terça-feira, fevereiro 25

Gustave Flaubert, o idiota da família - volume I de J-P Sartre!


Dizia meu avô Ismael, que em toda família nasce um idiota, no meio da prole geral. E dava uns dois ou três exemplos entre os vizinhos na Vila Nova, para provar sua científica observação. Tinha ares de pesquisa estatística e aqueles três exemplos provavam a tese levantada e não se falava mais nisso. Eu mesmo vira alguns idiotas, um ou dois amiguinhos de infância, de quem se dizia que não podiam desenhar o "ó" sentando em uma folha de papel! O problema é que a coisa se virou contra mim, logo aí pelos três ou quatro anos de idade e depois por longo tempo. Eu me movimentava, em muitos aspectos, naquela faixa de crianças bestas, boquiabertas até babar, com qualquer acontecimento mais ou menos trivial. Ia de uma carreira de formigas carregando tiquinhos de folhas em suas tenazes, até nuvens com formatos difusos, que me hipnotizavam longamente, passando por pessoas, animais, estradas, árvores, objetos de uso pessoal e um sem fim de letras, nos poucos livros, jornais e revistas que aportavam naquela casa.
De fato, as letras encabeçavam a longa lista de estupefacientes que me arremessavam no mundo do sonho, do devaneio, do delírio e acho que até da alucinação. Diferente de Flaubert, um idiota mais obtuso e renitente, eu aprendi ler antes dele; aos seis anos meu avô, aquele mesmo que descobria idiotas entre vizinhos, talvez preocupado com minha cretinice, me ensinou a ler a Bíblia. Isso, soube depois, me deu grande desvantagem na escolinha frente a Dona Lourdes; como as aulas do primeiro ano não me interessavam nem um pouco, levei broncas homéricas e castigos por falar demais na classe ou por ser arrebatado por um desenho nas madeiras das paredes - falar atrapalhava os colegas e divagar parecia uma afronta à mestre.
Se fui tão idiota quanto Flaubert não o sei, mas tenho certeza que ele foi um idiota genial e eu apenas um sofrível e normal sonhador com letras andando umas atrás das outras, fazendo frases e frases, numa faina infinita, que me causavam um alheamento bem visível. Ele escreveu Madame Bovary e eu ainda espero cair um raio do céu para me inspirar, tal como aquela graça da qual Agostinho nos fala - cai das colmeias celestes, uma gota qualquer que nos inunda e aí fazemos, finalmente, sentido. 
Minha avó materna, confirmando a lúgubre desconfiança, tinha um nome para mim: Náno! Dizia ela que se tratava de uma palavra em um dialeto qualquer da península itálica, que queria dizer "bobo". Um bobo-alegre na hipótese mais generosa. Uma vez eu ouvira ela exasperada me chamando por Náno, enquanto eu tentava entender porque as joaninhas que eu havia colocado em uma lata de terra, para cavarem e se esconderem, tinham desaparecido. Eu só queria proporcionar para as pequeninas, uma maneira de se defenderem dos perigos da noite. Devia, naquelas alturas, estar babando nos joelhos, pelo empenho da avó para me tirar daquela morbidez dos sentidos.
Doutra feita eu verifiquei linha por linha de uma longa colcha de fios de aranha, que por um mistério qualquer, formara uma joia finíssima incrustada por milhões de gotículas de sereno, sob a luz brilhante do sol da manhã. Era-me impossível não ficar contemplativo, pasmado, frente a estes acontecimentos impossíveis! Gustave Flaubert em uma de suas cartas estudadas por Sartre, disse que lhe restaram traços destes tempos de obtusidade do espírito, que se mantiveram íntegros até o final de sua vida. De minha parte posso garantir que me perguntam até hoje se sou concentrado ou distraído.
Flaubert, mesmo sob o peso da bazófia de parentes e conhecidos, prosseguiu sua escrita, e ainda nem bem tinha terminado sua longa adolescência e já estava sendo processado pelo genial perfil de sua obra de crítica aos costumes da época. Por causa de sua idiotia, pode olhar até perder-se em sua Bovary, criando uma das almas mais complexas da literatura do romance tal como conhecemos hoje e fazer um raio-x de certos costumes da época. O que não agradou certas suscetibilidades.
Já minha idiotia é quase sempre despertada pela natureza; olhar a vida que se manisfesta nas menores fendas do mundo é um gozo flaubertino; como não sei criar almas pelas letras e enquanto não aprendo seus segredos, vou lendo Sartre e sua obra sobre a inocência do menino Gustave, tentando não ser tomado pela estupefação. 

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

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