sábado, junho 4

"Areia de asfalto na língua"!

      Esse é um dos versos de "Blue paixão", datado de 26/2/1983, por Miguel de Almeida. Em 1984 eu desenhava capas de livros para a Global Editora, mas deste livro fiz apenas a arte final. Tratava-se da coleção Navio Pirata, da qual também desenhei o logotipo, e, se não me engano, era o livro de estréia da coleção. Impresso em vermelho e azul, foi inovador para a época.
      Como de praxe, pelo menos minha praxe, li o livro para ver se podia colaborar com o aspecto gráfico. Quando cheguei neste verso me lembro de ter sido tomado por longo silêncio, que nunca pude completar, quero dizer, nunca pude saber que impressão era aquela que me tomara. O fato é que nunca esqueci estas palavras que misturam o chão da cidade ao corpo do poeta. Não se trata de um acaso qualquer que o poeta escolheu - ou algo nele escolheu - a língua, neste par corpo/asfalto. A carne que se mistura à brita da rua é exatamente aquela que no corpo mistura o som da vida à linguagem do homem. É a parte do corpo quente que articula sons e discurso, espalhando areia pelos vãos de dentes e gengivas, indo à garganta, rascando a conversa.
      Sempre me interessei por essa relação do cidadão com a urbe, do sujeito com o município, do homem com a cidade. Isso, por vias sinuosas, me enviou para um trabalho que faço para entender as relações do sujeito com a cidade em artigos, resenhas, capítulos de livros. Além disso, minha fixação pelo tema já me levou a escrever um poema, um pouco acanhado pela falta de sangue poético e, talvez, por não ter tido uma blue paixão, condição pra escrever algo tão pungente quanto "areia de asfalto na língua". Ainda assim, escrevi:

Os pés da solidão
                                              
Tenho estado a meio caminho de casa
por mais que ande.
Flutuo entre céu e terra olhando
as luzes da cidade.

Nas ruas fico entre a calçada e o asfalto iluminado.
Vou caminhando com pernas
que se conhecem bem demais,
com joelhos que conhecem seu ofício de dobrar-se;
vou vendo com olhos que brilham independentes de mim.
Meus ouvidos ouvem sons sem nexo maior
e minhas mãos aninham-se repousadas nos bolsos.
                                                                                                                                                  
Vou caminhando com pés protegidos da sanha do dia,
vou flutuando com os pés alados da fantasia,
vou apalpando os músculos lânguidos da brisa
que enfeita minha madrugada.
                                              
Vou tateando pelos rumos da vida e os ventos
vão virando as pás do moinho da existência

(São Paulo-1996) 

Do livro de Miguel de Almeida, como de tantos outros, passei décadas enciumado por ter lido versos com gosto de cidade.
"anjos de joelhos sujos
sob a coberta olhos 
de junho no delta louco
azul acho médio urbano 
no hotel central bege-bege
frege de língua, quase nau
frágil amor de talco" (22/VI/83 00:24 hot-house)

"atrás das frases sob luares, neons
pela manhã
caídas pensas nas costas
maíras, marias, muitas
ímã atado ao mau céu
de brilho anel rosado em tom de sol
canção, ruído: trilhos, esse respirado
lençol a nocaute" (2/III/83 - 10:30 olinda)

[...]some pelo cinza dos prédios
na fumaça que sobe ela finge [...] (26/XII/82 - 23:30 hot-house)

"estive nas ruas do centro da cidade
lá as mulheres morrem de amores
e não dizem nada
olhos apodrecem nas ferrugens
migalhas lanham roupas dos insetos
nos vôos das pestes soam epidemias [...] 

"amor comum
morte de paixão que não dá canção
amor de mármore nas esquinas
em flipers de luzes e tons esguelhados
meu bem dançando ao som dos automóveis" (7/IX/83 - 10:10 hot-house)

"vias transversais 
e uns versos
de animal amoroso
cravado em neon
[...] do umbigo ao rabo
nudez de andarilho
entre postes
vento de carro nas costas
os pés na água, com frio (19/IV83 21:50 hot-house)

nau nos asfalto down da rua
decadência em sonhos velhos
- e uma dor de coração (15/V/82 22:38 hot-house)

"[...]hálito da cidade [...]



"

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

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