pingo de vergonha, a seiva monetária da nação.
Pena que Dante Alighieri tenha usado uma loba para representar tais energúmenos; creio que não haja outro ser vivo que possa representar a sede de ouro e ostentação de uns certos homens... deixemos a loba para, no máximo, representar aquela que alimentou os fundadores de Roma, cidade que, me parece, Dante não conheceu, vivendo em Florença, depois exilado em lugares e com gente que de certo modo reencarnou por aqui...

segunda-feira, agosto 3

"O homem não coincide consigo mesmo" - II

Continuo com a frase de Dostoiévski. Não a do título da postagem de 10 de julho, mas uma outra em que ele disse algo assim: se Deus não existe tudo é ou será permitido. Antes, porém, quero voltar à frase “O homem não coincide consigo mesmo”. Em Sartre o homem é aquilo que não é e não é aquilo que é; ou a consciência é consciência de, impondo que ser consciente é ser consciência de algo, de situação, de tempo, de desejo – mas, principalmente consciência do outro e não de si mesmo. O sujeito é consciência de tempo, e por causa disso, está sempre noutro tempo que não é aquele que diz estar – se diz do futuro, está no passado; se fala do passado está no futuro; se quer viver o presente condena-se a viver atrasado em relação a si mesmo; se tenta atualizar-se frente a si mesmo atrasa-se no ato mesmo da atualização. Mas que se diga: consciência de tempo não como uma essência hominal olhando para o tempo; e sim um sujeito cuja subjetividade é constituída pelo tempo, nem antes nem depois; um sujeito em que o tempo é essencial, sem ser sua essência, pois o homem não possui essência ou substância, e é isso que faz com que crie um sujeito com o qual não coincide. No limite, cria um deus, com o qual jamais coincidirá, para que se cumpra o sentimento obscuro de não poder dizer o que de fato é.
Aqui retorno sobre ser permitido tudo ao homem que não acredita em um deus. Nada mais falso; isso é criação das ideologias religiosas, que precisam da submissão do religioso para manutenção de seu poder econômico e político. Se um homem não acredita em um deus pode livremente destinar suas forças econômico-políticas para o... político! Não terá mais que fazer sucesso para as massas, ou uma ideologia do fetichismo de mercadoria. Além disso, poderá construir uma vida ética, onde suas forças pessoais são todas dirigidas ao cooperativismo, comunitarismo, associativismo, que são as bases para uma desobediência civil ao deus-mercado – deus que é a forma material do deus das religiões mono e politeístas. A pergunta que se faz é se com esses dois argumentos iniciais – de uma série de outros – se o homem sem deus não seria uma evolução para um homem verdadeiramente politico, cidadão, ético, desprendido do capital, naquilo que o capital o empobrece – numa certa tradição de seres políticos que são representados, coincidentemente, pelos personagens ateus da história. Sartre encabeça esta lista, a meu ver. E isso não o tornou alguém a quem foi permitido tudo, por não acreditar em um deus. Também devo lembrar que algumas sociedades produziram movimentos históricos onde não há deus, o budismo por exemplo, e nem por isso não deixaram de produzir altos extratos morais. Por um lado, Sartre, se preocupou em escrever sobre moral como responsabilidade, cuja morte interrompeu o projeto; e os budistas com sua não-violência inspiram muitos grandes nomes na busca por um mundo melhor que este que o religiosismo monoteísta (principalmente) nos legou. Não sou budista, mas creio que eles representam bem a vida ética que se pode produzir por meio da desistência de fé em deuses.

sábado, agosto 1

A náusea segundo Sartre!

Cai a noite. No primeiro andar do Hotel Pritania duas janelas acabam de se iluminar. O canteiro de obras da Nova Estação cheira intensamente a madeira úmida: amanhã choverá em Bouville. É assim que se encerra A náusea. Antoine Roquentin, um sujeito ruivo, que estava sempre nos cafés, está lá, na estação, encurvado, sombrio, aguardando o trem para Paris. Olha para aquelas janelas somente como um meio de ocupar os olhos; nada há lá que o atraia, que lhe diga respeito. Já começa, ali mesmo, tendo no fundo da mente a melodia de Some of these days, a escrever em páginas mentais o livro que, entediado e cansado escreverá, tentando não se sentir existindo, na esperança de que - depois de escrita - esta obra o livre daquela repugnância mole e pegajosa de existir.

sábado, julho 25

O Teatro Municipal de Pouso Alegre e o pousoalegrense!


Cremos ser adequado introduzir o sentido discursivo de cidade para que o advento do Teatro Municipal mostre sua complexidade e, com isso, sua colaboração na constituição do sujeito pousoalegrense. Mas não se trataria aqui de falar da cidade sob sua instância jurídica, ou política, ou territorial, e sim, colocarmo-nos uma outra forma de entender a cidade – pelo discurso – tal como nos apresenta Eni Orlandi em sua obra Cidades dos sentidos (2004). Além disso parece muito útil trazer o conceito de documento como monumento (Paul Zumthor citado por Jacques Le Goff in História e memória), onde aquele teatro passa a monumento da cultura, mas principalmente monumento-memória com o tombamento histórico de 1999. Ao aproximarmos uma teoria do discurso, tal como nos apresenta Eni Orlandi (1993, 1996, 1998), a partir de Pêcheux (1969, 1975) do sentido de documento como “monumento”, pensamos que acabaremos alcançando melhor o significado do Teatro para a cidade de Pouso Alegre.
Na teoria do discurso pechêux-orlandiana, a memória de uma cidade é discursiva, implicando nisto, que ela é construída socialmente, historicamente, a partir de condições de produção políticas, isto é, das relações de força entre os vários extratos sociais e as várias conformações do urbano – administrativas, econômicas e legislativas, principalmente. Por outro lado, o conceito de documento-monumento implica “sua utilização pelo poder (LE GOFF p. 535) como um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”. Parece bem claro, salvo engano, essas relações de poder, nas várias reportagens ou matérias e notas do Jornal de Pouso Alegre, dando notícia do que se fez com o teatro e da revolta de certas vozes discursivas contra os destinos que se queria dar ao prédio do teatro. Para Le Goff "importa não isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte” (p. 538). E isso é possível, nos parece, se entendermos o conjunto de monumentos como o conjunto de memórias que formam a cidade, o sentido do que é citadino, seu território, o político e o jurídico.
Se olharmos para a cidade pela lente do discurso sua arquitetura passa a funcionar como um dispositivo de memória, e talvez possamos dizer, a partir de Orlandi, que a “cidade e [seu] território são solidários” (op. cit., p.11), e podemos acrescentar: uma parte significativa do território se apresenta na forma de edificações. Daí que o conjunto de edifícios representa muito bem o percurso da memória de uma dada cidade. Memória viva, ambivalente, deslizante, heterogênea, discursiva, então. E se “o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um” (idem), os sujeitos de uma cidade formam corpo com sua arquitetônica e com seus edifícios. E se a arquitetônica é a memória discursiva de uma cidade, uma arquitetura em particular, um edifício em particular, é um nicho de administração do discurso, ou melhor, das relações de poder que se dão no teatro citadino. A cidade e sua arquitetônica é o teatro de operações dessas transações de sentidos, dos trânsitos de sentidos por entre seus espaços físicos. Assim, podemos falar em materialidade do discurso por causa (entre outras causas), da materialidade da memória. Do cimento, dos tijolos, da ferragem e da argamassa da memória social podemos ver, de fato, os edifícios e seus significados, gravados, esculpidos, moldados a partir de um certa ordem discursiva. Ordem esta simbólico-histórica. E já podemos nos perguntar, sem adiantarmos mais, de que sujeito pouso alegrense tratamos ao tocarmos em sua memória-teatro (teatro-memória?).

quarta-feira, julho 22

Bíos e Zoé!

"Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Quando Platão, no Filebo, menciona três gêneros de vida e Aristóteles, na Ethica nicomachea, distingue a vida contemplativa do filósofo (bíos theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política (bíos politicós), eles jamais poderiam ter empregado o termo zoé (que, significativamente, em grego carece de plural) pelo simples fato de que para ambos não estava em questão de modo algum a simples vida natural, mas uma vida qualificada, um modo particular de vida" (Agamben, O poder soberano e a vida nua - I,2007).

De fato, ainda usamos o singular para significar "a vida" em termos de energia vital, se quisermos ser o mais rigoroso possível ao separar a vida estética, o discurso, a vida como laço social, daquilo que comumente dizemos por tempo de vida; mas também usamos vida, no singular, para representar toda a saga de um pessoa pelo mundo ou mesmo suas vivências mais íntimas etc. Podemos dizer que vida neste sentido é a biografia, a cultura ou a coleção de desejos de um indivíduo em particular. Mais a frente, Agamben tenta nos informar que contemporaneamente, a vida enquanto fisiologia é que está cada vez mais em questão e não as biografias... De que trata esse "retorno" à pele? Parece que cada vez mais nos importa o "renew" de certa marca de cosmético, em detrimento dos platonismos: consciência, responsabilidade, prazer estético, contemplação, vida política, profundidade da alma... Talvez já não nos curvemos - para o bem e para mal - à ditadura platônica do conhecimento acima de tudo. O que será que isso pode nos informar e aonde nos levará? Espero (como se fosse um platônico, o que não sou) que isso nos leve a um materialismo sartriano. Depois tentarei me explicar.

quinta-feira, julho 16

Vó Pina e o assento cinza (azul?)!

Vou tentar reproduzir a Vó Pina: "É esquisito, mas nos vagões do metrô, e desconfio que nos ônibus também, existem assentos com cor cinza ou azul. Dizem que é para os velhinhos sentarem! É o fim do mundo! Como sempre, a discriminação - velhinhos tem seu lugar destinado, e não espalhados pelo mundo que é aonde vivem. Mais absurdo ainda é ouvir uma voz eletrônica dizendo: 'Obrigado por respeitar o assento preferencial!' Imagine que eu tenho alguém agradecendo por mim a alguém que me "cedeu" seu lugar nos bancos! E isso já se naturalizou. Ninguém precisa ceder lugar se os bancos diferenciados já estão com sua cota de cambitos. Aí, aqueles jovenzinhos com MP-alguma-coisa nas orelhas, ou fascinado por um celular raio colorido-não-sei-o-quê, nem olham prá gente. Mas não serei parcial... todos, de qualquer idade, fazem cara de paisagem e continuam em seus, como sempre digo, 'imundos íntimos'. Problema do velhinho que não chegou antes e sentou no seu lugar! Este é mais um item no qual regredimos nas últimas décadas: cadê aquele sentimento bom de fazer um carinho, ou no mínimo um pouco de piedade pelo peso do fardo de carregar um corpo septuagenário e não raro octogenário. Cuidado urbanos! Os cidadãos de São Paulo envelhecem drasticamente e loguinho será você reclamando! Aproveito para anunciar que vou criar um movimento contra os bancos preferenciais. De hoje em diante sou monotônica. Só vejo uma cor: a cor da inclusão, da urbe. E isso é só a ponta do iceberg. Levarei um susto monumental (eu gosto de 'monumental'), quando um jovem me ceder seu banco apenas porque é urbano! Mas farei cara de quem viu a coisa mais natural do mundo e só farei um gesto delicado de cabeça, agradecendo. Afinal, é sempre com esforço que fazemos algum carinho àqueles que não frequentam nossa sala e cozinha, não é, bisneto?" E eu: "É sim, Vó Pina!" Pensando se entro na campanha dela para abolir-se os indefectíveis assentos azuis (cinzas?). Aí tive uma iluminação.., uma fulguração.., como dizia Sartre. Vamos pintar todos os assentos de azul (cinza?)!!!

quarta-feira, julho 15

O discurso encarnado:ou a passagem da carne ao corpodiscurso

Resumo técnico da dissertação de mestrado em Análise do Discurso-UNIVÁS

Apresento aqui o percurso de minha dissertação de mestrado e algumas consequências de se falar do corpo do sujeito tendo como ferramentas os saberes da Análise do Discurso, numa pesquisa teórica. O objeto de estudo foi um problema enunciado como a passagem da carne ao corpo como efeito do discurso. Trago os rumos tomados para complexificar a evidência do corpo, uma vez que este aparece como instância nodal do sujeito nos diversos saberes, impondo que só há sujeito em um corpo. Esta aparição do corpo à frente de qualquer relação do sujeito com o mundo encobre sua gênese e constituição. Nesta constituição fica esmaecido que o corpo é, em primeira instância, ainda que teórica, carne. A carne passa a corpo por um processo, que chamei, naquele texto, discursivização da carne, trabalho realizado ciosamente pelos agentes ideológicos que cuidam de imaginá-la, esperá-la, erguê-la, educá-la, administrá-la, alocá-la em corpodiscurso. Todo esse longo processo de discursivização da carne – cuja gênese vem desde antes da concepção e nascimento do indivíduo, se estende por toda sua vida – e não se acaba com o desaparecimento da carne. Esse infinito trabalho e retrabalho do corpo é feito discursivamente e isso implica língua, linguagem, história, ideologia; tendo isso em jogo trouxe à cena as conquistas teóricas da Análise do Discurso, a partir de Pêcheux e Orlandi, autores fundamentais na dissertação, para entender e ampliar a compreensão do corpo como efeito de linguagem, consolidando sua apresentação como a corporificação do discurso. O corpo é a materialidade do sujeito apropriada pelo Estado, remarcado pelas instâncias ideológicas e enformado por uma dialética política. Tal processo erige a subjetividade, desde que entre em cena uma tela de sustentação ideológica, cujos nós são as famílias e seus valores históricos. É nesse entremeio que a dissertação buscou entrever o como se dá a discursivização da carne em corpo, em que lugar isso acontece, em que momento, em que presença. De Louis Althusser emprestei a máxima “indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia”, para desenvolver a idéia de que o sujeito é um efeito ideológico elementar. De D. W. Winnicott usei a expressão “preocupação materna primária”, estado especial da mãe ou de quem faz a maternagem, como o momento onde os efeitos ideológicos se fazem apresentar por meio do corpo maternante e da maternagem. Essa “língua” materna, faz com que a língua estrangeira – a língua do outro – se torne familiar, e que o sujeito, por meio da inscrição deste texto na carne, faça o processo de identificação ideológica. Relembrei, numa teoria do discurso, que este processo se dá no e com o corpo do indivíduo inicial, na carne nascente. Ao interpretar a carne para o bebê a instância maternante erige o corpo, e nessa construção surge o sujeito.
Soube, com a construção do texto, que o conceito de corpo no interior dos vários nichos de saber se apresenta multívoco, ambíguo e deslocando-se constantemente, inclusive retomando conceitos total ou parcialmente abandonados e mesmo conceitos contrários convivendo em uma mesma sociedade de pensamento.
Problemas: ao tentar visualizar essa passagem – como produto da discursivização da carne – parece que acabei por entrar num viés onde o corpo é condição sine qua non para a constituição do sujeito, que a discursivização da carne constrói o sujeito. Entendi que algo se fixou daquilo que Orlandi já trazia de um corpo, que tal como a cidade, deve ser entendido pelo discurso. Talvez algo deva ser dito desta composição corpo/sujeito, onde a barra pode ser a representação da situação sui generis de um sujeito cuja aparição só se dá pela corporalidade – resultado da discursivização da carne infans. Outra dificuldade da proposta são os fantasmas de um certo biologismo e desenvolvimentismo, espectros de psicologismo, que desde Pêcheux se vem conjurando no correr da constituição da AD. Agamben (em Estado de Exceção), ao dizer que não “existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como estado de natureza, [ou que] a vida pura e simples é um produto da máquina e não algo que preexiste a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino”, nos abre espaço para que em futuros aportes ao corpo o entendamos como pré-existente à carne, ou seja, a carne é uma invenção ideológica, algo que apontei na dissertação, mas não segui com consequencias mais profundasi. Isso implica um sujeito cuja carne é uma invenção linguístico-histórico-ideológica, já objeto da psicanálise, e que pode ser pesquisado pela lente do discurso.
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*Orientada pelo Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini.
iO Prof. Dr. Ronaldo Martins já apontara esse problema durante a apresentação do texto.

sexta-feira, julho 10

O homem não coincide consigo mesmo!

“O homem não coincide consigo mesmo” (Dostoiévski), citado em Situações I, de Sartre, na introdução de Bento Prado Jr. (Sartre e o destino histórico do ensaio). Concordo, em princípio, mas não tenho certeza de que na mesma perspectiva de Dostoiévski. Esse “si mesmo” que nos traz vem de um homem que disse que se Deus não existe, tudo é possível, no sentido que aí então se instala o sem sentido, a anomia, o caos – portanto, um homem profundamente cristão e teísta (veja a definição de teísta aqui mesmo em postagem anterior). Me parece a própria condição humana, a de não coincidir consigo mesmo; mas deixe-me precisar: o sujeito não coincide consigo mesmo por que não há um si mesmo substancial, empírico, epistêmico para que ele seja o mesmo, um em-si, quero dizer que o homem olha para si e não vê a si mesmo, por que não é uma coisa. Esse si mesmo é um efeito ideológico (nos termos de Althusser, Pêcheux, Orlandi), um construto histórico, uma ilusão referencial. Um teísta deve acreditar que o homem é uma substância, e que se não coincide consigo mesmo é por causa dessas trágicas experiências que advém do livre arbítrio insuflado no homem por Deus. Mas, pelo menos em tese - se tudo correr bem - se acreditar em Deus acontecerá de lhe ser revelado Deus – coincidindo consigo mesmo! Bem sei que essa é uma heresia! A revelação cristã não faz coincidir o cristão com Deus, mas o que levanto aqui é que se houver uma coincidência de substâncias é por que então a criatura coincide com o criador. Enfim, há muitas críticas ao que argumento aqui. A mais elegante de todas é de que sou espinosista... É chique, e educado, mas não chega perto do que estou tentando dizer... O sujeito de que falo é efeito da história, contudo é um efeito de profundidade, onde até sua certeza de que é um si mesmo é produto do frigir das forças ideológicas.
Se o homem não coincide consigo mesmo, isso não se dá por um dificuldade especial para que entre em contato com sua verdadeira essência; mas sim por que não há uma verdadeira essência a ser atingida. O que não quer dizer que o homem não possa se sentir verdadeiro, intenso, consistente (mesmo sem substância), o que merece outras linhas...

terça-feira, junho 30

Os pontos de vista da Índia!

Conceitos indianos mais comuns (texto escrito para os cursos de Terapêutica Samkhya 1990-2000 - inédito)

Apresentação

Essa obra foi escrita na forma de um dicionário comentado, com temas da medicina, filosofia e psicologia indiana. Minha busca primeira, nesse empreendimento, foi o de realizar uma comparação entre os vários sistemas filosóficos indianos e com isso promover maior intimidade com a matéria exposta em cada verbete.
O objetivo secundário, porém mais ousado e importante foi, explicitamente, o de construir metáforas para colaborar com conceitos psicológicos ocidentais que fundamentam as teorias psicanalíticas e existenciais, já consagradas e utilizadas em psicoterapia e análise existencial. Provavelmente terapeutas de várias filiações teóricas poderão utilizar os conceitos aqui levantados, mesmo que um dia eles tenham sido especificamente objeto de estudos dos cursos para formação de terapeutas Samkhya, no Ashram de Levi Leonel (1990-2003). Na época utilizei-me de um conceito organísmico de ser humano para fazer adaptações do pensamento indiano ao meu projeto de trabalho, publicado como Terapêutica Samkhya – TS, no início dos anos noventa e depois uma parte em livro (Energia Vital, Ed. Roka, 1999).
Inicialmente apenas os alunos de cursos livres de terapias psicológicas e psicocorporais criados por mim, utilizaram tais metáforas e teorias. O ensino livre destas idéias teve sustento na convicção de que outros profissionais e leigos também poderiam manipular tais conceitos para proveito próprio, tanto no crescimento pessoal, quanto profissional. Foi assim que surgiram grupos de terapeutas Samkhya e analistas leigos com grande poder de interpretação das vivências de seus clientes, bem como uma legião de clientes e estudantes independentes1, que quase formaram um movimento, não fora minha obstinação em manter a TS dentro dos limites do atendimento terapêutico.
Assim, ao iniciar a leitura de uma palavra e seus significados, a primeira expressão será uma aproximação o mais literal e exata da palavra transliterada do sânscrito para o português. Logo em seguida ela é usada em um ou mais contextos doutrinários indianos, dando a você os meios para entender suas relações com o conceito organísmico2de pessoa, bem como entre os pontos de vistas indianos antagônicos. Não raro perceberá que me dirijo especialmente aos conhecedores mais íntimos de minha trajetória, uma vez que, inicialmente, o texto fora redigido para eles.

Prefácio

Por anos produzi textos com o objetivo de auxiliar curiosos apaixonados ou pesquisadores profissionais da psicologia, filosofia, antropologia, sociologia e terapeutas influenciados pelas filosofias indiana, a desenvolver uma visão ampla e crítica dos vários conceitos advindos das filosofias indianas. Sempre soube que diferentes grupos usam o mesmo termo para significar coisas diferentes e isso coloca-os estudantes em sérias dificuldades para expressarem-se usando tais termos.
Quando se aborda um nova teoria de trabalho, filosofia, visão de homem ou tradição cultural é necessário pensá-la por meio de um thesaurus – um vocabulário onde palavras já conhecidas por nós são evocadas em sua nova significação. Com essa nova “energia” cada palavra poderá ser muito melhor contextualizada, evitando-se as situações onde uma expressão nada ou pouco tem a ver com o conteúdo de uma afirmação. Imagine quando isso se refere a outra língua. Essa dificuldade multiplica-se; é com essa determinação que proponho uma releitura das principais palavras-conceitos utilizadas pelos terapeutas holísticos, pelos psicólogos e até mesmo por profissionais especializados em tradições indianas. Fico escusado aqui de pertencer ao mundo ocidental e fazer uma leitura crítica do sentimento indiano sobre o que é o viver e não poderia ser diferente, uma vez que meu pensar é inextricavelmente embebido em fontes ocidentais, ainda mais na condição de psicólogo e linguista.
Nesse afã é imperioso que se saiba o mais exatamente possível o que significa cada palavra das mais usuais, quais seus limites e quais suas implicações. Por isso você encontrará aqui palavras usadas por adeptos do Vedanta, Vaisheshika, Purva mimansa, Niaya, Samkhya e Yôga (os seis pontos de vista indianos) grafadas e pronunciadas exatamente do mesmo jeito, no mesmo contexto e sobre o mesmo objeto, mas com significados diferentes, porque seus usuários têm formações culturais díspares.
Fica bem claro que a formação cultural, com suas facetas, familiares, religiosas e morais é que determina o uso de uma palavra para um certo resultado dentro da consciência do ouvinte. Tomemos como exemplo, a palavra kundaliní, que literalmente significa “a enroscada”; ela é usada para representar uma força espiritual, divina, estabelecida dentro do corpo, em lugares mais ou menos variáveis. Claro está que se trata de um grupo espiritualista, que acredita em um Deus e em uma força divina que pode ser localizada em geral na base da coluna. Para outros grupos ela é apenas uma misteriosa força nervosa utilizada para promover saúde e expansão das percepções humanas para limites desconhecidos. Trata-se de uma visão materialista da kundaliní, própria para adeptos do Samkhya de Kápila e linhagens de Yôga advindos dos povos indianos dravídicos, pré-clássicos, autóctones – em contraposição aos adeptos espiritualistas. Diga-se de passagem que a materialidade da kundaliní, sob o ponto de vista Samkhya e Tântrico, é muito útil para uma visão organísmica de ser humano. Este é um exemplo de como seriam tratados os conceitos mais utilizados na Índia, bem como as adaptações necessárias para se entender o que é uma terapia organísmica.

Como ler essa obra
Ao ler os textos, você encontrará palavras transliteradas do sânscrito em itálico; isso se refere a palavras que se encontram melhor explicadas abaixo de um título específico para elas, ampliando os usos do termo.
Além disso insisti na transliteração, grafando as letras com os sons usuais em inglês, para em seguida apresentar o som em termos de fonemas do português do Brasil, que, aliás, é uma língua aparentada com o sânscrito. Atente bem para as letras que se seguem e sua pronúncia aproximada.
a = pronúncia de a em cama
á = pronúncia de á em ágata
e = pronúncia de é em terna/ é em fera
i = pronúncia de i em dizer
í = pronúncia de í em sílaba
u = pronúncia de u em intruso
ú = pronúncia de ú em túnel
r = pronúncia de r em forte e porta
l = pronúncia de l em leveza
ai = pronúncia de ai em taipa
au = pronúncia de au em nau
o = pronúncia de o em soma
ka = pronúncia de ca em casa
ga = pronúncia de ga em gado
na = pronúncia de na em navio
cha = pronúncia de tcha em tchau
ja = pronúncia de dja em Djavan
nh = pronúncia de nh em estranho
ya = pronúncia de ia em chiado
Ra = pronúncia de ra em aranha
Sha = pronúncia de xa em faixa
ha = pronúncia de ha em horse (inglês)
Pronúncias aproximadas de sons mais complexos: kha(krrá), gha(grrá), cha(tchá), jha(djrrá), tha(trrá), dha(drrá), pha(prrá), bha(brrá). Além disso, teremos as seguintes aproximações: ta(tá), da(dá), na, la, sa, falando-se apoiando a língua logo na raiz dos dentes anteriores superiores, perto do céu da boca.

Quanto a pronúncia e o uso do sânscrito nesta obra
Em geral as pessoas simpatizam-se imediatamente pelo som das palavras em sânscrito que permeiam a literatura indiana e as lêem sem maiores resistências, mesmo que cometendo alguma gafe na pronúncia. Tais expressões reforçam a aura mitológica da Índia, transportando o leitor para a atmosfera dos ashrams dos mestres, do solo daquele país, da cultura de seu povo. Isso parece o bastante para que a maior parte dos interessados nas filosofias indianas conviva muito bem com os sons dessa língua morta, usada apenas para a comunicação de conceitos e técnicas reservadas ou secretas, ou ainda nos colóquios de eruditos orientais e nas teses de pesquisadores ocidentais. Daí que palavras como karman, dharma, kundaliní, yôga, ahimsá, ánanda, nirvána, prána, chakra, áshram, mantra, deva, hatha, mahárája, mahátma, mudrá, mandala, máyá, samádhi, Rishi ou rsh, shakti, guru, tantra e mais uma dezena de outras menos conhecidas já fazem parte do dia a dia de milhares de leitores, admiradores e praticantes das artes medicinais e filosóficas indianas.
Há, no entanto, uma minoria que resiste em expressar-se com as palavras desta egrégora sob o argumento de que são difíceis na pronúncia, no entanto estes mesmos buscam aprender o inglês e o espanhol que são tão difíceis quanto o sânscrito; eu contra argumentaria dizendo que o sânscrito é muito próximo do português por pertencer a um tronco lingüístico semelhante senão o mesmo. Àqueles que acham desnecessário seu uso devido ao fato de desmerecerem a língua portuguesa, eu diria que, pelo contrário, enriquecem sua cultura lingüística tal como o inglês e o espanhol o fazem enquanto usados como apoio para certas expressões portuguesas. Lembre-se que nossa língua é composta com expressões gregas, latinas, árabes e mesmo o japonês; dezenas de idiomas contribuíram com sua edificação.
Acima de tudo gostaria de reiterar que todas as atividades organizadas expressam-se com palavras bastante diferentes do cotidiano das pessoas. Elas o fazem para preservar sua identidade, manter a aura própria a seus desígnios e objetivos. Sem uma escrita e uma fala diferenciada tais artes seriam sem alma, tornar-se-iam “mornas” faltando “paladar”. A bem da verdade as pessoas, das mais eruditas às menos instruídas, usam palavras especiais para se comunicarem com interlocutores especializados, mesmo que estes usem um vocabulário “difícil”. Tais expressões especiais são especialmente importantes se você pretende penetrar as sutilezas da alma daquele grupo. Veja o exemplo de três profissões comuns, apenas para ilustrar a idéia: a Psicanálise, que usa termos tais como inconsciente, id, ego, superego, eros, tanatos, apoio, consciente etc., termos que de jeito nenhum são estranhos ao leigo e estes até mesmo usam-nos, é verdade que sem atinar com as implicações mais profundas de seus significados; o mesmo se dá com o Direito que usa termos latinos como sumula, usucapião, preempção, preceito cominatório etc. ou ainda o Desenho que se comunica dizendo por exemplo lay-out, rough, carvão, crayon, óleo, nanquim, bico-de-pena, fumeé, esfumado, pontilhismo etc.
Assim, com estas considerações, espero diluir um pouco a resistência ao sânscrito e a timidez em relacionar-se com termos técnicos e filosóficos que identificam, dão alma, firmam a egrégora, contatam e criam pontes seguras e coloridas entre idéias, grupos e instituições. Fica claro para mim que uma pessoa não consegue se adaptar á identidade de um arte quando não se encontrou com ela. Por outro lado se se sente bem com os sons identificatórios de uma arte específica é por que não se trata mais de mera curiosidade e sim de uma transformação na filosofia de vida. É como se isso selasse uma amizade muito mais profunda com a filosofia que norteia o grupo. Isto visto iniciemos por uma palavra pouco conhecida, mas sempre presente quando se fala em Índia:
Abhyasa (auto-estudo)

Literalmente estudo; estudo assíduo de um assunto de qualquer espécie; conhecimento pleno. No Bramanismo abhyasa (abrriása) é um esforço de conhecimento que será abandonado assim que o estudante tenha realizado seu objetivo. Esforço de praticar o Yôga ou o Samkhya. Repetição de textos ou palavras com o fim de perceber um dado sentimento ou atingir a iluminação espiritual, praticar disciplinas que levam à iluminação da consciência; a repetição é sempre abandonada assim que o estudante atinge estabilidade emocional e a mente acalmada passa a refletir a essência divina na pessoa – sempre nos pontos de vista espirituais da Índia.
Contradizendo aqueles pontos de vista, numa visão organísmica a pessoa só pode sentir aquilo que está preparada para sentir a partir de suas próprias vivências. Ninguém poderá ensinar a outro como sentir seja o que for, se aquele não estiver municiado das vivências que permitam-no responder àquele “ensinamento”. Em outras palavras, podemos dizer que cada pessoa desenvolveu crenças muito pessoais que não cederão simplesmente ao entrar em contato com outro modo de pensar/sentir, especialmente se for através de leituras ou repetições de fórmulas. Suas crenças são arraigadas a partir de sua cultura, em cujo centro está a moralidade de um grupo em detrimento de outro; isso implica que aprender é possível se o aprendizado não está mexendo em feridas demasiado estratificadas dentro da pessoa. Isso pode significar que não se aprende nada muito diferente daquilo a que a pessoa simplesmente está pronta para aprender; é como se houvesse uma “genética” um “gene” para o conhecimento pessoal, uma marca pessoal, que permite um conhecimento específico e não conhecimentos contraditórios entre si. É necessário trazer, de passagem, o conceito de Perene Coerência Emocional do Ser Humano3, questão já levantada em outra obra, em que o ser humano é sempre coerente consigo mesmo, fazendo uma filtragem de todos os dados do mundo, deixando que o penetrem apenas aqueles que fazem sentido para suas vivências, para sua personalidade. Quero dizer que o ser humano aprende só o que tem potencial para aprender.
Além disso, o abandono do esforço de conhecimento assim que a pessoa conhece o seu objetivo, só deveria valer para os resultados religiosos bramânicos. O leitor deve cuidar para que não se confunda com a maneira ocidental de ver o assunto; pois quem abandona os estudos só porque atingiu algum resultado intelectual, poderá inaugurar a mediocridade. Isso valerá especialmente para os estudos técnicos, mas que se pense nos estudos da própria maneira de ser, devendo continuá-los por toda a vida, que é dinâmica, por sinal - pois somos dinâmicos - se nos apresentando diferente a cada dia que passa, pedindo um quinhão de cuidados diários.
Vale dizer que é muito comum no ocidente um tipo especial de abhyasa - a análise pessoal empreendida pelas Psicanálises, as Terapias Cognitivas e Terapias Fenomenológico/existenciais entre as muitas existentes. Podemos nos referir também ao que chamamos de uma análise organísmica das vivências pessoais4, uma proposta analítica que venho perlaborando dentro do mundo psi fazendo uma intersecção de Sartre com Winnicott (o primeiro um filósofo existencialista e o segundo um psicanalista de influência freudiana).
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1 Encerrei em 2002 essa longa pesquisa dentro corpo doutrinal indiano e atualmente tenho me dedicado aos consultórios psicológicos em S. Paulo - SP e Pouso Alegre - MG. Os textos produzidos nessa época (a maioria entre 1990 e 2000), serão localizados em http://www.levileonel.blogspot.com/ junto com esboços de textos, fragmentos de pensamentos a trabalhar oportunamente. Manterei a forma original, mesmo naqueles casos em que não concordo mais com meu próprio pensamento, em respeito aos antigos alunos, terapeutas e preletores, alguns vivendo fora do circuito acadêmico, que continuam atuando com a TS, atendendo o método. Quando acho que é o caso, publicarei em separata, uma retificação do que penso ser mais adequado para o atual estágio de estudos em que me localizo. O nome Samkhya se deveu às minhas principais fontes de inspiração na pesquisa dos textos clássicos indianos de Kápilavastu, um dos maiores pensadores da Índia clássica. Seu sistema está por trás (embora adaptado) da Terapêutica Samkhya, que por sua vez usei para estruturar as terapias Sparsha (massagem indiana) e Sádhana (disciplinas físicas) terapêuticas ao mesmo tempo psicocorporal e analítica, envolvendo conhecimentos de acupuntura indiana, massagem, exercícios meditacionais, naturoterapia e psicologia e que fazem parte das atuais VIVÊNCIAS DE INTEGRAÇÃO EXISTENCIAL (Veja postagem do dia 29/06/09).
2 Organísmico significa totalidade, onitude, holístico, inteiro. Não no sentido de não-dividido, mas no sentido de um conjunto de fragmentos.
3 Em outros textos do blog entrarei em detalhes a respeito deste conceito.
4Atualmente EXISTENCIANÁLISE (veja nota 1).

VEJA TAMBÉM BLOG SOBRE O COTIDIANO NA SERRA DO CERVO http://www.avidanaserradocervo.blogspot.com

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