quinta-feira, dezembro 26

Django, Pharmakon e Lawrence da Arábia!


Luz-25.12.13 09:55h
Desde que me enfeiticei pelo cinema, antes de ter uma tevê em casa - o que só se daria 4 anos após o embruxamento pela telona, já em São Paulo - sempre quis ter uma trilha sonora enquanto ia vivendo meus dias. Em minha fantasia uma música maravilhosa fluía por entre as árvores da avenida Curitiba, em minha cidade natal, escondidas em caixas de som estrategicamente colocadas nos caminhos que eu faria. Como fantasias se esbatem com a realidade, não conseguia imaginar como as caixas tinham sido colocados com seus tweeters, nem como se deslocariam até o Jardim Adriane, onde morava, bem depois da linha do trem, no meio do pasto.
      Enquanto não solucionava esse pequeno problema, enlouquecia semanalmente, nos três ou quatro cinemas da cidade, gastando algumas moedas ganhas como guarda mirim, num tempo em que menor podia trabalhar. Viajava para o velho oeste com a música de gaita acentuando o deserto, e o assobio de Django, retocando o clima de tensão no faroeste. Particularmente um que tinha como motivo um dólar furado, que mostrava o milagre de uma providencial moeda no lugar certo e na hora certa - desta vez cara e famosa - salvando a vida do mocinho. Numa das inúmeras vezes que assisti o filme do dólar furado, ao sair do Cine Fênix, ouvi um senhor dizendo para sua senhora: homem de sorte! Ao que ela retruca: sorte uma ova! Foi a mão de deus!
      Para mim, interessava que o ar era impregnado de som e a vida andava noutro ritmo. Um ritmo que só a música podia imprimir na existência. As imagens passeavam na tela e eu ali, rendido, sequestrado do mundo sem gosto e desmusicado da realidade, gozando daquele outro mundo onde tudo, mesmo nas histórias mais tristes ou violentas, era brilho e som. Sabia de uma coisa - o cinema era mais emocionante que a vida.
Descobri estes templos de belas mentiras, aos onze anos. Encontrara meu pharmakon mais duradouro. Anos mais tarde, pensei em ser crítico de cinema. Declinei da profissão. Ainda bem, pois teria perdido minha infância, e ficado adulto.
      Embalado por estas lembranças, olho as inglesas formas da estação da Luz; o metal curvado fazendo belas barras que sustentam o teto sobre os trilhos dos trens que vão à periferia e cidades derredores. Ali embaixo, uma garotinha senta-se no chão e atira moedas deslizando pelo piso e um homem jovem para cada uma delas com gestos precisos, ora com as mãos, ora com um pé e as atira de volta, tomando cuidado para não ferir a pequena. Uma mulher de traços nordestinos, suaves e arredondados, olha a cena, com olhar descansado e sem compromisso.
      De repente, como numa cena de filme de scorceses e hitchcockes, pai e filha permanecem neste jogo singelo, alheios ao mundo; uma pomba desce e pega palha de uma caixa de presentes jogadas em um canto, voa verticalmente, num balé milimétrico e desaparece atrás de uma coluna curva; um rapaz dança cadenciadamente uma música inaudível; um outro casal se enrodilha num rito sexual sem muita paixão - ele alheio, com olhos numa cena que não diviso, e ela, performática, beija-lhe repetidamente a bochecha esquerda; uma mulher chora sentada em um dos bancos de plástico; três homens vem vindo em câmera lenta igual em Laranja Mecânica - tal como na cena em que Alex caminha com seus comparsas, sob a nona de Beethoven. A cena só é possível porque estamos em um feriado; pouquíssimos passageiros na plataforma britânica e uma letargia causada pelas ceias de meia noite com maionese regada a refrigerante.
      Pela janela do trem, que faço de conta que é uma tela, olho a cena enquanto o trem vai saindo devagar. As imagens escorrem pelos olhos. Nada retumbante como em Hollywood; até mesmo pelo contrário - uma cena sem clímax. No entanto, como numa destas magias cinematográficas, que misturam nostalgia, inventividade e música, assisti tudo se distanciando ao som de Era uma vez na America, de Ennio Morricone, e em câmera lenta, como no filme de Kubrick.    
      Nunca tive paciência para andar com o radinho de pilhas nas orelhas. Tentei o toca-fitas e depois o walkman. Nada se compara aos aparelhinhos tipo M-alguma-coisa ou os celulares. Me rendo à fantasia. Finalmente minha vida pode ter uma trilha sonora. Pena que as aventuras que me aguardam nem se comparam aos Canhões de Navarone, Lawrence da Arábia, A Ponte do Rio Kwai, Intriga Internacional, Contrastes Humanos, Uma Aventura na África, King Kong, Aguirre e a Cólera dos Deuses, Rio Vermelho e outros, que assisti escondido pelo lanterninha, um amigo a quem favoreci ficando em seu lugar na bilheteria do Clube 28, em troca desta contravenção.
      Pensando bem, essa foi uma aventura e tanto...


domingo, dezembro 15

Voltaire, Sartre e o melhor dos mundos possíveis!

Luz: Sábado - 20:00h

A luz do dia se esvai exatamente enquanto caminho para a saída do metrô que dá para a Rua Mauá. Tenho uma certa reverência por este nome... "Mauá" me soa bem aos ouvidos e nem sei ao certo qual a referência. A esquina entre a Mauá, que ladeia a estação da Luz e a Rua Cásper Líbero é a mistura amalgamada de figuras bem desenhadas dos inferninhos. Talvez uma extensão ou deslizamento da antiga Boca do Lixo lá pelas bandas da Praça da República. Nesta hora, num sábado, noite azul escura no céu, a cena é dominada pelas prostitutas sexagenárias e uma centena de homens de pouca idade tomando cerveja nos beirais de pequenos hotéis rescindindo a cloro. 
Apesar da aparência um tanto agressiva, estão ali de boa fé, na sacristia do sexo, e não estão ligando para nós meros passantes. Só querem seu quinhão de alegria numa semana que os triturou de alto a baixo, de nuca a calcanhares, noutra sacristia - a do patrão. Estou ali de passagem e não pretendo ficar mais que o tempo de, a passadas decididas, ganhar a direção da antiga estação de trem Júlio Prestes. Saio do metrô que dá para a Cásper, viro nos calcanhares e tomo a Mauá. Resolutamente. Vai que nem todos ali são de boa fé.
       À direita a bela construção da Luz, à esquerda uma série de prédios corroídos pelo tempo. Passa por mim uma pequena puta, corpo magro, quarenta e cinco quilos, carregando no ombro direito um rádio a pilha, onde toca uma música bem cadenciada, um ritmo dançante, que desconheço. Mais a frente um homenzinho também magro, copo de cerveja na mão, dança gostosamente na calçada para só tropeçar no chão irregular e quase cair à minha frente. Mas, bêbados se equilibram melhor que praticantes de taichi. E ele ficou em pé, grotescamente ereto e me cumprimentou com um sorriso bobo. Devolvi o cumprimento com o sorriso mais bobo que eu podia desenhar na cara e não dei motivo para conversa. Vai que a conversa era das boas... e eu tinha um compromisso logo adiante.
  A Júlio Prestes me dá sensações estranhas. Não passei ali mais que meia dúzia de vezes nos quarenta anos que conheço São Paulo. Mas foi em suas calçadas que pisei o solo paulistano em 29 de dezembro de 1973. Numa tarde quente e abafada. Chegava de Apucarana depois de uma longa viagem que começara no dia anterior. Me lembro que olhei muito tempo as fachadas do prédio, com os olhos mal dormidos sendo cozidos pelo calor que vinha da construção. Depois tomei o rumo da Penha, levando bagagem acima de minhas forças.
       Mas, agora estava ali, a convite de Vanusa Barbosa, uma das coralistas do Coral Municipal da Cidade de Santo André, para assistir "Candide", uma pequena ópera, escrita por Leonard Bernstein, bem engraçada, baseada numa sátira escrita por Voltaire. Entro na Sala São Paulo e não reconheço o lugar que um dia frequentara por algumas horas como passageiro do trem que ali freara rodas. Fico desorientado. Mas logo retomo o porquê estava ali. E minha estação de trem vai perdendo significado para o espetáculo irreparável que se descortinou. 
Já conhecia Cândido, ou Do Otimismo, ao ler Voltaire. No entanto, a leitura de outro filósofo, desta vez Sartre, "o Voltaire de nossa época", como foi dito pelos franceses, me é mais saborosa. Enquanto no século das Luzes o iluminista foi defendido pelo próprio rei, que o deixou livre para pensar, Sartre foi deixado livre pelo próprio Charles de Gaulle, a quem o filósofo fez tanta crítica que um de seus ministros sugeriu sua prisão. A frase famosa do então presidente da França foi mais ou menos esta: "Não se prende um Voltaire", repetindo seu antepassado. Um ato de cavalheiro.
         Voltaire batia seu látego verbal contra muita gente, mas especialmente contra Leibniz, que nutria uma otimista (cândida) visão de mundo. Contra o slogan "o melhor dos mundos possíveis" de Leibniz, Voltaire lança uma campanha de deboche e descrédito, com um humor ácido e cortante. Inventa outro discurso: "devemos cultivar nosso jardim", um dito que merece leitura, uma vez que é a resposta do filósofo ao otimismo leibniziano. 
A peça de Leonard Bernstein, pelas bocas e corpos de vários corais, muitos cantores, maestro impecável, fez jus ao Candide. Nos fizeram rir de nossa condição humana, embora eu tenha visto um ou outro movimento contrafeito na platéia. Contudo, não se prende artistas por dizerem sobre nossa alma!
Se todos os que estavam assistindo Cândido pegassem o metrô da Luz à 00:05 de hoje (domingo), saberiam que mundo viceja pela Mauá, Cásper Líbero, Aurora, Brigadeiro Tobias, Duque de Caxias e uma dúzia de ruas que desafiam o otimismo. São cândidos e cândidas que, definitivamente, desdizem o "melhor dos mundos possíveis" leibniziano. Mais parecem confirmar a sátira de Voltaire. O cheiro de cola, crack, álcool, tabaco, as vozes empasteladas pelo vício, certamente empanariam o coro do otimistas. Muitas cenas da ópera se descortinariam à sua frente, sem retoques...
Um pouco antes de entrar na Luz, um homem se aproxima e pede cigarro. Digo que não tenho.
- Não tem ou não fuma?
- Não fumo! 
- Ah bom!
- Quer um dinheiro para compra-los?
- Não, dinheiro eu tenho, só estou com preguiça de ir comprar!
Faço um gesto de mão e cabeça, dando a entender que não posso ajudar. Me enfurno no metrô e vou para o "meu jardim", seja lá o que for que isso queira dizer...  


http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/30/imagens/i276736.jpg

quarta-feira, dezembro 11

Only Jesus Saves, a gramática do sexo e a faixa amarela!

Sé. ..
08:15 - 11/12/13
     Ouço uma linda voz masculina cantando algo que inicialmente se confunde com o rilhar do aço do metrô; mas sinto que seu timbre habita entre suave e profundo, com um curioso sotaque estrangeiro. Vem detrás e do meio da multidão que intenta entrar no vagão usando cotovelos e ombros. O dono da voz, como todos nós ali, ajoelha-se na liturgia da opressão horizontal da qual nos ocupamos cotidianamente - digamos o trem nosso de cada dia.
     Na cidade, trens, ônibus e metrôs democratizam a agressão e emparelham homens e mulheres na função de chegar a um destino. Por exemplo, a tradicional fragilidade feminina - o sexo frágil, assim dito - empurra, ombreia, dá joelhaços e pede desculpas como qualquer outro ser vivo movido a testosterona. Não há diferença entre aqueles seres suaves, de batom e brincos brilhantes, vestindo jeans entrando no rego de tão justos, e aqueles outros seres, um pouco mais rústicos, brincos brilhantes e jeans esmagando os excedentes corporais. Quanto ao batom receio não ter visto nenhum portador de testosterona usando-o. Creio que se trata da hora. Talvez a noite concedessem para uma corzinha a mais nos lábios.
     A voz chega mais perto. Não consigo entrar, nem sequer avançar no campo de batalha. Pois se trata de um. Onde não viceja fraqueza. Senhorinhas septuagenárias metem socos e bolsadas para descolar um vácuo de trinta centímetros quadrados onde se instalam ofegando. Os pulmões devem ter se encavalado sobre o coraçãozinho, para caberem em tão pequeno espaço. Impropérios grassam pelo vagão, quase sempre à meia-boca. Uma voz metálica insiste: "Fique atrás da faixa amarela! Ela é a sua segurança! Evite acidentes!"      É claro que se a gente ficar atrás da propalada faixa nunca entraremos no danado do trem. Sempre tem uma dúzia de espertinhos que entra exatamente pelo espaço deixado pelos obedientes.
Agora ouço o canto nitidamente. "Only Jesus Saves!", depois repetido "Somente Jesus salva!" Repetido em duas outras línguas que fiz de conta serem o japonês e o árabe - o primeiro por causa da memória de meu professor de judô e o segundo por causa da Cris, que me martela os ouvidos com um 'inshalah!!', ou algo assim, quando me vê, depois de muito tempo sem visita-la. Os cotovelos da voz devem ferir mais que os meus, porque, de fato, ele já está há um passo de mim, enquanto avancei só três centímetros.
     Há quem não está presente, apesar de vermos seus corpos. Certo casal nem presta atenção à barafunda de gente. Ele, bem maior, cuja testa e nariz se alinham sem aquela curva que segura nossos óculos; ela, pequena e bela, rosto brilhando de prazer. Ele a pega com uma das manoplas na pequena nuca e com o polegar gigante acaricia sua orelha esquerda estreitando-a na barriga. A outra manopla aperta docemente seu quadril acima do cóccix. É a gramática do amor sexual resistindo ao empastelamento metropolitano.
     Levo um empurrão enquanto ouço na nuca a voz gospel cantando aquela ladainha agradável. O empurrão me coloca, de um lance, no vagão. Agradeço a ajuda. Uma mulher jovem liga a câmera invertida de seu celular e investiga diligentemente as sobrancelhas penteando-as com as pontas do indicador e médio, passa algo que lhe dá brilho nos lábios e joga, com golpes de cabeça, os belos e longos cabelos para os lados e para trás, uma, duas, três vezes. Na terceira consegue desenrosca-los da mochila de um dos agonistas da cena. Com isso faz com que eles despenteiem e pareçam naturais. Gostei do efeito.
     Atrás dela e entre três ou quatro ombros vejo um japonês de mais de cinquenta anos, um dos braços para o alto em cuja mão segura uma sacola de pano azul, que acredito estar recheada de isopor de tão leve que parece. Em silêncio mostra, a cada dois ou três segundos, um dos lados dela. Em um lado está escrito "somente Jesus salva", mais abaixo letras em japonês ou chines, do outro lado "only Jesus saves", em baixo letras em árabe ou outra escrita parecida.
     Parece que sou portador de síndrome persecutória, mas tenho certeza que ele me escolheu entre todos e me olha fixamente através das grossas lentes de seus óculos. Passa a virar a sacola, naquele mesmo ritmo, mas agora para me salvar a alma. Ficamos assim, hipnotizados um pelo outro, por alguns três minutos.
     A porta se abre na Sé. Ele sai cantando lindamente. Agora consigo ver que suas roupas estão marcadas com as mesmas mensagens. Ele sobe as escadas rolantes para a Praça da Sé.
     Eu vou para o Brás...


domingo, novembro 24

QUEM É LEVI LEONEL DE SOUZA - I

QUEM É LEVI LEONEL DE SOUZA?

Me perguntam isso muitas vezes, em palestras, cursos, seminários e frequentemente não tenho como responder de uma só vez. Respondo aqui, mas ainda por partes, porque não faço apenas uma coisa na/da vida. Começo de algum ponto, sem ser o mais importante para mim, pois levo todos meus interesses mais ou menos ao mesmo tempo.
       Enquanto psicólogo, sou antes de tudo o mais, um clínico e teórico razoavelmente comprometido e engajado nas ideias psicanalíticas vinculadas principalmente a D. Winnicott (teoria do amadurecimento emocional), A. Green (o neutro, narcisismo e clínica do vazio), C. Bollas (clínica da histeria; forças do destino), A. Alvarez (psicanálise do autismo), H. Kohut (análise do self) - sem que assinem em baixo um ao outro - além do próprio Freud, claro, que dispensa comentários!
       Também sou leitor interessado de J. Lacan, F. Dolto, P. Aulagnier (sem, também, que um e outro necessariamente se subscrevam). Leitor eventual, mas curioso, de J. MacDougall e Bion, de onde retiro, da primeira, subsídios para uma clínica psicanalítica psicossomática, e do segundo um trabalho do e sobre o sonho com consequências sobre minha clínica do corpo em psicanálise e nos trabalhos em grupo.
       Destes psicanalistas Winnicott talvez tenha sido aquele que mais se ocupou com a questão do sensível em psicanálise; e isso interessou-me profundamente, pois minha história com o corpo, remontava às artes marciais praticadas desde menino, entre o judô, o wing-chun e o kalaripayatu (já adulto), exatamente nesta sequência. Depois, por paixão, acrescentei nesta jornada pelo corpo, a medicina indiana, na forma do yôga, das terapias corporais e massagem, e isso até hoje. Noutro momento voltarei a esta parte dos meus interesses, com suas teorias do corpo e as consequências daí advindas.
       Todos os autores acima citados são, de um modo ou de outro, freudianos, desta maneira fica transparente meu comprometimento com o pensamento freudiano, ainda que com todos esses deslizes semânticos, técnicos e teóricos que leituras tão heterogêneas impõem. Isso porque não falei de meus interesses pelo discurso, pelo poder e pela ideologia. Volto a estes temas em breve, aqui mesmo neste blog.

sábado, abril 27

O Vilarejo - Dostoiévski


Gosto d'O Vilarejo de Dostoiévski. Claro que aqui o autor não rivaliza consigo mesmo como por exemplo em "Crime e Castigo" e "Pobre Gente", romances que escrevera antes de amargar, na Sibéria, anos de trabalho forçado, por problemas políticos. Gosto simplesmente porque mostra, pelas frestas deste romance aquele que um dia fora e aquele que ainda estaria por vir, mesmo depois do grande "Crime e Castigo". N'O Vilarejo ele estava amedrontado pela censura lançando mão da sátira para dar vida a seus pensamentos e permanecer livre para escrever. Neste romance, que gravita também pela alegoria, para falar do bem e do mal, como manda o figurino literário da época, são colocados Rostaniev - a própria encarnação do bem, da tolerância e compaixão versus Opiskin - frio, determinado a causar a maior dor moral possível aos seus próximos. Essa luta do bem contra o mal é eterna na obra dostoiévskiana e sua genialidade estava em temperar ingredientes tão simples e básicos de tal modo que sua leitura é viciante. É como se ele extraísse dois ou três elementos da alma humana e os elevasse a uma espécie de arcabouço comum da alma de todos nós; ou com dois ou três órgãos fizesse um corpo inteiro da alma - e nisto era um anatomista da alma. Seus personagens em geral e especialmente neste "O Vilarejo", são impelidos por uma força que não lhes dá muita chance de dúvida. E quando dúvida há, algo de dentro, ou por trás, vindo dos hábitos, toma a decisão pelo personagem, tornando-o títere de costumes e de pulsões íntimas não discerníveis. É uma espécie de "a vida como ela é", sem dó, nem perdão. Sem redenção ou sentido.
Por exemplo, neste romance, Dostoiévski cria o vilarejo de Stepantchikovo, território onde se dá o combate até o último fôlego, entre amor e ódio, encarnados por Rostaniev e Opiskin. O autor lança mão de um artifício muito simples para nos colocar dentro dos acontecimentos: a presença, passo a passo, de um sobrinho de Rostaniev, que nos ajuda a passear pela indignação que este não possui. A alma de Rostaniev é uma grande catedral onde os mais diversos pecadores são acolhidos e purificados... ele sempre está disposto, a contrapelo de si mesmo, a perdoar, a engrandecer, a purificar cada uma das almas que estão ao seu dispor, como rezava os contratos dos donos de terras - eram compradas com as pessoas que ali habitavam. É nestas condições que regem a situação que Opiskin se insinua como a serpente bíblica.
Opiskin é dono de uma excepcional habilidade de esgrimar com as palavras para desnudar os sentimentos do interlocutor. Não para purifica-los, mas para dominá-los, usá-los, sorver-lhes a medula moral. Depois deste vampirismo sobra de cada pessoa, sendo seu alvo preferido Rostaniev, pouco mais que uma massa amorfa feita de corpo e vergonha. Opiskin conhece a alma humana como ninguém mais. Será preciso o autor escrever, entre outros romances, "Os Irmãos Karamazov" para privarmos de personagens que conhecem tão bem, ou melhor ainda, os diabos da alma humana e os débeis anjos que os combatem.
Para não estragar o prazer de algum eventual leitor d'O Vilarejo, pergunto, sem responder: qual será o plano de Opiskin? Basta-lhe salivar o doce sabor da vitória no combate verbal, corroendo os incautos que lhe caem na rede? Ou ele tem um plano ainda mais sinistro para o vilarejo de Stepantchikovo?
Só posso adiantar que os editores mais importantes da época rejeitaram esta obra, sendo publicado apenas anos depois, em 1860, com um estrondoso silêncio do público. Dostoiévski chegou a dizer: "se o público a receber friamente, eu me sentirei desesperado. As minhas melhores esperanças, e sobretudo a consolidação do meu nome literário dependem dela". Mas, os grandes escritores são como Fênix. Ressurgem dos escombros causados pelas críticas e pela rejeição do leitor. Para terem uma ideia da tragédia, Nekrassov o grande poeta de sua época também negou-se a edita-lo, declarando solenemente: "Dostoiévski morreu!" Quatro anos depois o autor de Crime e Castigo, é realçado à glória com o estupendo O Adolescente. 
Havia ressurgido dos mortos para se tornar eterno. 

sábado, abril 13

Ong Voluntários da Pata!

                Quero aproveitar este espaço para fazer umas considerações sobre as ações que o cidadão poderá empreender para mudar a situação desesperadora dos animais de rua.
                Recentemente, numa tarde de domingo, sob o clima solene do Teatro Municipal de Pouso Alegre, vi florescer a ONG Voluntários da Pata, uma iniciativa privada que, nestas poucas semanas, se consolidou junto ao cidadão pousoalegrense, principalmente pelo empenho incansável de seus voluntários em praticar sua premissa, a saber, amenizar o sofrimento animal na cidade. Suas principais práticas sociais são a fomentação de cuidados terapêuticos aos bichos de rua famintos, feridos e atacados por pestes várias; a intervenção e acolhimento dos animais resgatados em situações degradantes; o estímulo da adoção por pessoas que querem um animal de estimação e a castração destes animais.
               
Uma das ações mais visíveis deste voluntariado é a barraca de adoção de animais que se instala todo sábado na praça central de Pouso Alegre, junto à azáfama de crianças, jovens namorando, mães com seus bebês de colo, meninos e meninas brincando, anciãos colocando a conversa em dia, o homem da bíblia pregando, crianças pulando no parquinho instalado perto da fonte e centenas de passantes que tomam as sombras das árvores centenárias. Entre os voluntários da ONG estão pessoas de cidades vizinhas, que têm interesse em fazer parcerias e mesmo repetir a experiência desta iniciativa citadina. Além dessa presença semanal na praça Senador José Bento, a Voluntários da Pata tem buscado parcerias com os governantes, entidades de classe e empresas que podem doar ração e remédios para os cuidados mínimos aos animais recolhidos das ruas, muitos em condições precárias de saúde.  A propósito, esta barraca necessita de mais voluntários para atendimento ao público, jornais velhos, ração, água e cuidados com os animais. Isto retira uma parte considerável do peso dos atuais voluntários, que estão no limite de suas ocupações.
                Sabe-se que isso tudo é muito bem vindo, e na maior parte das intervenções, chega a ser essencial. No entanto, por mais que haja pessoas adotando cães, gatos e outros animais, a realidade é que o número de abandonados nas ruas permanece o mesmo e até pode aumentar, se não se fizer o mais imediatamente possível o que chamo aqui uma política de bem estar animal. Esta política deve se traduzir em algumas atitudes bem definidas e já fazem parte das metas desta ONG e seus parceiros institucionais e particulares:
                a) Uma atitude verdadeiramente cidadã em que a questão animal é de todos e que os cidadãos sejam conscientizados de que estes, em situação de abandono, estão sob tutela do governo da cidade, o que torna o governante o tutor desses animais. Como o governante foi alçado a esta condição de servidor, justamente pela vontade do cidadão, este deve ser o fiscal desta relação entre seu governo e os animais sem lar;  
                b) Estimular uma atitude afetiva para com a cidade, que é de todos seus moradores e que a miséria seja ela qual for, e neste caso, se está falando da miséria animal, torna a cidade um lugar inóspito, cruel e desmobilizada politicamente; além da fealdade que a degradação da vida imprime no corpo da cidade;
                c) Uma atitude de mobilização no sentido de pressionar o poder local para criar um hospital público para animais, de onde eles saem curados, castrados e vermifugados para a doação em feiras e praças públicas;
                d) Uma sensibilização social para aumento do apadrinhamento de animais, situação em que o cidadão não pode levar para casa um deles, mas o adota à distância, oferecendo cuidados na forma de alimento e remédios, bem como colaborando com as despesas médicas eventuais do animal do qual é padrinho ou madrinha, ajudando o adotante do animal.
                e) Um trabalho de conscientização da população rural e dos bairros periféricos – de onde vem grande parte dos bichos em abandono – por meio das mídias, particularmente as televisivas, radiofônicas e jornais – de ações que podem ajudar a conter o abandono dos animais, particularmente a castração;
                f) Criação de eventos na forma de festas, chás beneficentes, bingos, rifas, leilões de objetos, shows... arrecadando dinheiro, materiais de construção de canis, remédios e eventuais gastos com serviços particulares. Inclui-se neste item propaganda gratuita em mídias diversas.
                Com estas poucas ações, bem orquestradas pela Voluntários da Pata, sabemos que em poucos anos reverter-se-á este quadro de desespero e insalubridade, pois temos consciência de quais são os perigos que trazem os animais afetados pelas doenças clássicas do abandono. Se perseguirmos estas diretrizes, estaremos afirmando uma série de condições da cidadania – introduzindo nossos filhos num mundo mais afetivo, mais saudável, mais alegre e mais justo. Serão pessoas que respeitarão a vida e colaborarão com uma sociedade menos agressiva. Formaremos cidadãos.
                A ONG Voluntários da Pata conta com você, tanto no sentido de adotar ou apadrinhar bichos, mas também para doar seu tempo ou habilidades que possam ajudar na transformação da dura realidade dos animais de rua de sua cidade.   

sexta-feira, fevereiro 8

O muro da morte e o nada!


O Muro é uma das muitas formas de Sartre se referir ao impossível de se viver a própria morte. O pano de fundo desta aula de desespero é a história de alguns anarquistas presos e levados para o gélido porão de um hospital, que lhes servirá de cela até seu fuzilamento. Tom, Pablo e Juan parecem funcionar como partes de um mesmo personagem e, talvez, o alter ego do filósofo que escreve contos e romances engajados – tal como defendeu em seu Que é a literatura? Este é o conto que dá nome ao livro juntado a outras quatro histórias curtas, sempre com uma ou outra tinta existencialista. O que lhe valeu críticas por acreditar que a literatura tem responsabilidades para com o mundo; ao contrário, muitos críticos lhe diziam que a literatura não deveria ser engajada. Pelo sim, pelo não, a verdade é que Sartre, como poucos, soube contar uma história e imiscuir no tecido de sua prosa seu pensamento, que passa ao largo, caso não tenhamos uma atenção um tanto quanto prevenida. Isso de jeito nenhum estraga o prazer de ler sua escrita. Até pelo contrário, os desprevenidos, aqueles que não conhecem o filósofo por detrás do contista ou romancista, acabam se surpreendendo com descrições magistrais de personagens que têm uma profundidade inusitada de pessoas comuns.
Faz sentido esse homem qualquer povoar sua obra, pois foi como “um qualquer” que Sartre se quis visto. Esse homem que é “um qualquer”, esse homem cotidiano, sempre a ponto de ser alguém, é que dá o tom em sua prosa. Ao descrever, por exemplo, Henri, pela boca de Lulu, em Intimidade, sabemos que não se ocupa da alma dos personagens, mas de todos seus pequenos gestos, falas e pensamentos confessados em meio a situações que vão se desnudando como uma clareira que nos surpreende pelo seu aparecimento subitâneo. Henri era inflexível como uma estaca quando estava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassíveis), mas negligenciava as pequenas coisas; não era muito asseado, por exemplo, não mudava de cueca com frequência. [...] Lulu não se incomodava com a sujeira: dá certo ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. [...] Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio.
Voltemos a Pablo, Tom e Juan. Estão detidos pelas autoridades para investigação, julgamento e punição por suas atividades políticas anarquistas na Espanha. Sabem que morrerão em poucas horas; ao amanhecer ficarão em frente de um pelotão de cinco a oito soldados e serão trespassados por projéteis que lhes atingirão o rosto para que morram desfigurados – talvez uma técnica de intimidação. Estão gelados pelo frio, embora suem de empapar as camisas...  Tom conversa muito, Pablo em silêncio... O assunto, claro, é a morte. Mais exatamente a morte que é nossa, mas que não poderemos experimentar, uma vez que a experiência implica alguém que a ultrapasse, que esteja lá depois do acontecimento. A morte é impensável porque dela não resta alguém que possa olhá-la retrospectivamente. Sempre a colocamos num futuro no qual estaremos no modo de não-presença. Talvez Sartre tenha em mente Heidegger, que disse que somos seres para a morte (Ser e Tempo), mas para implicar com ele; somos seres para a vida e a morte não nos pertence, nem no modo de experiência, nem no modo de vida. A morte é o fim da vida, pura e simplesmente. Isso não quer dizer que a morte não nos interesse; fazemos dela o tema das religiões, da poesia, da psicanálise – ela é cotidiana e inevitável, o que não a coloca entre as coisas com as quais podemos dialogar. A morte é o cerrar dos sentidos. Não tem sentido, não tem significado algum...    
Sartre coloca na boca de seus personagens o inevitável da morte; não uma morte que colherá Tom ou Pablo, ou mesmo Juan, em algum dia do futuro, mas sim, uma morte agendada, atrás do muro, naquela manhã, fuzilados.  
Pensar a morte é como estar em um pesadelo a ponto de compreender o que acontece, quais são os motivos e o destino daquela história. Mas nada acontece; a compreensão desliza, escapa, cai. É uma decifração que está sempre a milímetros de acontecer, como se pudéssemos pinçá-la com os dedos, mas escapa sempre, inexoravelmente.   
- É como nos pesadelos. – diz Tom. – Quer-se pensar em alguma coisa e tem-se o tempo todo a impressão de que afinal se vai compreender, mas não, a coisa desliza, escapa, cai. Digo para mim mesmo: depois, não haverá nada. Não compreendo, porém, o que isso quer dizer. Há momentos em que quase chego a decifrar... e depois a coisa me escapa, recomeço a pensar nas dores, nas balas, nas detonações. Sou materialista, juro a você; e não estou ficando louco. Há alguma coisa, porém, que está destoando. Vejo meu cadáver; isto não é difícil, mas sou eu que o vejo, com meus olhos. Seria preciso que eu chegasse a pensar... a pensar que não verei mais nada, que não ouvirei mais nada e que o mundo continuará para os outros. Não somos feitos para pensar nisso, Pablo. Pode acreditar, já me aconteceu ficar uma noite inteira acordado, esperando alguma coisa. Mas essa coisa que eu esperava não é parecida com isso; isso nos pegará pelas costas, Pablo, e não teremos tempo de nos preparar.
No lugar de “não verei mais nada” ou “não ouvirei mais nada” poder-se-ia dizer que “nada se verá ou ouvirá daí em diante”, pois não haverá um alguém lá, que devido a uma condição especial, está presente, mas nada ouve, vê ou diz. Pablo não existirá mais e é por isso que nada ouvirá, simples assim.
[Pablo, o narrador] Naturalmente, eu pensava como ele e tudo quanto me dizia eu poderia dizer-lhe – esse negócio de morrer não é nada natural. E como eu ia morrer mesmo, nada mais me parecia natural, nem o monte de carvão, nem o banco, nem a boca imunda de Pedro. Leio: “esse negócio de morrer não é nada natural”; sempre achamos injusta a morte de um jovem, de uma filha, de um pai jovem, de um homem conhecido, de um gênio... Como não somos seres naturais, a morte não nos parece natural, mesmo que argumentemos dizendo que morrer é o fim de todos. Para isso, criamos religiões, filosofias, crenças as mais variadas para dar conta de que não morremos, pois não aceitamos que morrer é natural. Para uns passamos, para outros viajamos, para terceiros apenas abandonamos uma casca informe e incômoda. Há os que dizem que subimos. Para quase todo mundo somos imortais, pois seria inadmissível morrer; morrer não é nada natural.
Então nos deparamos com dois problemas complementares: não aceitamos morrer como algo natural; não vamos experimentar a própria morte. Talvez não achemos natural, exatamente porque não experimentaremos algo que em princípio nos pertence. Mas, se olhamos para este evento que nos espera, sequer podemos dizer que o possuímos, pois para que se dê a posse devemos transcende-la, devemos estar lá depois da sua passagem. Se apenas uma pessoa no universo de pessoas no mundo, pudesse dizer “morri”, e nós a ouvíssemos, todas as religiões, filosofias metafísicas, deísmos, teísmos e panteísmos estariam salvos, sem sequer uma liturgia ou ritual. Enquanto isso não acontece, todos vamos nos salvando, nos alçando do leito caudaloso e impiedoso da vida e da morte, por sobre destroços flutuantes chamados “eu creio”.
Tom e Juan foram mortos; Pablo não. Simples assim; uns morrem mais cedo, outros demoram um pouco mais... nenhum poderá dizer “morri”, a não ser o personagem principal de O defunto inaugural – relato de um fantasma, acho que um tal Fagundes, de Aníbal Machado, que acompanha sua morte com muito interesse e um certo humor seco. Mas esta é, literalmente, outra história... 
   
Foto: http://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Images_by_PierreSelim

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...