sábado, maio 29

Sursis II - frases que apontam o gênio de Sartre!

Digam o que disserem, a pobreza deixa as pessoas vulgares. [...] sobretudo não me olhar mais; se me olho sou dois. [...] Entretanto, há um centro. Um centro: eu. Eu - e o horror está no centro. [...] Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre meu corpo, uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez conseguisse coincidir comigo mesmo. [...] Espantar as palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando o encontro ao fim de si mesmo... [...] Se eu fechasse os olhos: os olhos conduzem longe demais, para fora do instante, para fora de mim, para lá longe, nas folhas, nessas costas; o olhar acuado, furtivo, fugindo, sempre no extremo de si mesmo, apalpa a distância. [...] Onde está ela? Por toda parte: nasce de todos os lados, o trem corre dentro da guerra. Gomez aterrissa na guerra, esses turistas de branco passeiam na guerra, não há um batimento de coração que não a alimenta, nem consciência que não seja tomada por ela. [...] A guerra pega tudo, junta tudo, não deixa que se perca nada, nem um pensamento, nem um gesto, e ninguém a pode ver, nem mesmo Hitler. [...] Um corpo enorme, um planeta, em um espaço de cem milhões de dimensões; os seres não podiam sequer imaginá-lo. E no entanto cada dimensão era uma consciência autônoma. Se tentasse olhar de frente esse planeta, ele se desintegraria e sobrariam somente consciências. Cem milhões de consciências livres, cada uma delas vendo paredes, tocos de charutos, rostos familiares, e construindo seu destino por conta da própria responsabilidade. Entretanto, se a gente fosse uma dessas consciências, perceberia, através de imperceptíveis toques, de insensíveis mudanças, que estava preso a um gigantesco e invisível polipeiro. A guerra: todos são livres e no entanto a sorte está lançada. Ela está aqui, está por toda parte, é a totalidade de todos os meus pensamentos, de todas as palavras de Hitler, de todos os atos de Gomez: mas não há ninguém para estabelecer o total. Só existe para Deus. Mas Deus não existe. Contudo a guerra existe. [...] Pensou em sua vida e não a achou mais demasiado curta: as vidas não são nem curta nem longas. Era uma vida, apenas. [...] Mas não se escolhe a vocação: acerta-se ou malogra-se, eis tudo. E o pior, na sua, era que não podia voltar atrás. Havia existências que se assemelhavam aos exames finais: submetiam-nas a várias provas e, se fracassavam em física, podiam alcançar média com as ciências naturais ou filosofia. A dele sugeria antes um certificado de filosofia geral, no qual se é julgado por uma única prova; era terrivelmente intimidante. [...] Era preciso dizer a si mesmo que de certo ponto de vista, tudo se equivale: um ataque em Argonne vale um passeio de gôndola... [...] Entretanto, até aquele momento ainda restava alguma coisa a que se poderia chamar Mathieu, alguma coisa a que se agarrava com todas as suas forças. Não saberia defini-la. Talvez um hábito muito antigo, talvez certa maneira de escolher seus pensamentos à sua imagem, de se escolher a si mesmo ao acaso dos dias, à imagem de seus pensamentos, de escolher seus alimentos, seus hábitos, as árvores e as casas que via. Nada: haveria para sempre, este relâmpago seco inflamando pedras sob o céu escuro; o absoluto, para sempre; o absoluto, sem causa, sem razão sem objetivo, sem outro passado, sem outro futuro senão a permanência, gratuito, fortuito, magnífico. "Sou livre", pensou subitamente. E sua alegria transformou-se de imediato em esmagadora angústia. [...] Houve um silêncio. Somos animais, fazemos frases em torno de um instinto. [...] Fora do mundo, fora do passado, fora de mim mesmo: a liberdade é o exílio e estou condenado a ser livre. [...] Bocejavam, dormiam, jogavam cartas, mas tinham um destino, como os reis, como os mortos. Um destino esmagador, que se confundia com o calor, a fadiga, o zumbido das moscas [...] Um jovem é como viajantes que entram à noite num compartimento quase cheio: as pessoas os detestam e preferem fazê-los acreditar que não há mais lugar. [...] As ruas, as casas, os vagões, a delegacia: um mundo cheio até a borda, o mundo dos homens.

(Sursis - J-P Sartre - 1945 segundo volume do romance "Os Caminhos da Liberdade" - tradução de Sérgio Milliet, 4ª edição - Ed. Nova Fronteira)

sábado, maio 15

O cutelo dos conceitos!

Na abertura do Seminário-I (Les écrits thecniques de Freud) Jacques Lacan nos lembra que Freud diz do analista que este se assemelha a um bom cozinheiro cuja arte e experiência o leva a conhecer bem as articulações que deverá destacar, juntas onde a faca entra com maior docilidade. Claro, ali se falava da lâmina dos conceitos; é com eles que se faz uma dissecação das estruturas, seu "modo de conceitualização", o embaraço do sujeito da ciência na linguagem. 
    Na verdade o sujeito não se embaraça na linguagem senão como já seu produto - produto da linguagem. Como diz Lacan os conceitos não "emergem da experiência humana - surgem das palavras mesmo; elas são os instrumentos para delimitar as coisas". Assim, também, o sujeito não faz surgir palavras, mas surge delas; não faz nascer palavras, mas é gestado por elas. Contudo, mesmo fundados em sujeito pela linguagem, acabamos ficando a mercê da idéia de que somos compreensíveis a nós mesmos e centros da linguagem. Isso se dá por um apagamento do caminho feito pela linguagem, que é política, até formar a subjetividade, que é singular. Esse ponto de singularidade, mesmo que produto ideológico, acaba por ser aquilo pelo qual o sujeito se intitula "eu". 
      Parafraseando a música (de Erasmo Carlos?) Todo sujeito precisa de um eu para chamar de seu, mesmo que seu eu não seja, de fato, uma maravilha de eu. Estando mais para uma esperança de ser, o eu do sujeito, produto da fricção do singular com o político, deve tomar a cena criada para sua protagonização. Neste teatro do eu vale dizer que agoniza frente a si mesmo. 
     Lacan, que lida como poucos com a violência - seja da interpretação, do texto ou da vida - preferiu usar a metáfora do cozinheiro que desarticula membros com sua faca; trata-se de cozinhar tendo em mente a carne do sujeito. Se fosse um cozinheiro criando um prato vegetariano talvez falasse de pepinos em palitos, tomates em cubo ou couve em fios. Mas, com essa cozinha light ou soft, perderíamos, creio, o efeito de violência que Lacan pretendera. Parece que a psicanálise lacaniana não combina com uma salada verde, mista ou completa, como se diz no jargão dos botecos. Ou com arroz integral e feijão azuki. Ou com frutas coloridas e brilhantes dos restaurantes vegetarianos. Para a psicanálise trata-se de tendões partidos e carne vincada; de escaras e ossos à vista; de sangue e lágrimas. Foi outro Jacques, o Derrida, que disse: 
    "Pode-se estancar a crueldade sanguinária (cruor, crudus, crudelitas) ou pôr um fim ao assassinato por arma branca, por guilhotina, nos teatros clássicos ou modernos da guerra sangrenta, mas, segundo Nietzsche ou Freud, uma crueldade psíquica restará para sempre inventando novos recursos. Uma crueldade da psique, um estado da alma, portanto do ser vivente, mas uma crueldade não sanguinária" (Estados-da-alma da psicanálise - um impossível para além da soberana crueldade, p.7, 2001).    

sábado, maio 1

O crime e o castigo de Raskólnikov!

    Haverá algum tipo de crime que pode ser honroso? Mais exatamente, um assassinato pode justificar, honrar e dignificar o assassino? O crime pode ser redentor? Por mais exótica, bizarra e estranha a pergunta, na verdade essa questão já encontrou resposta prática em muitas ocasiões. Muitos assassinatos no correr da história foram justificados no cerne de argumentos que misturam teorias sociais salvíficas, guerras santas (cristãs e islâmicas principalmente; porém, há exemplares taoístas, hindus etc.), assassinatos libertadores, correcionais e outras variantes. 
     Para Raskólnikov tratava-se de salvar o mundo de gente como aquela senhora que assassinara a golpes de machado, e que, para azar dela, teve que matar sua criada que chegara de surpresa na cena do crime. A primeira morria cumprindo uma sua teoria de que o mundo precisava ser livre de gente como aquela - usurária e sem compaixão. A segunda fora um acidente, uma fatalidade - estava no lugar errado na hora errada; pura facticidade. Os dias correm e nosso anti-herói agora está na frente do investigador, que por alguma razão já desconfia que ele é o assassino. Raskólnikov não se dá por encontrado. Porfírii diz, de modo bem claro e veladamente ameaçador:
     "Estamos em presença de um caso sombrio e fantástico; esse crime traz a marca de nossos tempos, o cunho de uma época em que o coração humano se alterou, em que se afirma, citando autores, que o sangue 'purifica', em que só existe a preocupação do conforto. [...] matou duas pessoas para obedecer a uma teoria".
     Para obedecer uma teoria ou para cumprir uma profecia, para cumprir um mandado, para salvar uma nação, para justiça, para fugir do medo; mata-se por muitos motivos e quase todos acompanhados de uma teoria a ser demonstrada. Raskólnikov achava que a humanidade estaria melhor sem aquela mulher que explorava os necessitados, tomando-lhes os objetos queridos e transformando-os em alguns copeques, ou seja, centavos, tostões ou a famosa merreca. Sempre entregando menos dinheiro do que valem e cobrando acima do valor. Quase impossível recuperar o objeto empenhado!
     A golpes de machado o jovem pensa fazer justiça ao mundo; usar o dinheiro conseguido com aqueles objetos para sua formação intelectual - algo muito mais plausível do que continuarem nas mãos daquela mulher que nada faria de útil ao mundo com os tais objetos penhorados.
     Creio que numa certa perspectiva um Hitler, um Mussolini, os homens-bombas e outros pensam salvar o mundo do que chamam a escória humana. E as coisas se dão de tal modo que a teoria que tentam provar exige o assassinato. Parece-lhes completamente justificado matar, exercer a crueldade sem limites. 
     Alguns em nome da, ou escudados na soberania. Outros, como o herói de Crime e Castigo, apenas seguindo um raciocínio lógico - uma certa lógica perversa onde os fins justificam os meios. Jacques Derrida disse que é condição da soberania a violência e Giorgio Agamben busca demonstrar que há no mundo um certo tipo de gente que é simplesmente matável - o homo sacer - que fica no limbo entre cidadania e desaparecimento. Morrem nas prisões de Guantámano, nas montanhas do Tibet e também nos Carandirus do Brasil. Trata-se de vida matável, segundo a nomenclatura Agambeniana. Mas para matar não precisamos apertar o gatilho; basta nos calarmos frente a anomia social. Só com este simples gesto - gesto negativo - confirmamos que há vida matável e que nada há a fazer a não ser matá-los pelo silêncio. 
     Se os soberanos ou os Estados matam pela força ou pela inanição, nós, cidadãos "plenos" matamos os "meros indivíduos" (como li em não sei que obra) pela denegação de sua existência. Tal como raskólnikoves multiplicados, embora sem machados nas mãos, vamos matando gente "insignificante", "invisível", sempre munidos de uma boa teoria.
     Outro dia uma pessoa, que eu não conhecera até então, enquanto conversávamos num café da Vila Mariana, proferiu sua teoria em palavras bem marcadas: Quando vejo um carrão importado do lado de um carrinho caindo pedaços, sei que as coisas ainda estão funcionando. Fica claro que cada um merece o que tem; dá para ver exatamente quem trabalha e quem não trabalha. 
      Depois, achando que exagerara, tentou consertar, mas a emenda ficou pior que o soneto: O cara do carrão é mais inteligente! 
      Sem essa teoria a justificar a situação como poderíamos conviver com essas diferenças sociais sem colocar a desnudo nossa crueldade!? 
      Bem, apesar da biografia de Dostoiévski ser embebida em quase crimes, perdas de dinheiro em jogo, ataques de epilepsia e muita confusão na vida, o fato é que era um moralista e seu personagem Raskólnikov acaba indo para as galés e sofre os horrores de um castigo que, acreditamos, o purificou do sangue derramado. Tudo como manda o figurino dos romances, do cinema, do teatro e das novelas.  
     Já na vida real não creio que sejamos punidos pelo sangue que deixamos derramar se não colocamos nele nossas mãos. Mas Sartre nos puxa as orelhas quando diz que, nestas situações, o silêncio é reacionário; em outras palavras, conserva a situação com está...

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...