segunda-feira, fevereiro 28

O caminho do Jeet Kune Do e do Wing Chun!

No final da década de 70 passei a ter as funções de professor de Kung Fu estilo Wing Chun, na antiga União Nacional de Kung-Fu. Já havia praticado judô, aos nove anos, em Apucarana, com um discípulo de Ono, chamado Kazuo, e depois aos quinze anos, Shao-Lin Kung-fu com Mestre Chen, e professor Marcus Tulius, lá pelos arredores da Estação da Luz. Mas, em 1976, assisti um filme de Bruce Lee, cujos comentários em revistas especializadas indicavam seu aprendizado de Wing Chun, com um grande mestre chamado Yip Man. Bastou para eu sair pela cidade de São Paulo procurando alguém que pudesse me iniciar nesta arte. Tive sorte! Depois de duas semanas de procura e surgiram notícias de que lá perto da Estação Santa Cruz do metrô, na Domingos de Morais, havia um jovem mestre que podia me introduzir no mundo dessa linhagem especial de boxe chinês. O jovem era Marco Natali, o criador da UNK!
Na primeira aula me surpreendi com a economia de movimentos, a pontualidade dos golpes e o uso da velocidade no boxe. Em princípio uma arte marcial que economiza energia me parecia fadada ao fracasso. Mas, mesmo com anos de prática, eu não podia fazer nada contra adversários que tinham menos de um ano de treino. O que estava acontecendo? Que milagre era aquele? Isso me manteve firme na prática daquilo que pensei ser uma heresia ao espírito das artes marciais.
Apesar da superioridade da técnica enxuta e objetiva do Wing Chun, o que fez diferença na minha vida de artista marcial por mais de 20 anos, foi eu ter entendido que a arte de luta não é uma imitação. Há um elemento sumamente importante que impede a simples repetição de movimentos dos grandes lutadores - o corpo. Um corpo individual, com uma limitação própria - este sim deve ser objeto de meditação, treino, estudo - pois impedirá que você seja mais um igual na massa de praticantes do combate corpo a corpo. É simples! Se você tem as pernas menos flexíveis que os outros, nada adianta flagelar a musculatura e com isso viver cuidando de contusões. Ao chegar perto do limite deve torná-lo seu amigo, cultivá-lo ao ponto de se tornar uma extensão de sua vida. Muito mais vale, no combate (por extensão, na vida) saber exatamente onde seu pé pode atingir o adversário, do que ficar tentando imitar outros colegas que naturalmente possuem mais altura ou flexibilidade. Podemos invejar à vontade os Bruce Lee da vida (geniais, é verdade!), mas o que manda mesmo na hora da refrega é saber de si.
Não se trata de deprimir a idéia de perfeição que permeia o Kung Fu; trata-se de fazer à perfeição aquilo que o corpo pode fazer. Felizmente o corpo pode muito mais do que acreditamos! Em geral ficamos bem aquém de suas forças. Não foi o caso de Lee; chegou, espantosamente, ao máximo que seu corpo podia, e creio que podemos dizer que foi além. Mas, chegar nesse limite pode levar o praticante das artes marciais a um fadiga sem recuperação. Mas, antes que alguém possa usar o fato como contraexemplo, digo que menos que isso, para Lee não interessava. Foi daqueles que queria saber quais os limites do próprio corpo. Nenhum artista marcial que quiser brilhar nesse mundo tão ambíguo, onde serenidade combina com explosão, deverá pedir menos que o limite.
Em certo momento de sua trajetória Lee acabou tendo que ficar por meses praticamente imóvel. Apesar do corpo ter lhe imposto seus limites, desta reclusão surgiu uma obra muito interessante chamada Tao of Jeet Kune Do, em 1975, quase três anos depois de sua morte, cuja leitura me ajudava a entender o espírito das artes marciais chinesas. Lá, na primeira página eu lia e relia, a propósito do zen: "The consciousness of self is the greatest hindrance to proper execution of all physical action" ou "It is not, 'i am doing this', but rather, an inner realization that 'this is happening through me', or 'it is doing this for me'''.
Embora Lee tenha praticado o Wing Chun, fascinado por sua grande economia e diretividade de golpes, quis ainda mais! No Jeet Kune Do, reduziu mais ainda os movimentos de ataque e defesa ressecando a fórmula dos ancestrais. Porém seu estilo jamais se inscreveu na grande caminhada dos estilos tradicionais. Ao analisar seus apontamentos, chegamos a uma genial simplicidade. Porém, como o que é simples não é pirotécnico, sua obra ficou esquecida, sendo guardada por um público muito restrito. Creio que sua genialidade para as artes do combate exatamente se apresentava nos movimentos econômicos e "feios", uma vez que não visavam encher os olhos da platéia, como o que se vê em estilos baseados em movimentos floreados da garça, do macaco, leão, tigre etc. Diga-se, de passagem, que o Wing Chung traz ainda as marcas da serpente e da garça em sua conformação. Mas a serviço de ir direto ao ponto, a saber, vencer o oponente em segundos, sem gastar muita energia. Porque dar dois golpes estilosos para vencer o oponente se se pode atingir o mesmo objetivo com um único e "feio" soco?
Não devemos comparar o Bruce Lee dos filmes com o do Jeet Kune Do. Fazer cinema deve encher os olhos com cenas grandiosas e com pouca realidade. Jamais Lee se comportaria em uma situação de risco do corpo, fazendo o que fez nos cinemas. Por seu porte pequeno e pouco pesado, na situação de combate real tinha que ser veloz e letal, o que não combina com o floreio cinematográfico. Ainda assim, Lee acabou colocando alguns golpes em seus filmes, que acabaram por tornar-se sua marca exatamente pela desnorteante simplicidade. Talvez, se não viesse a morrer tão precocemente, aos 32 anos, acabasse por fazer obras de cinema tendo como eixo das cenas um combate elegante, porém com a efetividade daquilo que é simples. Nunca saberemos!
Praticante do Wing Chun posso apenas dizer que este estilo sem bordados é a quintessência do Tao, e as semelhanças não os tornam iguais. Nas palavras secas e elegantes de Lee: "Life is a relationship to the whole", "truth is outside of all patterns", "the art of Jeet Kune Do is simply to simplify". Por isso, um dia desses gostaria de comparar um estilo com o outro, trazendo as palavras de um grande mestre do Wing Chun.
A foto foi captada de http://www.wired.com/entertainment/music/news/2001/11/48449#

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