quinta-feira, dezembro 26

Django, Pharmakon e Lawrence da Arábia!


Luz-25.12.13 09:55h
Desde que me enfeiticei pelo cinema, antes de ter uma tevê em casa - o que só se daria 4 anos após o embruxamento pela telona, já em São Paulo - sempre quis ter uma trilha sonora enquanto ia vivendo meus dias. Em minha fantasia uma música maravilhosa fluía por entre as árvores da avenida Curitiba, em minha cidade natal, escondidas em caixas de som estrategicamente colocadas nos caminhos que eu faria. Como fantasias se esbatem com a realidade, não conseguia imaginar como as caixas tinham sido colocados com seus tweeters, nem como se deslocariam até o Jardim Adriane, onde morava, bem depois da linha do trem, no meio do pasto.
      Enquanto não solucionava esse pequeno problema, enlouquecia semanalmente, nos três ou quatro cinemas da cidade, gastando algumas moedas ganhas como guarda mirim, num tempo em que menor podia trabalhar. Viajava para o velho oeste com a música de gaita acentuando o deserto, e o assobio de Django, retocando o clima de tensão no faroeste. Particularmente um que tinha como motivo um dólar furado, que mostrava o milagre de uma providencial moeda no lugar certo e na hora certa - desta vez cara e famosa - salvando a vida do mocinho. Numa das inúmeras vezes que assisti o filme do dólar furado, ao sair do Cine Fênix, ouvi um senhor dizendo para sua senhora: homem de sorte! Ao que ela retruca: sorte uma ova! Foi a mão de deus!
      Para mim, interessava que o ar era impregnado de som e a vida andava noutro ritmo. Um ritmo que só a música podia imprimir na existência. As imagens passeavam na tela e eu ali, rendido, sequestrado do mundo sem gosto e desmusicado da realidade, gozando daquele outro mundo onde tudo, mesmo nas histórias mais tristes ou violentas, era brilho e som. Sabia de uma coisa - o cinema era mais emocionante que a vida.
Descobri estes templos de belas mentiras, aos onze anos. Encontrara meu pharmakon mais duradouro. Anos mais tarde, pensei em ser crítico de cinema. Declinei da profissão. Ainda bem, pois teria perdido minha infância, e ficado adulto.
      Embalado por estas lembranças, olho as inglesas formas da estação da Luz; o metal curvado fazendo belas barras que sustentam o teto sobre os trilhos dos trens que vão à periferia e cidades derredores. Ali embaixo, uma garotinha senta-se no chão e atira moedas deslizando pelo piso e um homem jovem para cada uma delas com gestos precisos, ora com as mãos, ora com um pé e as atira de volta, tomando cuidado para não ferir a pequena. Uma mulher de traços nordestinos, suaves e arredondados, olha a cena, com olhar descansado e sem compromisso.
      De repente, como numa cena de filme de scorceses e hitchcockes, pai e filha permanecem neste jogo singelo, alheios ao mundo; uma pomba desce e pega palha de uma caixa de presentes jogadas em um canto, voa verticalmente, num balé milimétrico e desaparece atrás de uma coluna curva; um rapaz dança cadenciadamente uma música inaudível; um outro casal se enrodilha num rito sexual sem muita paixão - ele alheio, com olhos numa cena que não diviso, e ela, performática, beija-lhe repetidamente a bochecha esquerda; uma mulher chora sentada em um dos bancos de plástico; três homens vem vindo em câmera lenta igual em Laranja Mecânica - tal como na cena em que Alex caminha com seus comparsas, sob a nona de Beethoven. A cena só é possível porque estamos em um feriado; pouquíssimos passageiros na plataforma britânica e uma letargia causada pelas ceias de meia noite com maionese regada a refrigerante.
      Pela janela do trem, que faço de conta que é uma tela, olho a cena enquanto o trem vai saindo devagar. As imagens escorrem pelos olhos. Nada retumbante como em Hollywood; até mesmo pelo contrário - uma cena sem clímax. No entanto, como numa destas magias cinematográficas, que misturam nostalgia, inventividade e música, assisti tudo se distanciando ao som de Era uma vez na America, de Ennio Morricone, e em câmera lenta, como no filme de Kubrick.    
      Nunca tive paciência para andar com o radinho de pilhas nas orelhas. Tentei o toca-fitas e depois o walkman. Nada se compara aos aparelhinhos tipo M-alguma-coisa ou os celulares. Me rendo à fantasia. Finalmente minha vida pode ter uma trilha sonora. Pena que as aventuras que me aguardam nem se comparam aos Canhões de Navarone, Lawrence da Arábia, A Ponte do Rio Kwai, Intriga Internacional, Contrastes Humanos, Uma Aventura na África, King Kong, Aguirre e a Cólera dos Deuses, Rio Vermelho e outros, que assisti escondido pelo lanterninha, um amigo a quem favoreci ficando em seu lugar na bilheteria do Clube 28, em troca desta contravenção.
      Pensando bem, essa foi uma aventura e tanto...


domingo, dezembro 15

Voltaire, Sartre e o melhor dos mundos possíveis!

Luz: Sábado - 20:00h

A luz do dia se esvai exatamente enquanto caminho para a saída do metrô que dá para a Rua Mauá. Tenho uma certa reverência por este nome... "Mauá" me soa bem aos ouvidos e nem sei ao certo qual a referência. A esquina entre a Mauá, que ladeia a estação da Luz e a Rua Cásper Líbero é a mistura amalgamada de figuras bem desenhadas dos inferninhos. Talvez uma extensão ou deslizamento da antiga Boca do Lixo lá pelas bandas da Praça da República. Nesta hora, num sábado, noite azul escura no céu, a cena é dominada pelas prostitutas sexagenárias e uma centena de homens de pouca idade tomando cerveja nos beirais de pequenos hotéis rescindindo a cloro. 
Apesar da aparência um tanto agressiva, estão ali de boa fé, na sacristia do sexo, e não estão ligando para nós meros passantes. Só querem seu quinhão de alegria numa semana que os triturou de alto a baixo, de nuca a calcanhares, noutra sacristia - a do patrão. Estou ali de passagem e não pretendo ficar mais que o tempo de, a passadas decididas, ganhar a direção da antiga estação de trem Júlio Prestes. Saio do metrô que dá para a Cásper, viro nos calcanhares e tomo a Mauá. Resolutamente. Vai que nem todos ali são de boa fé.
       À direita a bela construção da Luz, à esquerda uma série de prédios corroídos pelo tempo. Passa por mim uma pequena puta, corpo magro, quarenta e cinco quilos, carregando no ombro direito um rádio a pilha, onde toca uma música bem cadenciada, um ritmo dançante, que desconheço. Mais a frente um homenzinho também magro, copo de cerveja na mão, dança gostosamente na calçada para só tropeçar no chão irregular e quase cair à minha frente. Mas, bêbados se equilibram melhor que praticantes de taichi. E ele ficou em pé, grotescamente ereto e me cumprimentou com um sorriso bobo. Devolvi o cumprimento com o sorriso mais bobo que eu podia desenhar na cara e não dei motivo para conversa. Vai que a conversa era das boas... e eu tinha um compromisso logo adiante.
  A Júlio Prestes me dá sensações estranhas. Não passei ali mais que meia dúzia de vezes nos quarenta anos que conheço São Paulo. Mas foi em suas calçadas que pisei o solo paulistano em 29 de dezembro de 1973. Numa tarde quente e abafada. Chegava de Apucarana depois de uma longa viagem que começara no dia anterior. Me lembro que olhei muito tempo as fachadas do prédio, com os olhos mal dormidos sendo cozidos pelo calor que vinha da construção. Depois tomei o rumo da Penha, levando bagagem acima de minhas forças.
       Mas, agora estava ali, a convite de Vanusa Barbosa, uma das coralistas do Coral Municipal da Cidade de Santo André, para assistir "Candide", uma pequena ópera, escrita por Leonard Bernstein, bem engraçada, baseada numa sátira escrita por Voltaire. Entro na Sala São Paulo e não reconheço o lugar que um dia frequentara por algumas horas como passageiro do trem que ali freara rodas. Fico desorientado. Mas logo retomo o porquê estava ali. E minha estação de trem vai perdendo significado para o espetáculo irreparável que se descortinou. 
Já conhecia Cândido, ou Do Otimismo, ao ler Voltaire. No entanto, a leitura de outro filósofo, desta vez Sartre, "o Voltaire de nossa época", como foi dito pelos franceses, me é mais saborosa. Enquanto no século das Luzes o iluminista foi defendido pelo próprio rei, que o deixou livre para pensar, Sartre foi deixado livre pelo próprio Charles de Gaulle, a quem o filósofo fez tanta crítica que um de seus ministros sugeriu sua prisão. A frase famosa do então presidente da França foi mais ou menos esta: "Não se prende um Voltaire", repetindo seu antepassado. Um ato de cavalheiro.
         Voltaire batia seu látego verbal contra muita gente, mas especialmente contra Leibniz, que nutria uma otimista (cândida) visão de mundo. Contra o slogan "o melhor dos mundos possíveis" de Leibniz, Voltaire lança uma campanha de deboche e descrédito, com um humor ácido e cortante. Inventa outro discurso: "devemos cultivar nosso jardim", um dito que merece leitura, uma vez que é a resposta do filósofo ao otimismo leibniziano. 
A peça de Leonard Bernstein, pelas bocas e corpos de vários corais, muitos cantores, maestro impecável, fez jus ao Candide. Nos fizeram rir de nossa condição humana, embora eu tenha visto um ou outro movimento contrafeito na platéia. Contudo, não se prende artistas por dizerem sobre nossa alma!
Se todos os que estavam assistindo Cândido pegassem o metrô da Luz à 00:05 de hoje (domingo), saberiam que mundo viceja pela Mauá, Cásper Líbero, Aurora, Brigadeiro Tobias, Duque de Caxias e uma dúzia de ruas que desafiam o otimismo. São cândidos e cândidas que, definitivamente, desdizem o "melhor dos mundos possíveis" leibniziano. Mais parecem confirmar a sátira de Voltaire. O cheiro de cola, crack, álcool, tabaco, as vozes empasteladas pelo vício, certamente empanariam o coro do otimistas. Muitas cenas da ópera se descortinariam à sua frente, sem retoques...
Um pouco antes de entrar na Luz, um homem se aproxima e pede cigarro. Digo que não tenho.
- Não tem ou não fuma?
- Não fumo! 
- Ah bom!
- Quer um dinheiro para compra-los?
- Não, dinheiro eu tenho, só estou com preguiça de ir comprar!
Faço um gesto de mão e cabeça, dando a entender que não posso ajudar. Me enfurno no metrô e vou para o "meu jardim", seja lá o que for que isso queira dizer...  


http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/30/imagens/i276736.jpg

quarta-feira, dezembro 11

Only Jesus Saves, a gramática do sexo e a faixa amarela!

Sé. ..
08:15 - 11/12/13
     Ouço uma linda voz masculina cantando algo que inicialmente se confunde com o rilhar do aço do metrô; mas sinto que seu timbre habita entre suave e profundo, com um curioso sotaque estrangeiro. Vem detrás e do meio da multidão que intenta entrar no vagão usando cotovelos e ombros. O dono da voz, como todos nós ali, ajoelha-se na liturgia da opressão horizontal da qual nos ocupamos cotidianamente - digamos o trem nosso de cada dia.
     Na cidade, trens, ônibus e metrôs democratizam a agressão e emparelham homens e mulheres na função de chegar a um destino. Por exemplo, a tradicional fragilidade feminina - o sexo frágil, assim dito - empurra, ombreia, dá joelhaços e pede desculpas como qualquer outro ser vivo movido a testosterona. Não há diferença entre aqueles seres suaves, de batom e brincos brilhantes, vestindo jeans entrando no rego de tão justos, e aqueles outros seres, um pouco mais rústicos, brincos brilhantes e jeans esmagando os excedentes corporais. Quanto ao batom receio não ter visto nenhum portador de testosterona usando-o. Creio que se trata da hora. Talvez a noite concedessem para uma corzinha a mais nos lábios.
     A voz chega mais perto. Não consigo entrar, nem sequer avançar no campo de batalha. Pois se trata de um. Onde não viceja fraqueza. Senhorinhas septuagenárias metem socos e bolsadas para descolar um vácuo de trinta centímetros quadrados onde se instalam ofegando. Os pulmões devem ter se encavalado sobre o coraçãozinho, para caberem em tão pequeno espaço. Impropérios grassam pelo vagão, quase sempre à meia-boca. Uma voz metálica insiste: "Fique atrás da faixa amarela! Ela é a sua segurança! Evite acidentes!"      É claro que se a gente ficar atrás da propalada faixa nunca entraremos no danado do trem. Sempre tem uma dúzia de espertinhos que entra exatamente pelo espaço deixado pelos obedientes.
Agora ouço o canto nitidamente. "Only Jesus Saves!", depois repetido "Somente Jesus salva!" Repetido em duas outras línguas que fiz de conta serem o japonês e o árabe - o primeiro por causa da memória de meu professor de judô e o segundo por causa da Cris, que me martela os ouvidos com um 'inshalah!!', ou algo assim, quando me vê, depois de muito tempo sem visita-la. Os cotovelos da voz devem ferir mais que os meus, porque, de fato, ele já está há um passo de mim, enquanto avancei só três centímetros.
     Há quem não está presente, apesar de vermos seus corpos. Certo casal nem presta atenção à barafunda de gente. Ele, bem maior, cuja testa e nariz se alinham sem aquela curva que segura nossos óculos; ela, pequena e bela, rosto brilhando de prazer. Ele a pega com uma das manoplas na pequena nuca e com o polegar gigante acaricia sua orelha esquerda estreitando-a na barriga. A outra manopla aperta docemente seu quadril acima do cóccix. É a gramática do amor sexual resistindo ao empastelamento metropolitano.
     Levo um empurrão enquanto ouço na nuca a voz gospel cantando aquela ladainha agradável. O empurrão me coloca, de um lance, no vagão. Agradeço a ajuda. Uma mulher jovem liga a câmera invertida de seu celular e investiga diligentemente as sobrancelhas penteando-as com as pontas do indicador e médio, passa algo que lhe dá brilho nos lábios e joga, com golpes de cabeça, os belos e longos cabelos para os lados e para trás, uma, duas, três vezes. Na terceira consegue desenrosca-los da mochila de um dos agonistas da cena. Com isso faz com que eles despenteiem e pareçam naturais. Gostei do efeito.
     Atrás dela e entre três ou quatro ombros vejo um japonês de mais de cinquenta anos, um dos braços para o alto em cuja mão segura uma sacola de pano azul, que acredito estar recheada de isopor de tão leve que parece. Em silêncio mostra, a cada dois ou três segundos, um dos lados dela. Em um lado está escrito "somente Jesus salva", mais abaixo letras em japonês ou chines, do outro lado "only Jesus saves", em baixo letras em árabe ou outra escrita parecida.
     Parece que sou portador de síndrome persecutória, mas tenho certeza que ele me escolheu entre todos e me olha fixamente através das grossas lentes de seus óculos. Passa a virar a sacola, naquele mesmo ritmo, mas agora para me salvar a alma. Ficamos assim, hipnotizados um pelo outro, por alguns três minutos.
     A porta se abre na Sé. Ele sai cantando lindamente. Agora consigo ver que suas roupas estão marcadas com as mesmas mensagens. Ele sobe as escadas rolantes para a Praça da Sé.
     Eu vou para o Brás...


FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...