sexta-feira, outubro 1

Eu sou meu próprio gosto!

     "Estou aqui, saboreio-me, sinto um gosto velho de sangue e água ferruginosa, meu gosto, eu sou meu próprio gosto, eu existo. Existir é isto: beber-se a si próprio sem sede." "[...] Tudo isto era tão natural, tão normal, tão monótono, bastava para encher uma vida, era a vida. O resto, as Espanhas, os castelos na areia, era... o quê? Uma pobre religiãozinha laica para uso próprio. [...] Um álibi?" "É assim que eles me veem: [aquele] que quer ser livre, como outros desejam uma coleção de selos. A liberdade é seu jardim secreto. Sua pequena conivência consigo mesmo. Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, razoável no fundo, que malandramente construiu para si próprio uma felicidade medíocre e sólida, feita de inércia, e que ele justifica de quando em vez mediante reflexões elevadas."  (Mathieu Delarue, personagem de A idade da razão - Sartre, 1945)
     Se existir é matar uma sede inexistente com sucos de gosto nauseante, é de se pensar que essa degustação de zinabre com hemoglobina, seja possível apenas a conta-gotas, homeopaticamente. Do contrário, engasgamos e regurgitamos. A vida monótona, natural, normal, como devem ser as vidas, são analgésicos feitos de horas, dias, acontecimentos sem relêvo: uma planície com raros promontórios, vales e montanhas. E quando acontece uma relevância é o drama ou a tragédia. Já com Roquentin (A náusea, 1939) personagem tomado pela viscosidade da vida e do mundo, que não chega a nenhum ápice, Sartre nos apresentava à nossa existência. Não aquela de um tobogã, mas aquela de uma viscosidade quase paralisante. A do tobogã é parente da tragédia, do mortal, do luto de lágrimas quentes. A viscosa é a da maioria que tem sorte ou azar de viver sem acidentes, sem trancos e barrancos. Da primeira todo mundo foge, da segunda é para aonde se vai quando da fuga.
     Delarue não nos poupa de sua semelhança conosco. Mesmo naqueles casos mais felizes, ou seja, naqueles em que o sujeito se livra de uma existência monótona, só o será se por meio de uma pobre liturgiazinha criada a partir de pedaços de vida. É laica, porque a tentativa de fazer uma vida com sede, acaba por desdizer a monotonia de uma vida religiosa; vida com gosto de boldo e carqueja para aliviar o estômago. Esse culto para consumo próprio, com o amargor no centro, no púlpito, evita a religião oficial com sua falta de sabor. Amargo é melhor que o insosso.
    Mas Delarue não nos dá chance para a auto-indulgência. Chama nossas vidas de "álibi", do latim, "em outro lugar". Estávamos em outro lugar enquanto a vida acontecia. A liberdade que exigimos, o habeas corpus que pedimos, na verdade é um álibi contra a acusação de que nos auto-impingimos uma condenação.  Que estamos noutro lugar; não naquele que dizemos estar. Ou que justificamos nossas vidas. Mas também pode querer dizer que nossas vidas são álibis contra aquilo do que estão nos acusando - de fazer uma vida que não nos pertence. 
    Mathieu Delarue é belo e denso; uma personagem profunda por encarnar o heterogêneo da existência - reflexões elevadas que encobrem uma felicidade medíocre e sólida feita de inércia. Pungente personagem que habita os cômodos de nossa igrejinha privada chamada corpo, onde se dá o culto de nossa religiãozinha particular chamada vida.

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...