Cyrano está mortalmente ferido por seus traidores e acaba se deixando descobrir como aquele que de fato fizera cada carta de amor que levara Roxana a amar Cristiano. Cartas que acabaram por emprestar ao rapaz uma alma a ser amada. Com a morte tragicamente escolhida para livrar-se do fardo de ser amado sem ter alma, pelo menos aquela que fingia ser sua, Cristiano deixa a jovem destituída de sentido; busca ela, então, o refúgio de um mosteiro.
Por longos quatorze ou quinze anos, Cyrano a visita todo sábado relatando em versos a semana, tal como um jornal falado. Roxana acredita em sua inquebrantável amizade; amizade que, sabemos nós, tem como fim esconder sua paixão pela mulher que era a razão de seus versos e mesmo a razão de sua vida. Ela lhe mostra uma carta "escrita" por Cristiano, que Cyrano "lê" sem sequer vê-la, porque a conhece decor. Estupefata a jovem realiza que sempre amara aquele que escrevera os versos que estofara a imagem de seu Cristiano. Agora sabe que ama a Cyrano, porque dele foi vertido tudo aquilo que mais amou em sua vida. Mas é tarde demais! O gascão está em suas últimas versejações e morre sorrindo como viveu, um pouco jocoso é verdade.
Ceder?! Jamais! Jamais! Quem és? A Fatuidade?
- Eu bem sei que afinal sucumbo e não vos mato...
Não faz mal: eu me bato, eu me bato!
Ataca o ar com sua espada, ofegante, um pouco já sob o efeito de delírio produzido pela falta de vida no corpo e um tanto quanto sem objetivo.
Sei! Tudo me arrancais: a rosa, a palma, o louro!
Arrancai... Mas existe um quid imorredouro
Que eu levo; e que, ao entrar no alcácere de Deus,
Varrerá largamente o luminar dos céus;
E, puro como a glória, ardente como o facho,
mau grado vosso eu levo...
Avança cambaleante, com a espada para o alto.
E que é...
Cai nos braços de Le Bret e Ragueneau que o assistem nesta hora dramática; perde as forças do punho que arrocha o cabo da espada. Roxana inclina-se e o beija delicadamente na fronte e pergunta, interessada no que Cyrano levará para o mundo lunar que tanto amou e lá ficará junto de"Aristóteles, Galileu e... tantos outros..." E ele, sorrindo um sorriso no qual podemos adivinhar aquela pureza e destemor que o impulsionara pela vida, completa:
O meu penacho!
Homem que não pode ser contido, que vivera sempre para a luta e o amor, momentos antes deste desfecho, dissera de modo comovente:
Graças! Mercê de vós, que amei despercebido...
Roxana, sem o perceber, fora amada como sempre sonhou. Por uma alma poeta e bravia. Por um homem que podia sorrir para a Fatuidade, para o acidente de existir e de morrer, e terminar tudo num sorriso que por um lado se vinga da tragicidade da morte, por outro nos apresenta essa entrega heróica ao trágico. Herói que ama sempre, mesmo que despercebido; melhor dizendo porque despercebido.
Cyrano me encanta sempre; acho que em algum lugar em nós, recôndito, insondável, sonhamos com um Cyrano que pode sorrir para a morte - mistura de guerreiro e poeta apaixonado...
De minha parte, fique claro que trocaria meu nariz pelo dele se eu pudesse versejar com tanta rima. Qual Roxana se me resistiria, ainda que o nariz tomasse a cena? Cyrano não acreditou que Roxana pudesse abstrair seu nariz; não acreditou que seu coração podia suplantar o corpo e suas vicissitudes...
Mas o que seria do teatro se não fosse um amor desditoso? "Cyrano de Bergerac", para mim, se compara a "Romeu e Julieta", outro trágico desencontro amoroso. Que não me ouçam, ou me leiam, Romeu e Cyrano lá do mundo lunar; até porque se se exasperarem por ciúmes temo por Romeu. O gascão, conta-se, derrotara de uma só vez cem homens...
Alguém inapelavelmente embruxado pelos livros, cinema, teatro e outras artes, não necessariamente nesta ordem. Daí estes fragmentos de experiências. levileonel@yahoo.com.br Veja Também: https://avidanaserradocervo.blogspot.com https://psicologonobrasil.blogspot.com https://ateliedecorpo.blogspot.com
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Puxa,lindo o que você escreveu. Esse livro,essa história,mas principalmente, esse personagem,sempre me encantou.
ResponderExcluirTenho um nariz ligeiramente grande, mas que se disfarça diante de meus 2 metros. E gosto de acreditar que tenho dentro de mim um pouco da essência de Cyrano. Muito me encanta.
ResponderExcluirAmei seu texto, adoro esse personagem, e essa história tão linda.
ResponderExcluirEu levo em meu nome o nome daquele que, por amor, sacrificou seu despretencioso amor, eis que não exigiu para si o amor da amada que tanto amou.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO amor é poesia, e como amor ...transforma o que é mera palavra em forma poética. Talvez tuas palavras façam poesia e desapercebidamente não notas Roxane debruçada sobre ti.
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