sábado, maio 15

O cutelo dos conceitos!

Na abertura do Seminário-I (Les écrits thecniques de Freud) Jacques Lacan nos lembra que Freud diz do analista que este se assemelha a um bom cozinheiro cuja arte e experiência o leva a conhecer bem as articulações que deverá destacar, juntas onde a faca entra com maior docilidade. Claro, ali se falava da lâmina dos conceitos; é com eles que se faz uma dissecação das estruturas, seu "modo de conceitualização", o embaraço do sujeito da ciência na linguagem. 
    Na verdade o sujeito não se embaraça na linguagem senão como já seu produto - produto da linguagem. Como diz Lacan os conceitos não "emergem da experiência humana - surgem das palavras mesmo; elas são os instrumentos para delimitar as coisas". Assim, também, o sujeito não faz surgir palavras, mas surge delas; não faz nascer palavras, mas é gestado por elas. Contudo, mesmo fundados em sujeito pela linguagem, acabamos ficando a mercê da idéia de que somos compreensíveis a nós mesmos e centros da linguagem. Isso se dá por um apagamento do caminho feito pela linguagem, que é política, até formar a subjetividade, que é singular. Esse ponto de singularidade, mesmo que produto ideológico, acaba por ser aquilo pelo qual o sujeito se intitula "eu". 
      Parafraseando a música (de Erasmo Carlos?) Todo sujeito precisa de um eu para chamar de seu, mesmo que seu eu não seja, de fato, uma maravilha de eu. Estando mais para uma esperança de ser, o eu do sujeito, produto da fricção do singular com o político, deve tomar a cena criada para sua protagonização. Neste teatro do eu vale dizer que agoniza frente a si mesmo. 
     Lacan, que lida como poucos com a violência - seja da interpretação, do texto ou da vida - preferiu usar a metáfora do cozinheiro que desarticula membros com sua faca; trata-se de cozinhar tendo em mente a carne do sujeito. Se fosse um cozinheiro criando um prato vegetariano talvez falasse de pepinos em palitos, tomates em cubo ou couve em fios. Mas, com essa cozinha light ou soft, perderíamos, creio, o efeito de violência que Lacan pretendera. Parece que a psicanálise lacaniana não combina com uma salada verde, mista ou completa, como se diz no jargão dos botecos. Ou com arroz integral e feijão azuki. Ou com frutas coloridas e brilhantes dos restaurantes vegetarianos. Para a psicanálise trata-se de tendões partidos e carne vincada; de escaras e ossos à vista; de sangue e lágrimas. Foi outro Jacques, o Derrida, que disse: 
    "Pode-se estancar a crueldade sanguinária (cruor, crudus, crudelitas) ou pôr um fim ao assassinato por arma branca, por guilhotina, nos teatros clássicos ou modernos da guerra sangrenta, mas, segundo Nietzsche ou Freud, uma crueldade psíquica restará para sempre inventando novos recursos. Uma crueldade da psique, um estado da alma, portanto do ser vivente, mas uma crueldade não sanguinária" (Estados-da-alma da psicanálise - um impossível para além da soberana crueldade, p.7, 2001).    

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