terça-feira, junho 30

Os pontos de vista da Índia!

Conceitos indianos mais comuns (texto escrito para os cursos de Terapêutica Samkhya 1990-2000 - inédito)

Apresentação

Essa obra foi escrita na forma de um dicionário comentado, com temas da medicina, filosofia e psicologia indiana. Minha busca primeira, nesse empreendimento, foi o de realizar uma comparação entre os vários sistemas filosóficos indianos e com isso promover maior intimidade com a matéria exposta em cada verbete.
O objetivo secundário, porém mais ousado e importante foi, explicitamente, o de construir metáforas para colaborar com conceitos psicológicos ocidentais que fundamentam as teorias psicanalíticas e existenciais, já consagradas e utilizadas em psicoterapia e análise existencial. Provavelmente terapeutas de várias filiações teóricas poderão utilizar os conceitos aqui levantados, mesmo que um dia eles tenham sido especificamente objeto de estudos dos cursos para formação de terapeutas Samkhya, no Ashram de Levi Leonel (1990-2003). Na época utilizei-me de um conceito organísmico de ser humano para fazer adaptações do pensamento indiano ao meu projeto de trabalho, publicado como Terapêutica Samkhya – TS, no início dos anos noventa e depois uma parte em livro (Energia Vital, Ed. Roka, 1999).
Inicialmente apenas os alunos de cursos livres de terapias psicológicas e psicocorporais criados por mim, utilizaram tais metáforas e teorias. O ensino livre destas idéias teve sustento na convicção de que outros profissionais e leigos também poderiam manipular tais conceitos para proveito próprio, tanto no crescimento pessoal, quanto profissional. Foi assim que surgiram grupos de terapeutas Samkhya e analistas leigos com grande poder de interpretação das vivências de seus clientes, bem como uma legião de clientes e estudantes independentes1, que quase formaram um movimento, não fora minha obstinação em manter a TS dentro dos limites do atendimento terapêutico.
Assim, ao iniciar a leitura de uma palavra e seus significados, a primeira expressão será uma aproximação o mais literal e exata da palavra transliterada do sânscrito para o português. Logo em seguida ela é usada em um ou mais contextos doutrinários indianos, dando a você os meios para entender suas relações com o conceito organísmico2de pessoa, bem como entre os pontos de vistas indianos antagônicos. Não raro perceberá que me dirijo especialmente aos conhecedores mais íntimos de minha trajetória, uma vez que, inicialmente, o texto fora redigido para eles.

Prefácio

Por anos produzi textos com o objetivo de auxiliar curiosos apaixonados ou pesquisadores profissionais da psicologia, filosofia, antropologia, sociologia e terapeutas influenciados pelas filosofias indiana, a desenvolver uma visão ampla e crítica dos vários conceitos advindos das filosofias indianas. Sempre soube que diferentes grupos usam o mesmo termo para significar coisas diferentes e isso coloca-os estudantes em sérias dificuldades para expressarem-se usando tais termos.
Quando se aborda um nova teoria de trabalho, filosofia, visão de homem ou tradição cultural é necessário pensá-la por meio de um thesaurus – um vocabulário onde palavras já conhecidas por nós são evocadas em sua nova significação. Com essa nova “energia” cada palavra poderá ser muito melhor contextualizada, evitando-se as situações onde uma expressão nada ou pouco tem a ver com o conteúdo de uma afirmação. Imagine quando isso se refere a outra língua. Essa dificuldade multiplica-se; é com essa determinação que proponho uma releitura das principais palavras-conceitos utilizadas pelos terapeutas holísticos, pelos psicólogos e até mesmo por profissionais especializados em tradições indianas. Fico escusado aqui de pertencer ao mundo ocidental e fazer uma leitura crítica do sentimento indiano sobre o que é o viver e não poderia ser diferente, uma vez que meu pensar é inextricavelmente embebido em fontes ocidentais, ainda mais na condição de psicólogo e linguista.
Nesse afã é imperioso que se saiba o mais exatamente possível o que significa cada palavra das mais usuais, quais seus limites e quais suas implicações. Por isso você encontrará aqui palavras usadas por adeptos do Vedanta, Vaisheshika, Purva mimansa, Niaya, Samkhya e Yôga (os seis pontos de vista indianos) grafadas e pronunciadas exatamente do mesmo jeito, no mesmo contexto e sobre o mesmo objeto, mas com significados diferentes, porque seus usuários têm formações culturais díspares.
Fica bem claro que a formação cultural, com suas facetas, familiares, religiosas e morais é que determina o uso de uma palavra para um certo resultado dentro da consciência do ouvinte. Tomemos como exemplo, a palavra kundaliní, que literalmente significa “a enroscada”; ela é usada para representar uma força espiritual, divina, estabelecida dentro do corpo, em lugares mais ou menos variáveis. Claro está que se trata de um grupo espiritualista, que acredita em um Deus e em uma força divina que pode ser localizada em geral na base da coluna. Para outros grupos ela é apenas uma misteriosa força nervosa utilizada para promover saúde e expansão das percepções humanas para limites desconhecidos. Trata-se de uma visão materialista da kundaliní, própria para adeptos do Samkhya de Kápila e linhagens de Yôga advindos dos povos indianos dravídicos, pré-clássicos, autóctones – em contraposição aos adeptos espiritualistas. Diga-se de passagem que a materialidade da kundaliní, sob o ponto de vista Samkhya e Tântrico, é muito útil para uma visão organísmica de ser humano. Este é um exemplo de como seriam tratados os conceitos mais utilizados na Índia, bem como as adaptações necessárias para se entender o que é uma terapia organísmica.

Como ler essa obra
Ao ler os textos, você encontrará palavras transliteradas do sânscrito em itálico; isso se refere a palavras que se encontram melhor explicadas abaixo de um título específico para elas, ampliando os usos do termo.
Além disso insisti na transliteração, grafando as letras com os sons usuais em inglês, para em seguida apresentar o som em termos de fonemas do português do Brasil, que, aliás, é uma língua aparentada com o sânscrito. Atente bem para as letras que se seguem e sua pronúncia aproximada.
a = pronúncia de a em cama
á = pronúncia de á em ágata
e = pronúncia de é em terna/ é em fera
i = pronúncia de i em dizer
í = pronúncia de í em sílaba
u = pronúncia de u em intruso
ú = pronúncia de ú em túnel
r = pronúncia de r em forte e porta
l = pronúncia de l em leveza
ai = pronúncia de ai em taipa
au = pronúncia de au em nau
o = pronúncia de o em soma
ka = pronúncia de ca em casa
ga = pronúncia de ga em gado
na = pronúncia de na em navio
cha = pronúncia de tcha em tchau
ja = pronúncia de dja em Djavan
nh = pronúncia de nh em estranho
ya = pronúncia de ia em chiado
Ra = pronúncia de ra em aranha
Sha = pronúncia de xa em faixa
ha = pronúncia de ha em horse (inglês)
Pronúncias aproximadas de sons mais complexos: kha(krrá), gha(grrá), cha(tchá), jha(djrrá), tha(trrá), dha(drrá), pha(prrá), bha(brrá). Além disso, teremos as seguintes aproximações: ta(tá), da(dá), na, la, sa, falando-se apoiando a língua logo na raiz dos dentes anteriores superiores, perto do céu da boca.

Quanto a pronúncia e o uso do sânscrito nesta obra
Em geral as pessoas simpatizam-se imediatamente pelo som das palavras em sânscrito que permeiam a literatura indiana e as lêem sem maiores resistências, mesmo que cometendo alguma gafe na pronúncia. Tais expressões reforçam a aura mitológica da Índia, transportando o leitor para a atmosfera dos ashrams dos mestres, do solo daquele país, da cultura de seu povo. Isso parece o bastante para que a maior parte dos interessados nas filosofias indianas conviva muito bem com os sons dessa língua morta, usada apenas para a comunicação de conceitos e técnicas reservadas ou secretas, ou ainda nos colóquios de eruditos orientais e nas teses de pesquisadores ocidentais. Daí que palavras como karman, dharma, kundaliní, yôga, ahimsá, ánanda, nirvána, prána, chakra, áshram, mantra, deva, hatha, mahárája, mahátma, mudrá, mandala, máyá, samádhi, Rishi ou rsh, shakti, guru, tantra e mais uma dezena de outras menos conhecidas já fazem parte do dia a dia de milhares de leitores, admiradores e praticantes das artes medicinais e filosóficas indianas.
Há, no entanto, uma minoria que resiste em expressar-se com as palavras desta egrégora sob o argumento de que são difíceis na pronúncia, no entanto estes mesmos buscam aprender o inglês e o espanhol que são tão difíceis quanto o sânscrito; eu contra argumentaria dizendo que o sânscrito é muito próximo do português por pertencer a um tronco lingüístico semelhante senão o mesmo. Àqueles que acham desnecessário seu uso devido ao fato de desmerecerem a língua portuguesa, eu diria que, pelo contrário, enriquecem sua cultura lingüística tal como o inglês e o espanhol o fazem enquanto usados como apoio para certas expressões portuguesas. Lembre-se que nossa língua é composta com expressões gregas, latinas, árabes e mesmo o japonês; dezenas de idiomas contribuíram com sua edificação.
Acima de tudo gostaria de reiterar que todas as atividades organizadas expressam-se com palavras bastante diferentes do cotidiano das pessoas. Elas o fazem para preservar sua identidade, manter a aura própria a seus desígnios e objetivos. Sem uma escrita e uma fala diferenciada tais artes seriam sem alma, tornar-se-iam “mornas” faltando “paladar”. A bem da verdade as pessoas, das mais eruditas às menos instruídas, usam palavras especiais para se comunicarem com interlocutores especializados, mesmo que estes usem um vocabulário “difícil”. Tais expressões especiais são especialmente importantes se você pretende penetrar as sutilezas da alma daquele grupo. Veja o exemplo de três profissões comuns, apenas para ilustrar a idéia: a Psicanálise, que usa termos tais como inconsciente, id, ego, superego, eros, tanatos, apoio, consciente etc., termos que de jeito nenhum são estranhos ao leigo e estes até mesmo usam-nos, é verdade que sem atinar com as implicações mais profundas de seus significados; o mesmo se dá com o Direito que usa termos latinos como sumula, usucapião, preempção, preceito cominatório etc. ou ainda o Desenho que se comunica dizendo por exemplo lay-out, rough, carvão, crayon, óleo, nanquim, bico-de-pena, fumeé, esfumado, pontilhismo etc.
Assim, com estas considerações, espero diluir um pouco a resistência ao sânscrito e a timidez em relacionar-se com termos técnicos e filosóficos que identificam, dão alma, firmam a egrégora, contatam e criam pontes seguras e coloridas entre idéias, grupos e instituições. Fica claro para mim que uma pessoa não consegue se adaptar á identidade de um arte quando não se encontrou com ela. Por outro lado se se sente bem com os sons identificatórios de uma arte específica é por que não se trata mais de mera curiosidade e sim de uma transformação na filosofia de vida. É como se isso selasse uma amizade muito mais profunda com a filosofia que norteia o grupo. Isto visto iniciemos por uma palavra pouco conhecida, mas sempre presente quando se fala em Índia:
Abhyasa (auto-estudo)

Literalmente estudo; estudo assíduo de um assunto de qualquer espécie; conhecimento pleno. No Bramanismo abhyasa (abrriása) é um esforço de conhecimento que será abandonado assim que o estudante tenha realizado seu objetivo. Esforço de praticar o Yôga ou o Samkhya. Repetição de textos ou palavras com o fim de perceber um dado sentimento ou atingir a iluminação espiritual, praticar disciplinas que levam à iluminação da consciência; a repetição é sempre abandonada assim que o estudante atinge estabilidade emocional e a mente acalmada passa a refletir a essência divina na pessoa – sempre nos pontos de vista espirituais da Índia.
Contradizendo aqueles pontos de vista, numa visão organísmica a pessoa só pode sentir aquilo que está preparada para sentir a partir de suas próprias vivências. Ninguém poderá ensinar a outro como sentir seja o que for, se aquele não estiver municiado das vivências que permitam-no responder àquele “ensinamento”. Em outras palavras, podemos dizer que cada pessoa desenvolveu crenças muito pessoais que não cederão simplesmente ao entrar em contato com outro modo de pensar/sentir, especialmente se for através de leituras ou repetições de fórmulas. Suas crenças são arraigadas a partir de sua cultura, em cujo centro está a moralidade de um grupo em detrimento de outro; isso implica que aprender é possível se o aprendizado não está mexendo em feridas demasiado estratificadas dentro da pessoa. Isso pode significar que não se aprende nada muito diferente daquilo a que a pessoa simplesmente está pronta para aprender; é como se houvesse uma “genética” um “gene” para o conhecimento pessoal, uma marca pessoal, que permite um conhecimento específico e não conhecimentos contraditórios entre si. É necessário trazer, de passagem, o conceito de Perene Coerência Emocional do Ser Humano3, questão já levantada em outra obra, em que o ser humano é sempre coerente consigo mesmo, fazendo uma filtragem de todos os dados do mundo, deixando que o penetrem apenas aqueles que fazem sentido para suas vivências, para sua personalidade. Quero dizer que o ser humano aprende só o que tem potencial para aprender.
Além disso, o abandono do esforço de conhecimento assim que a pessoa conhece o seu objetivo, só deveria valer para os resultados religiosos bramânicos. O leitor deve cuidar para que não se confunda com a maneira ocidental de ver o assunto; pois quem abandona os estudos só porque atingiu algum resultado intelectual, poderá inaugurar a mediocridade. Isso valerá especialmente para os estudos técnicos, mas que se pense nos estudos da própria maneira de ser, devendo continuá-los por toda a vida, que é dinâmica, por sinal - pois somos dinâmicos - se nos apresentando diferente a cada dia que passa, pedindo um quinhão de cuidados diários.
Vale dizer que é muito comum no ocidente um tipo especial de abhyasa - a análise pessoal empreendida pelas Psicanálises, as Terapias Cognitivas e Terapias Fenomenológico/existenciais entre as muitas existentes. Podemos nos referir também ao que chamamos de uma análise organísmica das vivências pessoais4, uma proposta analítica que venho perlaborando dentro do mundo psi fazendo uma intersecção de Sartre com Winnicott (o primeiro um filósofo existencialista e o segundo um psicanalista de influência freudiana).
____________________________
1 Encerrei em 2002 essa longa pesquisa dentro corpo doutrinal indiano e atualmente tenho me dedicado aos consultórios psicológicos em S. Paulo - SP e Pouso Alegre - MG. Os textos produzidos nessa época (a maioria entre 1990 e 2000), serão localizados em http://www.levileonel.blogspot.com/ junto com esboços de textos, fragmentos de pensamentos a trabalhar oportunamente. Manterei a forma original, mesmo naqueles casos em que não concordo mais com meu próprio pensamento, em respeito aos antigos alunos, terapeutas e preletores, alguns vivendo fora do circuito acadêmico, que continuam atuando com a TS, atendendo o método. Quando acho que é o caso, publicarei em separata, uma retificação do que penso ser mais adequado para o atual estágio de estudos em que me localizo. O nome Samkhya se deveu às minhas principais fontes de inspiração na pesquisa dos textos clássicos indianos de Kápilavastu, um dos maiores pensadores da Índia clássica. Seu sistema está por trás (embora adaptado) da Terapêutica Samkhya, que por sua vez usei para estruturar as terapias Sparsha (massagem indiana) e Sádhana (disciplinas físicas) terapêuticas ao mesmo tempo psicocorporal e analítica, envolvendo conhecimentos de acupuntura indiana, massagem, exercícios meditacionais, naturoterapia e psicologia e que fazem parte das atuais VIVÊNCIAS DE INTEGRAÇÃO EXISTENCIAL (Veja postagem do dia 29/06/09).
2 Organísmico significa totalidade, onitude, holístico, inteiro. Não no sentido de não-dividido, mas no sentido de um conjunto de fragmentos.
3 Em outros textos do blog entrarei em detalhes a respeito deste conceito.
4Atualmente EXISTENCIANÁLISE (veja nota 1).

VEJA TAMBÉM BLOG SOBRE O COTIDIANO NA SERRA DO CERVO http://www.avidanaserradocervo.blogspot.com

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