quinta-feira, novembro 11

Causa sui!

"'Ser livre. Ser a causa de si próprio, poder dizer: sou porque quero; ser o próprio começo.' Eram palavras vazias e pomposas, palavras irritantes de intelectual. [Mathieu Delarue] esperara tanto tempo. Seus últimos anos tinham sido uma vigília. Esperara através de mil e uma preocupações cotidianas. Naturalmente, durante esse tempo andara atrás de mulheres, viajara e ganhara a vida. Mas, através de tudo isso, sua única preocupação fora manter-se disponível. Para um ato. Um ato livre e refletido que empenharia o destino de sua vida e seria o início de uma nova existência. Nunca pudera amarrar-se definitivamente a um amor, a um prazer, nunca fora realmente infeliz; sempre lhe parecera estar alhures, ainda não nascido completamente." (A idade da razão, 1945, Sartre)
        Mathieu Delarue espera que de um só golpe sua vida faça sentido, como alguém que se torna milionário pela loteria, sem ter feito uma carreira nos negócios ou fama nas artes ou no futebol. Sua maneira de esperar era a de empenhar-se em realizar a longa e entediante corrente de pequenos acontecimentos de uma vida normal, sem gastar mais que o necessário para que tivessem uma luzinha de vida. Sua megassena, se posso dizer assim, era ser, de supetão, livre, e ainda por cima, de modo refletido, como se estivesse no horizonte a possibilidade de ser seu próprio fundamento. Com isso, surgiria uma nova existência, portanto, um novo mundo, um novo sujeito.
     Mas, Sartre sabia, a julgar por outras personagens em contraponto a Delarue, inclusive personagens de outras obras, que Mathieu encarnava a liquefação gigantesca, irrevogável e inexorável que acometeu o sujeito do começo do século vinte, mas já anunciada desde os primórdios da Idade Moderna, em Descartes e pelos poetas europeus. Foi um rápido derretimento de apenas quatro séculos, que desmilinguiu o osso do homem - o sentimento de que era um ser uno, causa de si mesmo e centro do mundo. A criação de Sartre nada tinha de espetacular, heróico ou surpreendente; era apenas um amontoado cujo nexo consistia em duas sensações bastante singulares: uma eterna espera do momento em que seria livre, uma disponibilidade para esse ato teatral, quase inumano; e a sensação de que sua vida estava em outra paragem, que não se dera à luz de modo cabal. Esse nascimento o colocaria livre, mas deveria ser por um ato de vontade. Um outro luxo burguês, como disse o filósofo, a propósito da contemplação, logo no início de "O existencialismo é um humanismo".
    Mas o desalojamento do sujeito do centro de si mesmo já se anunciava na crítica copernicana à concepção de Cosmos afirmada por Aristóteles (384-322 a.C) e Ptolomeu (100-170). Estes tinham como certo a dualidade platônica constituída de dois domínios ou realidades. Uma realidade eterna e plena (o domínio celeste); e a outra constituída de eterno nascer e morrer, formada pelos elementos Terra, Fogo, Ar, Água, em constante interação, gerando matérias ou mundos uniformes e não uniformes, realidades que se relacionam, mas com essências radicalmente diferentes: uma é divina; a outra é humana. A divina é eterna, etérica, governando o Sol, a Lua e os planetas em geral. A humana é sublunar, governada, perecível, mortal.
   Entretanto, na medula do homem estava a essência divina, segundo cria o homem platônico-aristotélico. Além de ser a verdadeira natureza do homem ela podia chamar o homem a se auto-criar, causar-se a si mesmo. Nas palavras de Platão, a fazer uma auto-parturição (um parto de si mesmo). Contrariamente o cristão também possui uma centelha divina, que é impotente para causar a si mesmo, talvez o ponto onde começa seu afastamento do platonismo/aristotelismo.
    Pois é exatamente esse homem possuidor de uma essência divina, que combinava com o sistema cósmico de Aristóteles; um homem cujo centro ressoava com a dualidade celeste/sublunar. Conforme esse homem vai sendo descentrado, ressoando com o descentramento da Terra, há uma banalização de sua vida, uma superfluidade da existência. O homem não possui centro e não pode causar-se a si mesmo. Isso não quer dizer que aceitaríamos isso de modo passivo. 
     No passado o homem fora aquele para quem o mundo existia e também por meio de quem a realidade se erguia. Agora, principalmente a partir de Copérnico, a Terra sai do centro do universo e o homem começa a ser sujeito - um ser cujo centro não é ele próprio. Disso a psicanálise e o existencialismo vão tratar por longas décadas. A primeira tenta salvar o sujeito dizendo que ele é seu inconsciente. A segunda é mais cruel: o nada é o centro do sujeito.
    O poeta Sá de Miranda (1481-1558) já tão cedo advinhava ou estatuía a nova condição do homem moderno - um homem em conflito com seu próprio centro. Em desavença consigo próprio; mal vizinho de suas próprias fronteiras; sem poder viver em seus domínios; em uma guerra civil em suas próprias fronteiras. Irmão contra irmão, filhos contra pais, como bem exemplifica um dos versos onde é inimigo de si mesmo. O poema, uma joia da literatura mundial, é um esgar de angústia, própria daqueles que não mais podem deter o estado de sítio em que o homem moderno colocou suas próprias praças internas. O poema diz melhor:

COMIGO ME DESAVIM

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

                 (Sá de Miranda)

    Mathieu Delarue tinha saudades do tempo em que o homem podia dizer-se causa de si mesmo, centro do mundo, possuidor de essência verdadeira. Esse tempo passou. Hoje, dizer isso para si mesmo é uma extravagância burguesa, um luxo. E o luxo é sempre extravagante.

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