segunda-feira, agosto 17

O discurso encarnado! Ou a passagem da carne ao corpo discurso.

O discurso encarnado:
ou a passagem da carne ao corpodiscurso
(Resumo de dissertação no programa de Mestrado em Linguística da UNIVÁS, sob orientação do Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini)
Levi Leonel de Souza
(Psicólogo, Psicanalista, Linguista, Terapeuta Corporal, Terapeuta de grupo)
Apresentação
Apresento aqui o percurso de minha dissertação de mestrado e algumas consequências de se falar do corpo do sujeito tendo como perspectiva os saberes da Análise do Discurso, numa pesquisa teórica. O objeto de estudo foi um problema enunciado como a passagem da carne ao corpo como efeito do discurso. Trago os rumos tomados para complexificar a evidência do corpo, uma vez que este aparece como instância nodal do sujeito nos diversos saberes, impondo que só há sujeito em um corpo. Esta aparição do corpo à frente de qualquer relação do sujeito com o mundo encobre sua gênese e constituição. Nesta constituição fica esmaecido que o corpo é, em primeira instância, ainda que teórica, carne. A carne passa a corpo por um processo, que chamei, naquele texto, discursivização da carne, trabalho realizado ciosamente pelos agentes ideológicos que cuidam de imaginá-la, esperá-la, erguê-la, educá-la, administrá-la, alocá-la em corpodiscurso. Todo esse longo processo de discursivização da carne – cuja gênese vem desde antes da concepção e nascimento do indivíduo, se estende por toda sua vida – e não se acaba com o desaparecimento da carne. Esse infinito trabalho e retrabalho do corpo é feito discursivamente e isso implica língua, linguagem, história, ideologia; tendo isso em jogo trouxe à cena as conquistas teóricas da Análise do Discurso, a partir de Pêcheux e Orlandi, autores fundamentais na dissertação, para entender e ampliar a compreensão do corpo como efeito de linguagem, consolidando sua apresentação como a corporificação do discurso. O corpo é a materialidade do sujeito apropriada pelo Estado, remarcado pelas instâncias ideológicas e enformado por uma dialética política. Tal processo erige a subjetividade, desde que entre em cena uma tela de sustentação ideológica, cujos nós são as famílias e seus valores históricos. Foi nesse entremeio que a dissertação buscou entrever o como se dá a discursivização da carne em corpo, em que lugar isso acontece, em que momento, em que presença. De Louis Althusser emprestei a máxima “indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia”, para desenvolver a idéia de que o sujeito é um efeito ideológico elementar. De D. W. Winnicott usei a expressão “preocupação materna primária”, estado especial da mãe ou de quem faz a maternagem, como o momento onde os efeitos ideológicos se fazem apresentar por meio do corpo maternante e da maternagem. Essa “língua” materna, faz com que a língua estrangeira – a língua do outro – se torne familiar, e que o sujeito, por meio da inscrição deste texto na carne, faça o processo de identificação ideológica. Relembrei, numa teoria do discurso, que este processo se dá no e com o corpo do indivíduo inicial, na carne nascente. Ao interpretar a carne para o bebê a instância maternante erige o corpo, e nessa construção surge o sujeito.
Introdução
A questão “corpo” me inquieta há décadas, quando das práticas de artes marciais, que anunciava um corpo constituído por certa malha de linhas (meridianos) de energia vital, primordial e universal, cujo centro se localizaria a alguns centímetros abaixo do umbigo (tanden, na versão japonesa ou tantien, na chinesa). Tal energia seria o Ki (versão japonesa) e Chi (versão chinesa) que penetraria o corpo, o animaria e desenvolveria suas potencialidades. Esse corpo vital seria o “organismo” real de todo indivíduo. Estudei, ainda, os seis pensamentos indianos, especialmente a doutrina Shakta, que tratava de um “corpo sutil”, cuja anatomia e fisiologia ocultas basicamente se desenrolam por seis, oito ou vinte e sete corpos1 superpostos ou envelopados um no outro, na forma de centros nervosos, que irradiam suas potências a todo o conjunto. Paralelamente, segui com uma instrução informal em técnicas corporais de origem reichiana e junguianas. Mais tarde, durante a formação em Psicologia, acabei me interessando pelas idéias freudianas de Donald Woods Winnicott2, sendo treinado e supervisionado em clínica psicanalítica, tendo como referências suas contribuições para um novo pensamento sobre psicossomática, com seu conceito de psicossoma, recolocando o corpo no centro de uma psicanálise eminentemente freudiana. Nestas alturas, já dialogava com o conceito sartriano de corpo, particularmente onde o corpo é um ser-para-o-outro, o ser das possibilidades, conceitos que problematizam a questão em outras direções, ainda em investigação. Desta trajetória, marcadamente envolvida com a corporalidade do sujeito, sempre me chamou a atenção aquilo que nomeei corpose – a aparição peremptória do corpo no meio da existência do sujeito. Ou, aquilo que usualmente se utiliza falar como somatizações – o psicológico adoecendo o corpo. Já me acostumara a ver, durante algumas análises pessoais, uma espécie de retorno da carne do corpo, inscrevendo nele as vicissitudes da simbolização.
Assim, pensando nessa difícil relação do sujeito com seu corpo, especialmente quando a carne se apresenta tão inolvidável, tentei ver se havia pertinência e importância em se saber dos destinos da carne na constituição do sujeito, pois no saber cotidiano falamos do corpo do sujeito quando falamos do sujeito ou da subjetividade. Mas poderíamos falar da carne do corpo, nessa tomada do sujeito por sua corporalidade? Poderíamos dizer que um dia o sujeito e seu corpo subsumiram-se à carne? Que houve um momento da carne e um segundo momento onde a carne se mostra como corpo-que-é-sujeito? Ou será que jamais o sujeito foi carne? Sua única experiência como existente é a de sujeito em um corpo? Se um dia foi carne, havia lá um sujeito?
A discursivização da carne
Para dar início a uma possível resposta a estas questões, operei com a seguinte proposição: haveria uma passagem da carne ao corpo? Poderia ela ser acompanhada, descrita e posta a operar em outros enunciados? Pensei que para enfrentar essa possível passagem deveria partir de uma teoria do discurso tal como a Análise do Discurso francesa pratica a partir de Michel Pêcheux e a Análise do Discurso florescida no Brasil, a partir de Eni Orlandi, com seu arcabouço epistemológico. Portanto, corpo, carne e sujeito, se é que se pode separar estas instâncias, deveriam ser abordados pela lente dos sentidos praticados em uma dada situação histórico-simbólica e linguístico-ideologicamente enformados.
Fiz, no correr do texto, um esforço teórico para entender a discursividade do corpo, onde a carne aparece imbricada desde sempre à ordem de um discurso, funcionando dentro de uma dada formação discursiva, em um dado espaço social. Não se pode vislumbrar o sujeito e seu corpo-carne fora de uma formação social, que por sua vez se atrela ao urbano, com veria em Orlandi (2007). Autores como Freud, Lacan, Winnicott, Althusser, me ajudaram a sustentar uma argumentação que se dava na presença do sentido de carne como um impossível de se ordenar, como a ponta do real no corpo do sujeito, surgindo como algo a se matar pela discursivização.
Devido a que a instância viva do sujeito, o real do corpo, é interpelada pela ideologia, e nessa interpelação surge o sujeito, segundo cria, pensei ser útil epistemologicamente, tratar dessa passagem. Essa asserção – a ideologia interpela o indivíduo em sujeito (Althusser 2007, p. 96) – me fez surgir o interesse de saber se não se trataria de uma interpelação da carne em sujeito pelo discurso, numa teoria do discurso. Também pensei que o fato de falarmos em um corpo discursivo, justificasse as afirmações de Orlandi, quando esta diz que o corpo do sujeito é atado ao da cidade.
Os sentidos de corpo
Para continuar investigando a passagem da carne ao corpo, por meio da discursivização da carne, quis, também trazer alguns sentidos de corpo praticados no correr da história, tais como túmulo na Grécia pré e clássica, autômato cartesiano, corpo-sujeito merleau-pontyano, corpo-prazer e corpo-carne foucaultiano, corpolinguagem e corpo pulsional psicanalítico. Sentidos estes que não foram substituindo um ao outro, como se houvesse um aperfeiçoamento, um progresso em direção ao melhor modo de ver o corpo. Na verdade vários deles, já milenares, continuam a vigorar, tanto nas religiões, quanto nas ciências em geral. Entretanto, isso indicou que tais sentidos não só apontam que o termo carne de há muito é referência para se contrastar com alma, subjetivo, sujeito, eu, pessoa, ser, e outros sentidos, e pode ser eivado de significados úteis a minha investigação. O sentido de carne pareceu ajudar a entender, por exemplo, a idéia de corpo como uma presença de entremeio – que fica entre dois sujeitos – uma idéia com a qual já me havia deparado em Sartre, mas que, com o resultado desta investigação ganhou em discursividade.
O discurso se faz carne que se faz discurso...
Em um certo momento do trabalho se tornou necessário perguntar como se dá a discursivização da carne. A aparição do indivíduo à ordem do discurso, pelo nascimento, sucede um longo estágio em que este era vivido pela mãe, que lhe emprestava o corpo para sua construção fisiológica. Neste período, que vai da concepção ao nascimento, em absoluta dependência, o indivíduo é um ente fora da ordem discursiva, desde o ponto de vista da carne – embora sua hospedeira se confunda com o mundo, atravessada pela linguagem – um coágulo discursivo na massa universal do discurso. Nela, vagarosa e resolutamente, uma nova coagulação, que virá a ser um sujeito respondente por um “eu”, começa sua aparição. Sabido que a carne não teve uma gênese a não ser teórica, essa pode ser uma maneira de ilustrar a máxima althusseriana “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”, à qual aludi no início da investigação.
Freud, em seu ensaio de 1923 (O “Ego” e o “Id”)3, propõe que o corpo é a primeira forma de consciência que o sujeito um dia possuiu, tratando-a como “a superfície do aparelho psíquico” (p. 2705). Aqui pensei que a superfície do corpo pode ser o campo de uma primeira discursivização, levando o eu a surgir do caos de sensações fisiológicas. O eu, como efeito de sentido do discurso, deriva, em certo sentido – antes da elaboração imaginativa, noção de Winnicott – das sensações corporais. Falando em termos da Análise de Discurso, não há, ainda, assujeitamento para que o indivíduo possa se espelhar, mas, trazendo Lacan à discussão, é verdade que a criança inicial já é atraída pelo rosto humano. Contudo, não há um eu ali, que possa dizer que o rosto visto se trata de “alguém” ou se parece com o eu; não há eu e nem há outro, como o próprio texto de Lacan o diz.
Todos os processos de assujeitamento da carne em corpo-discurso e a necessária ereção do sujeito, são desdobramentos da materialidade ideológica, e precisamente por isso não se pode considerar o sujeito como uma substância – podendo se incorrer no erro de interpretá-lo como uma essência. Pode-se, assim, dizer que o sujeito é uma coagulação da ideologia, cujo cerne é linguístico-histórico-simbólico, ou seja, discursivo. Contudo, mesmo considerando o sujeito algo de ordem constitucionalmente discursivo, parece que todo indivíduo detém algo da individualidade carnal. Se isso for verdade, estamos diante de uma versão daquilo que Freud afirmou a respeito do “eu” possuir alguma propriedade mais essencialmente individual a partir de sua carnalidade; o que seria individual e essencial no sujeito é a propriedade de ter sensações de que o eu é antes de qualquer coisa um ser corpóreo, derivando, em última instância, das sensações corporais, podendo-se considerá-lo como uma projeção do corpo. Além disso, essa carnalidade parece constituir algo essencial, tanto aquilo de biológico no indivíduo, quanto de ser a matriz daquilo que depois será o corpo/sujeito; a aposição da pele discursiva é “esperada” já desde de “dentro” da carne. Talvez se pudesse dizer que a carne se completa como corpo, porque “a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência [como uma] exterioridade que é mais constituinte do que constituída” (Lacan, 1998 p. 98) acaba por prefigurar sua “destinação alienante” (Idem), ou seja, seu assujeitamento e corporalidade. O filhote do humano só poderia desenvolver-se em sujeito social. Se não houver perturbações importantes do processo, a carne se tornará sujeito e responderá por um eu, pois desde sempre, já discursivizada, comparece apenas como acidente.
Registre-se que em Pêcheux e Orlandi, em sua evocação de uma teoria do discurso, a biologia e seus avatares (desenvolvimento, psicologia) se apagam, retornando na forma de real do corpo – a instância do gozo lacaniano relacionada delevelmente com a Coisa freudiana, que por sua vez é o vivo do corpo. Lacan mesmo o diz: há psicanálise de um corpo vivo que fala (Seminário 20). Quando Lacan passa da idéia de uma aliança entre Gozo e saber (seminário XVII), para o Gozo do corpo, nos pareceu que isso o encosta de novo na carnalidade como a fonte do vivo e nos leva a uma certa biologia, mas que resta delimitar e que dá para aproximar, de certo modo, ao que de biologismo e desenvolvimentismo encontramos em Winnicott. Embora possua traços de biologismo, o que não satisfaz uma teoria do discurso – não idealista, não psicologista, não desenvolvimentista e não biologista – seu biologismo é de uma ordem que podemos definir por “capacidade de existir” e definitivamente se apega à idéia de que todas as funções orgânicas, e aí se incluem os instintos, passam pela elaboração imaginativa, que por sua vez depende de uma interpretação suficientemente boa da mãe (de uma instância maternante), de que esta tenha saúde psicossomática suficiente para entregar-se à maternagem – estado que cunhou por “preocupação materna primária” - “episódio esquizóide, onde um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente” (Winnicott, 2000 p.401). Grifei da obra winnicottiana “ambiente especializado” porque a biologia winnicottiana, se posso me expressar assim, produz uma ou duas inversões que definem uma certa biologia psicanalítica, por assim dizer: a primeira é a inversão da adaptação – quem se adapta é o ambiente e não o organismo. E se trata de uma adaptação invisível para a mãe – a mãe como ambiente (a segunda inversão), pois esta se encontra em um “adoecimento” (que reúne clivagem e delírio) acessando sua experiência de vivências como bebê. E o ambiente “invertido” é que ele (o ambiente) é ela (a mãe) e não está lá fora e sim junto com o bebê, formando um – precariamente é verdade, mas nada que não possa levar as experiências acima citadas a formar um inconsciente – um sujeito.
Me pareceu vantajoso trazer um ambiente que é um com o indivíduo; ambiente que está apagado pela inscrição materna desde dentro, mas que funciona desde fora. Também parece que isso justifica a ordem do discurso surgir sem ter origem – ser eterna, portanto. Apaga-se uma dualidade entre ser e existir e disso surge um sujeito já identificado com o “ambiente”, mas não adaptado, e sim, atuante. Sem perturbações à carne, suas forças biológicas permitem o embebimento ideológico, deixando-se atravessar pela linguagem, erigindo um corpo e dessa construção surgindo um sujeito que responde por um eu. O eu, efeito ideológico elementar (Althusser, 2007), se referiria, assim, a um estágio de assujeitamento posterior aos primeiros momentos da carne, onde a ideologia vem de fora, mas como um “ambiente” não intrusivo, de tal modo que quem se adapta é a ideologia e não o indivíduo. A carne, devido ao seu status de real do corpo, que resiste à discursivização absoluta, contribui para a singularidade do sujeito, permitindo que a pensemos como o fator antecipatório daquele “eu sou”, que se dará como efeito ideológico elementar althusseriano. Nesse caso, a ilusão de eu (eu como efeito ideológico) só se constituiria a partir da matriz corporal que é a carne – um momento de unidade, um em-si-mesmo4, a coisa freudiana, sem distância entre suas partes, um conjunto não integrado de vivências, sem sujeito5. Seria o ser em contraste com uma existência. Me senti propenso a aceitar o assujeitamento ao discurso como a integração dos impulsos (termo winnicottiano) da carne, representando aquele estado onde o bebê é uno, mas não a si mesmo, uno à mãe, por que não se relaciona com nada mais; diria que naquele momento há unidade, mas não integração, reservando o termo integração para o momento em que há suficiente assujeitamento, de tal modo que possamos falar em um “sujeito a”.
A ideologia é proporcionalmente mais eficaz na medida da naturalização de sua eficácia. Me parece necessário evidenciar, até repetindo parte do já dito, sobre o campo da carne e do corpo, que a eficácia ideológica se deve ao fato de que ela é construída (sua base inconsciente mais importante) justamente no período de maior dependência da carne à tela de sentidos cautelares que a antecede e lhe é exterior. Nestas alturas parece que já se pode dizer que o efeito ideológico elementar, senão mais importante, pelo menos o mais visível, é o efeito-sujeito (si-mesmo) e já disse que suas raízes parecem estar fincadas na carne, aparecendo aos olhos o corpo-discurso – um corpo simbólico. Sua materialidade se dá na individualização pelo Estado, na injunção ao Direito e no sentimento de ser alguém – um eu que é cidadão e vive sob os auspícios da lei. O efeito si-mesmo não é apenas da ordem de “eu sou um eu”, mas sim da ordem de “eu sou este eu”, “eu sou quem sou”, “sou o que sou” garantindo que a dependência inicial da carne tenha um representante existencial suficientemente engajado em si mesmo para não ser apenas um representante ideológico (um procurador da ideologia), mas sim um sujeito que é especialmente ele mesmo (já apagado o efeito ideológico elementar). É certo que deverá ser de tal modo coincidente a expectativa ideológica com a reação da carne, que o resultado é um sujeito que se situa empiricamente, sem saber que não é origem, nem de si, nem de conhecimento. Esta é a eficácia ideológica. Este ego, que é um acordo entre a tela de sustentação ideológica e os tecidos vivos com suas necessidades interpretadas por esta tela, surge antes do sentimento de ser um eu sou. E é por isso que “o ego se oferece para estudo muito antes de a palavra [grifo nosso] si-mesmo ter relevância” (Winnicott 1983, p.55).
Outro detalhe dessa constituição ideológica do si-mesmo é que o indivíduo assimila, neste processo, inclusive um falso si-mesmo, que é instrumental, operacional, intelectual, para enfrentar as exigências sociais. Não se trata de uma labuta interna do sujeito para fazer prevalecer os verdadeiros valores e eliminar os falsos valores. De fato o si-mesmo defende-se das injunções de sentido por meio do oferecimento de um simulacro de si mesmo; este é que negocia e barganha certos sentidos, preservando intimamente aqueles que são verdadeiros (não no sentido transcendental ou do sujeito epistêmico), que fazem sentido naquela posição. Como o processo de constituição do si-mesmo (em seus aspectos verdadeiros e falsos) são da ordem do discurso, esta é uma licença para resistir à individualização pasteurizada que seria, no limite, o objetivo dos aparelhos ideológicos. De fato, se houvesse apenas um sentido a ser experimentado a experiência se desfaria e teríamos a vivência de um sujeito ensimesmado, paralisado, por falta de deslize semântico. Essa labuta interna entre falso e verdadeiro si-mesmo é um dos mais acabados produtos ideológicos; aparece nos contos infantis, no cinema moderno, nas lutas bélicas, nas conversas sobre o time do coração – tanto na defesa do melhor sentido, como no escondimento dos sentidos mais íntimos, negando-se a expor o “verdadeiro” eu. Esse sentimento de possuir uma preciosidade resguardada, que não pode ser atingida e que impulsiona o sujeito em direção à perfeição, talvez seja um deslizamento do sentido de “Há um” ou do “Gozo” lacaniano decantado da carne inicial. Contudo, somente depois de existir um sujeito é que se poderá discutir a pertinência deste jogo de sentidos.
A tatuagem
A tatuagem, seguindo o texto de Orlandi (2001) me pareceu ilustrar algum aspecto desta discursividade do corpo a partir da escrita na pele. O corpo discursivo é consequência dos sentidos praticados entre sujeitos; sua heterogeneidade discursiva – vinda da memória do dizer e das condições de produção dos sentidos faz com que as inscrições na pele sejam um modo de historializar os embates pelo sentido que se dão em suas entranhas. O texto no/do corpo obedecem as circunstâncias de enunciação específicas e dos efeitos de caos à flor da pele podemos entrever as regularidades e os deslizamentos do dizer. Nas inscrições na pele se faz furo no ideológico exatamente pela multivocidade do discurso do corpo: por um lado sua constituição carnal (ainda que teórica), que dificulta a possibilidade de captar discursivamente a presença do outro no sujeito, por causa do impossível do real (da carne); por outro, o discurso estrangeiro se mostra no corpo do sujeito, por meio de um texto pré-construído aquém e além. São textualizações do corpo que se apresentam como novas, mas guardam, por sua multiplicidade discursiva, um fator de incorporação de novos elementos, fazendo com que o sujeito veja algo no exterior. Heterogeneidade e pré-construído são essenciais para que se compreenda a possibilidade de que a vivência da carne possa vir a ser experiência subjetiva, nos termos da relação mãe-bebê que aludimos antes.
Se, de fato, as inscrições na pele fazem furo no simbólico, o fazem na e a partir da formação discursiva, que é a presença, no corpo, de uma certa escrita que anuncia uma certa formação ideológica, engajando língua e discurso, num conjunto mais ou menos regular de posições-sujeitos, de posições de classe, em conflito com outras corporeidades. Essa fonte de sentidos é definida a partir do Interdiscurso – vozes discursivas outras interferindo nos sentidos de um certo corpo, a partir de dentro de sua própria pele, penetrando-a; é a alteridade dentro do mesmo corpo, tornando-o heterogêneo6. Mas também faz furo pelo quanto de carne escapa do discursivo e a tatuagem pode bem ser um desses modos de tentar dar conta do real. Escrever na pele, insta a pensar no tatuado como proprietário do argumento e evidência do sentido de uma tatuagem; enquanto que foi evocada a inscrição como um acontecimento imbricado na escrita que fura a pele e constitui o subjetivo. A inscrição da letra no corpo, afetando a distância entre corpo e letra, traçando na pele “o traço sagrado da letra” (Orlandi, 2001), fechando o corpo com sentidos ocultos aos outros, fazendo do corpo um amuleto da sorte; do destino, por conseguinte. Usando as tatuagens como pontuações que visam o olhar do outro, empreendem um trabalho de construção de fronteiras, de cercas, que tanto protegem quanto aprisionam, nesse deslize constante do significante. Rabiscam suas letras dentro da carne na tentativa de conter o significante, de dar conta de um “transbordamento de um excesso de linguagem o tempo todo visível sobre o sujeito, que passou à necessidade de um excesso de marcas visíveis em si mesmo” (idem).
Concluindo
Ao colocar ponto final na dissertação acreditei poder acrescentar a meu favor ter captado um certo sentido de corpo já existente para a Análise do Discurso e de ter levado adiante essa prospecção ao ponto deste sentido ter se tornado, digamos, ainda um pouco mais visível ao leitor. Com certeza a passagem da carne ao corpo; ou a discursivização da carne em corpo, como vimos tentando sensibilizar, só fez problematizá-lo ainda mais, dentro de vários programas de saber. Sem uma materialidade linguística escolhida para mostrar a passagem da carne ao corpo, pois fiz uma investigação eminentemente teórica, acabei tendo dificuldades em demonstrá-la, mas penso ter chegado a uma carne teórica, condição para pensar o corpo discursivo. Outra báscula se deu ao tentar visualizar a passagem da carne ao corpo – o corpo como o produto da discursivização da carne – parece que acabei por entrar num viés onde o corpo é condição sine qua non para a constituição do sujeito, ou mais exatamente, que a discursivização da carne constrói o sujeito. Não me pareceu, com isso que algo se perdeu e sim que algo se fixou daquilo que Orlandi já trazia de um corpo, que tal como a cidade, deve ser entendido pelo discurso. Se a báscula se impôs, talvez algo deva ser dito, em futuras investigações, desta composição corpo/sujeito, onde a barra pode ser a representação da situação sui generis de um sujeito cuja aparição só se dá pela corporalidade.
Outra dificuldade da proposta foram os fantasmas de um certo biologismo e desenvolvimentismo, espectros de psicologismo, que desde Pêcheux se vem conjurando no correr da constituição da AD. Se aparecem em meu texto se deve a que os autores evocados, propõem um certo biologismo (e com isso um certo psicologismo). Mas, em todos eles trata-se de uma biologia que não se solidariza, com a biologia, digamos, clássica. É claro que isso justifica fazer novas tentativas de me desvencilhar destes percalços e isso faz parte de meu programa de pesquisas futuras.
Finalmente, enumero um certo tanto de pontos que já começo a trabalhar na compreensão do corpo discursivo. O estudo da subjetivização foucaultiana está nesta direção, bem como sua pesquisa, inacabada sobre a substância ética sexual. Neste momento estudo a administração biopolítica e o biopoder sobre os corpos vivos dos sujeitos (Foucault, Deleuze, Agamben). Me parece que será necessário estudar a constituição da cidade para saber dos destinos do corpo e do sujeito. Outro apontamento se define ao propor o termo composto corpo-discurso (como um corpo discursivo ou corpo do discurso); agora devemos prospectar na Análise de Discurso o estatuto do corpo, seguindo os apontamentos de Orlandi e Pêcheux, bem como da psicanálise de extração lacaniana num diálogo com Winnicott. Que outro termo levantar para dar conta desse corpo estranho ao sujeito e caro ao Estado e Ideologia? Ainda nessa direção, me pergunto se ao colocar a barra entre sujeito e corpo (corpo/sujeito) fiz algum progresso em entender as relações discursivas do sujeito com seu corpo. E ao falar de tatuagem, tendo Orlandi como guia, comecei algo que acredito deve-se continuar, se se quiser ir adiante com os sentidos de sujeito cujo corpo é subjetividade.

Referências bibliográficas (para este texto)
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______, A história da sexualidade v.II. 12ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
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GADET, Françoise e HAK, Tony Por uma análise automática do discurso. 3ª edição Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997.
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HENRY, Paul A ferramenta imperfeita. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
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PÊCHEUX, Michel Análise automática do discurso. Campinas:
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SARTRE, Jean-Paul O ser e o nada. 11ª edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002.
WINNICOTT, Donald Woods A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
______, Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000
______, Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
______, Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
______, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
1Segundo o erudito Kumbharípava, nos manuscritos do Rajastão Ocidental, na Índia, apresentados na obra Corps subtil et corps causal (Tara Michël).
2Psicanalista inglês falecido na década de setenta, trabalhou como psiquiatra pediatra por várias décadas.
3Para tais referências usei: Obras completas de Sigmund Freud Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, Cuarta edicion, 1981 (tradução direta do alemão por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres).
4Em Sartre é dividido em Em-si e Para-si; no Em-si há unidade – o ser é o que é, sem distância a si.
5Winnicott fala de não-integração/integração; no primeiro o bebê não sofreu ainda a tentativa de integração pelo pensar os pensamentos; não há concernimento (Winnicott, 1983, p.59)
6Uma maneira de dizer isso o fizemos quando dissemos de um corpo, uma mente, uma vida para dois, seguindo Winnicott. Proporcionalmente inverso a dizer que no amor sexual há dois corpos para um (algo que não cabe desenvolver aqui).

terça-feira, agosto 11

A divina comédia – canto I: “Surgiu depois uma loba muito mirrada e ameaçadora; ela guardava as ambições sórdidas que levavam muitos homens à miséria. Dominado pelo medo que seu terrível aspecto me infundia, acreditei que não seria capaz de chegar ao alto da colina... e nisso assemelhei-me ao homem que, visando em tudo apenas lucro, explode em pranto se perde em vez de ganhar.”
Sem tardar, ainda no início do Canto I, Dante já nos anuncia seu empreendimento: listar os grandes e pequenos pecados que movem a humanidade, e descrever, minuciosamente, os castigos que cada um merece pela perfídia cometida. Resolveu começar já localizando aquele tipo de gente “que sente mais fome, depois que come”, completamente abatidos pelo desejo “do ouro e do poder”. São feras que fazem gelar o sangue até de Virgílio, e jamais saciam o apetite. “Com muito seres semelhantes ela [a loba insaciável] se acumplicia, e assim continuará fazendo até que a enfrente o galgo que haverá de lhe dar morte medonha”.
Isso me lembra os especuladores da bolsa, os atravessadores, alguns senadores e uma legião de exploradores do erário. São as lobas dantescas, mirradas e ameaçantes, sangrando sem dó, concupiscentemente, sem um pingo de vergonha, a seiva monetária da nação.
Pena que Dante Alighieri tenha usado uma loba para representar tais energúmenos; creio que não haja outro ser vivo que possa representar a sede de ouro e ostentação de uns certos homens... deixemos a loba para, no máximo, representar aquela que alimentou os fundadores de Roma, cidade que, me parece, Dante não conheceu, vivendo em Florença, depois exilado em lugares e com gente que de certo modo reencarnou por aqui...

segunda-feira, agosto 3

"O homem não coincide consigo mesmo" - II

Continuo com a frase de Dostoiévski. Não a do título da postagem de 10 de julho, mas uma outra em que ele disse algo assim: se Deus não existe tudo é ou será permitido. Antes, porém, quero voltar à frase “O homem não coincide consigo mesmo”. Em Sartre o homem é aquilo que não é e não é aquilo que é; ou a consciência é consciência de, impondo que ser consciente é ser consciência de algo, de situação, de tempo, de desejo – mas, principalmente consciência do outro e não de si mesmo. O sujeito é consciência de tempo, e por causa disso, está sempre noutro tempo que não é aquele que diz estar – se diz do futuro, está no passado; se fala do passado está no futuro; se quer viver o presente condena-se a viver atrasado em relação a si mesmo; se tenta atualizar-se frente a si mesmo atrasa-se no ato mesmo da atualização. Mas que se diga: consciência de tempo não como uma essência hominal olhando para o tempo; e sim um sujeito cuja subjetividade é constituída pelo tempo, nem antes nem depois; um sujeito em que o tempo é essencial, sem ser sua essência, pois o homem não possui essência ou substância, e é isso que faz com que crie um sujeito com o qual não coincide. No limite, cria um deus, com o qual jamais coincidirá, para que se cumpra o sentimento obscuro de não poder dizer o que de fato é.
Aqui retorno sobre ser permitido tudo ao homem que não acredita em um deus. Nada mais falso; isso é criação das ideologias religiosas, que precisam da submissão do religioso para manutenção de seu poder econômico e político. Se um homem não acredita em um deus pode livremente destinar suas forças econômico-políticas para o... político! Não terá mais que fazer sucesso para as massas, ou uma ideologia do fetichismo de mercadoria. Além disso, poderá construir uma vida ética, onde suas forças pessoais são todas dirigidas ao cooperativismo, comunitarismo, associativismo, que são as bases para uma desobediência civil ao deus-mercado – deus que é a forma material do deus das religiões mono e politeístas. A pergunta que se faz é se com esses dois argumentos iniciais – de uma série de outros – se o homem sem deus não seria uma evolução para um homem verdadeiramente politico, cidadão, ético, desprendido do capital, naquilo que o capital o empobrece – numa certa tradição de seres políticos que são representados, coincidentemente, pelos personagens ateus da história. Sartre encabeça esta lista, a meu ver. E isso não o tornou alguém a quem foi permitido tudo, por não acreditar em um deus. Também devo lembrar que algumas sociedades produziram movimentos históricos onde não há deus, o budismo por exemplo, e nem por isso não deixaram de produzir altos extratos morais. Por um lado, Sartre, se preocupou em escrever sobre moral como responsabilidade, cuja morte interrompeu o projeto; e os budistas com sua não-violência inspiram muitos grandes nomes na busca por um mundo melhor que este que o religiosismo monoteísta (principalmente) nos legou. Não sou budista, mas creio que eles representam bem a vida ética que se pode produzir por meio da desistência de fé em deuses.

sábado, agosto 1

A náusea segundo Sartre!

Cai a noite. No primeiro andar do Hotel Pritania duas janelas acabam de se iluminar. O canteiro de obras da Nova Estação cheira intensamente a madeira úmida: amanhã choverá em Bouville. É assim que se encerra A náusea. Antoine Roquentin, um sujeito ruivo, que estava sempre nos cafés, está lá, na estação, encurvado, sombrio, aguardando o trem para Paris. Olha para aquelas janelas somente como um meio de ocupar os olhos; nada há lá que o atraia, que lhe diga respeito. Já começa, ali mesmo, tendo no fundo da mente a melodia de Some of these days, a escrever em páginas mentais o livro que, entediado e cansado escreverá, tentando não se sentir existindo, na esperança de que - depois de escrita - esta obra o livre daquela repugnância mole e pegajosa de existir.

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...