sexta-feira, fevereiro 8

O muro da morte e o nada!


O Muro é uma das muitas formas de Sartre se referir ao impossível de se viver a própria morte. O pano de fundo desta aula de desespero é a história de alguns anarquistas presos e levados para o gélido porão de um hospital, que lhes servirá de cela até seu fuzilamento. Tom, Pablo e Juan parecem funcionar como partes de um mesmo personagem e, talvez, o alter ego do filósofo que escreve contos e romances engajados – tal como defendeu em seu Que é a literatura? Este é o conto que dá nome ao livro juntado a outras quatro histórias curtas, sempre com uma ou outra tinta existencialista. O que lhe valeu críticas por acreditar que a literatura tem responsabilidades para com o mundo; ao contrário, muitos críticos lhe diziam que a literatura não deveria ser engajada. Pelo sim, pelo não, a verdade é que Sartre, como poucos, soube contar uma história e imiscuir no tecido de sua prosa seu pensamento, que passa ao largo, caso não tenhamos uma atenção um tanto quanto prevenida. Isso de jeito nenhum estraga o prazer de ler sua escrita. Até pelo contrário, os desprevenidos, aqueles que não conhecem o filósofo por detrás do contista ou romancista, acabam se surpreendendo com descrições magistrais de personagens que têm uma profundidade inusitada de pessoas comuns.
Faz sentido esse homem qualquer povoar sua obra, pois foi como “um qualquer” que Sartre se quis visto. Esse homem que é “um qualquer”, esse homem cotidiano, sempre a ponto de ser alguém, é que dá o tom em sua prosa. Ao descrever, por exemplo, Henri, pela boca de Lulu, em Intimidade, sabemos que não se ocupa da alma dos personagens, mas de todos seus pequenos gestos, falas e pensamentos confessados em meio a situações que vão se desnudando como uma clareira que nos surpreende pelo seu aparecimento subitâneo. Henri era inflexível como uma estaca quando estava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassíveis), mas negligenciava as pequenas coisas; não era muito asseado, por exemplo, não mudava de cueca com frequência. [...] Lulu não se incomodava com a sujeira: dá certo ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. [...] Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio.
Voltemos a Pablo, Tom e Juan. Estão detidos pelas autoridades para investigação, julgamento e punição por suas atividades políticas anarquistas na Espanha. Sabem que morrerão em poucas horas; ao amanhecer ficarão em frente de um pelotão de cinco a oito soldados e serão trespassados por projéteis que lhes atingirão o rosto para que morram desfigurados – talvez uma técnica de intimidação. Estão gelados pelo frio, embora suem de empapar as camisas...  Tom conversa muito, Pablo em silêncio... O assunto, claro, é a morte. Mais exatamente a morte que é nossa, mas que não poderemos experimentar, uma vez que a experiência implica alguém que a ultrapasse, que esteja lá depois do acontecimento. A morte é impensável porque dela não resta alguém que possa olhá-la retrospectivamente. Sempre a colocamos num futuro no qual estaremos no modo de não-presença. Talvez Sartre tenha em mente Heidegger, que disse que somos seres para a morte (Ser e Tempo), mas para implicar com ele; somos seres para a vida e a morte não nos pertence, nem no modo de experiência, nem no modo de vida. A morte é o fim da vida, pura e simplesmente. Isso não quer dizer que a morte não nos interesse; fazemos dela o tema das religiões, da poesia, da psicanálise – ela é cotidiana e inevitável, o que não a coloca entre as coisas com as quais podemos dialogar. A morte é o cerrar dos sentidos. Não tem sentido, não tem significado algum...    
Sartre coloca na boca de seus personagens o inevitável da morte; não uma morte que colherá Tom ou Pablo, ou mesmo Juan, em algum dia do futuro, mas sim, uma morte agendada, atrás do muro, naquela manhã, fuzilados.  
Pensar a morte é como estar em um pesadelo a ponto de compreender o que acontece, quais são os motivos e o destino daquela história. Mas nada acontece; a compreensão desliza, escapa, cai. É uma decifração que está sempre a milímetros de acontecer, como se pudéssemos pinçá-la com os dedos, mas escapa sempre, inexoravelmente.   
- É como nos pesadelos. – diz Tom. – Quer-se pensar em alguma coisa e tem-se o tempo todo a impressão de que afinal se vai compreender, mas não, a coisa desliza, escapa, cai. Digo para mim mesmo: depois, não haverá nada. Não compreendo, porém, o que isso quer dizer. Há momentos em que quase chego a decifrar... e depois a coisa me escapa, recomeço a pensar nas dores, nas balas, nas detonações. Sou materialista, juro a você; e não estou ficando louco. Há alguma coisa, porém, que está destoando. Vejo meu cadáver; isto não é difícil, mas sou eu que o vejo, com meus olhos. Seria preciso que eu chegasse a pensar... a pensar que não verei mais nada, que não ouvirei mais nada e que o mundo continuará para os outros. Não somos feitos para pensar nisso, Pablo. Pode acreditar, já me aconteceu ficar uma noite inteira acordado, esperando alguma coisa. Mas essa coisa que eu esperava não é parecida com isso; isso nos pegará pelas costas, Pablo, e não teremos tempo de nos preparar.
No lugar de “não verei mais nada” ou “não ouvirei mais nada” poder-se-ia dizer que “nada se verá ou ouvirá daí em diante”, pois não haverá um alguém lá, que devido a uma condição especial, está presente, mas nada ouve, vê ou diz. Pablo não existirá mais e é por isso que nada ouvirá, simples assim.
[Pablo, o narrador] Naturalmente, eu pensava como ele e tudo quanto me dizia eu poderia dizer-lhe – esse negócio de morrer não é nada natural. E como eu ia morrer mesmo, nada mais me parecia natural, nem o monte de carvão, nem o banco, nem a boca imunda de Pedro. Leio: “esse negócio de morrer não é nada natural”; sempre achamos injusta a morte de um jovem, de uma filha, de um pai jovem, de um homem conhecido, de um gênio... Como não somos seres naturais, a morte não nos parece natural, mesmo que argumentemos dizendo que morrer é o fim de todos. Para isso, criamos religiões, filosofias, crenças as mais variadas para dar conta de que não morremos, pois não aceitamos que morrer é natural. Para uns passamos, para outros viajamos, para terceiros apenas abandonamos uma casca informe e incômoda. Há os que dizem que subimos. Para quase todo mundo somos imortais, pois seria inadmissível morrer; morrer não é nada natural.
Então nos deparamos com dois problemas complementares: não aceitamos morrer como algo natural; não vamos experimentar a própria morte. Talvez não achemos natural, exatamente porque não experimentaremos algo que em princípio nos pertence. Mas, se olhamos para este evento que nos espera, sequer podemos dizer que o possuímos, pois para que se dê a posse devemos transcende-la, devemos estar lá depois da sua passagem. Se apenas uma pessoa no universo de pessoas no mundo, pudesse dizer “morri”, e nós a ouvíssemos, todas as religiões, filosofias metafísicas, deísmos, teísmos e panteísmos estariam salvos, sem sequer uma liturgia ou ritual. Enquanto isso não acontece, todos vamos nos salvando, nos alçando do leito caudaloso e impiedoso da vida e da morte, por sobre destroços flutuantes chamados “eu creio”.
Tom e Juan foram mortos; Pablo não. Simples assim; uns morrem mais cedo, outros demoram um pouco mais... nenhum poderá dizer “morri”, a não ser o personagem principal de O defunto inaugural – relato de um fantasma, acho que um tal Fagundes, de Aníbal Machado, que acompanha sua morte com muito interesse e um certo humor seco. Mas esta é, literalmente, outra história... 
   
Foto: http://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Images_by_PierreSelim

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...