segunda-feira, dezembro 27

Bom ano novo para todos!

Todo final de ano é  a mesma coisa! Rever os acontecidos e planejar o que fazer para o próximo ano. A frase certa seria rever o que conseguimos cumprir e refazer os votos para o próximo ano. Porque acontecimentos são um tanto quanto imprevisíveis e prever acontecimentos é da ordem das mancias. Não que isso não seja prática muito comum, com leitores de cartas, mapas astrais, da mão e outras adivinhações, se esmerando em traduzir sinais secretos que nos possam guiar pelo ano que começa.
Bem, como não tenho a menor disposição para adivinhações e leituras de sinais esotéricos, fico a mercê do intangível, sem nenhum controle sobre essas cartas secretas, onde o futuro é escrito. Vou caminhando às escuras, tateando as paredes da existência, para ver se encontro uma porta ou janela por meio das quais possa eu ver a paisagem ou um caminho.
Tudo isso, para dizer que desejo a todos, que por aqui passam, um grande ano novo, mesmo que não possam dominar todos os acontecimento que virão. Talvez meus votos valham pelo que de humano possuem: o honesto desejo de causar conforto aos que dividem esse planeta e esse tempo. Então, que tenham vocês um ano repleto de bons pensamentos, de estratégias funcionais para vencer as vicissitudes diárias e que possam amar e serem amados por alguém que respeitam e sentem a falta. 
Por fim, que o ano de 2011 seja um ano que consolide seus desejos mais prementes.
Até mais!

Ps.: Creio que a cadelinha da foto, nossa mais nova convidada a viver na Serra do Cervo, que estava perdida por estas bandas, bem poderia esticar os votos e desejar que nós todos sejamos generosos com nossos pequenos grandes amigos, senão porque são cães, apenas por que são seres vivos. As pessoas que de fato, uma vez apenas, olharam no fundo dos olhos de um bichinho vivo, aqui representado por um cão, nunca mais serão os mesmos. Sofrerão profunda transformação na visão que tem da vida. São os votos da Pretinha...!


(não confundir com a foto de outra cadelinha, blogada há alguns meses; aquela era a Pepita, lembram?, encontrada num supermercado).

quinta-feira, novembro 11

Causa sui!

"'Ser livre. Ser a causa de si próprio, poder dizer: sou porque quero; ser o próprio começo.' Eram palavras vazias e pomposas, palavras irritantes de intelectual. [Mathieu Delarue] esperara tanto tempo. Seus últimos anos tinham sido uma vigília. Esperara através de mil e uma preocupações cotidianas. Naturalmente, durante esse tempo andara atrás de mulheres, viajara e ganhara a vida. Mas, através de tudo isso, sua única preocupação fora manter-se disponível. Para um ato. Um ato livre e refletido que empenharia o destino de sua vida e seria o início de uma nova existência. Nunca pudera amarrar-se definitivamente a um amor, a um prazer, nunca fora realmente infeliz; sempre lhe parecera estar alhures, ainda não nascido completamente." (A idade da razão, 1945, Sartre)
        Mathieu Delarue espera que de um só golpe sua vida faça sentido, como alguém que se torna milionário pela loteria, sem ter feito uma carreira nos negócios ou fama nas artes ou no futebol. Sua maneira de esperar era a de empenhar-se em realizar a longa e entediante corrente de pequenos acontecimentos de uma vida normal, sem gastar mais que o necessário para que tivessem uma luzinha de vida. Sua megassena, se posso dizer assim, era ser, de supetão, livre, e ainda por cima, de modo refletido, como se estivesse no horizonte a possibilidade de ser seu próprio fundamento. Com isso, surgiria uma nova existência, portanto, um novo mundo, um novo sujeito.
     Mas, Sartre sabia, a julgar por outras personagens em contraponto a Delarue, inclusive personagens de outras obras, que Mathieu encarnava a liquefação gigantesca, irrevogável e inexorável que acometeu o sujeito do começo do século vinte, mas já anunciada desde os primórdios da Idade Moderna, em Descartes e pelos poetas europeus. Foi um rápido derretimento de apenas quatro séculos, que desmilinguiu o osso do homem - o sentimento de que era um ser uno, causa de si mesmo e centro do mundo. A criação de Sartre nada tinha de espetacular, heróico ou surpreendente; era apenas um amontoado cujo nexo consistia em duas sensações bastante singulares: uma eterna espera do momento em que seria livre, uma disponibilidade para esse ato teatral, quase inumano; e a sensação de que sua vida estava em outra paragem, que não se dera à luz de modo cabal. Esse nascimento o colocaria livre, mas deveria ser por um ato de vontade. Um outro luxo burguês, como disse o filósofo, a propósito da contemplação, logo no início de "O existencialismo é um humanismo".
    Mas o desalojamento do sujeito do centro de si mesmo já se anunciava na crítica copernicana à concepção de Cosmos afirmada por Aristóteles (384-322 a.C) e Ptolomeu (100-170). Estes tinham como certo a dualidade platônica constituída de dois domínios ou realidades. Uma realidade eterna e plena (o domínio celeste); e a outra constituída de eterno nascer e morrer, formada pelos elementos Terra, Fogo, Ar, Água, em constante interação, gerando matérias ou mundos uniformes e não uniformes, realidades que se relacionam, mas com essências radicalmente diferentes: uma é divina; a outra é humana. A divina é eterna, etérica, governando o Sol, a Lua e os planetas em geral. A humana é sublunar, governada, perecível, mortal.
   Entretanto, na medula do homem estava a essência divina, segundo cria o homem platônico-aristotélico. Além de ser a verdadeira natureza do homem ela podia chamar o homem a se auto-criar, causar-se a si mesmo. Nas palavras de Platão, a fazer uma auto-parturição (um parto de si mesmo). Contrariamente o cristão também possui uma centelha divina, que é impotente para causar a si mesmo, talvez o ponto onde começa seu afastamento do platonismo/aristotelismo.
    Pois é exatamente esse homem possuidor de uma essência divina, que combinava com o sistema cósmico de Aristóteles; um homem cujo centro ressoava com a dualidade celeste/sublunar. Conforme esse homem vai sendo descentrado, ressoando com o descentramento da Terra, há uma banalização de sua vida, uma superfluidade da existência. O homem não possui centro e não pode causar-se a si mesmo. Isso não quer dizer que aceitaríamos isso de modo passivo. 
     No passado o homem fora aquele para quem o mundo existia e também por meio de quem a realidade se erguia. Agora, principalmente a partir de Copérnico, a Terra sai do centro do universo e o homem começa a ser sujeito - um ser cujo centro não é ele próprio. Disso a psicanálise e o existencialismo vão tratar por longas décadas. A primeira tenta salvar o sujeito dizendo que ele é seu inconsciente. A segunda é mais cruel: o nada é o centro do sujeito.
    O poeta Sá de Miranda (1481-1558) já tão cedo advinhava ou estatuía a nova condição do homem moderno - um homem em conflito com seu próprio centro. Em desavença consigo próprio; mal vizinho de suas próprias fronteiras; sem poder viver em seus domínios; em uma guerra civil em suas próprias fronteiras. Irmão contra irmão, filhos contra pais, como bem exemplifica um dos versos onde é inimigo de si mesmo. O poema, uma joia da literatura mundial, é um esgar de angústia, própria daqueles que não mais podem deter o estado de sítio em que o homem moderno colocou suas próprias praças internas. O poema diz melhor:

COMIGO ME DESAVIM

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

                 (Sá de Miranda)

    Mathieu Delarue tinha saudades do tempo em que o homem podia dizer-se causa de si mesmo, centro do mundo, possuidor de essência verdadeira. Esse tempo passou. Hoje, dizer isso para si mesmo é uma extravagância burguesa, um luxo. E o luxo é sempre extravagante.

Imagem 
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sexta-feira, outubro 1

Eu sou meu próprio gosto!

     "Estou aqui, saboreio-me, sinto um gosto velho de sangue e água ferruginosa, meu gosto, eu sou meu próprio gosto, eu existo. Existir é isto: beber-se a si próprio sem sede." "[...] Tudo isto era tão natural, tão normal, tão monótono, bastava para encher uma vida, era a vida. O resto, as Espanhas, os castelos na areia, era... o quê? Uma pobre religiãozinha laica para uso próprio. [...] Um álibi?" "É assim que eles me veem: [aquele] que quer ser livre, como outros desejam uma coleção de selos. A liberdade é seu jardim secreto. Sua pequena conivência consigo mesmo. Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, razoável no fundo, que malandramente construiu para si próprio uma felicidade medíocre e sólida, feita de inércia, e que ele justifica de quando em vez mediante reflexões elevadas."  (Mathieu Delarue, personagem de A idade da razão - Sartre, 1945)
     Se existir é matar uma sede inexistente com sucos de gosto nauseante, é de se pensar que essa degustação de zinabre com hemoglobina, seja possível apenas a conta-gotas, homeopaticamente. Do contrário, engasgamos e regurgitamos. A vida monótona, natural, normal, como devem ser as vidas, são analgésicos feitos de horas, dias, acontecimentos sem relêvo: uma planície com raros promontórios, vales e montanhas. E quando acontece uma relevância é o drama ou a tragédia. Já com Roquentin (A náusea, 1939) personagem tomado pela viscosidade da vida e do mundo, que não chega a nenhum ápice, Sartre nos apresentava à nossa existência. Não aquela de um tobogã, mas aquela de uma viscosidade quase paralisante. A do tobogã é parente da tragédia, do mortal, do luto de lágrimas quentes. A viscosa é a da maioria que tem sorte ou azar de viver sem acidentes, sem trancos e barrancos. Da primeira todo mundo foge, da segunda é para aonde se vai quando da fuga.
     Delarue não nos poupa de sua semelhança conosco. Mesmo naqueles casos mais felizes, ou seja, naqueles em que o sujeito se livra de uma existência monótona, só o será se por meio de uma pobre liturgiazinha criada a partir de pedaços de vida. É laica, porque a tentativa de fazer uma vida com sede, acaba por desdizer a monotonia de uma vida religiosa; vida com gosto de boldo e carqueja para aliviar o estômago. Esse culto para consumo próprio, com o amargor no centro, no púlpito, evita a religião oficial com sua falta de sabor. Amargo é melhor que o insosso.
    Mas Delarue não nos dá chance para a auto-indulgência. Chama nossas vidas de "álibi", do latim, "em outro lugar". Estávamos em outro lugar enquanto a vida acontecia. A liberdade que exigimos, o habeas corpus que pedimos, na verdade é um álibi contra a acusação de que nos auto-impingimos uma condenação.  Que estamos noutro lugar; não naquele que dizemos estar. Ou que justificamos nossas vidas. Mas também pode querer dizer que nossas vidas são álibis contra aquilo do que estão nos acusando - de fazer uma vida que não nos pertence. 
    Mathieu Delarue é belo e denso; uma personagem profunda por encarnar o heterogêneo da existência - reflexões elevadas que encobrem uma felicidade medíocre e sólida feita de inércia. Pungente personagem que habita os cômodos de nossa igrejinha privada chamada corpo, onde se dá o culto de nossa religiãozinha particular chamada vida.

sábado, setembro 4

Narrar é melhor que viver!

"Reconhecemos de imediato a triste abundância dessas vidas sem tragédia; são nossas essas mil aventuras esboçadas, perdidas, logo esquecidas, sempre recomeçadas, que deslizam sem deixar marcas, sem nunca comprometer, até o dia em que uma delas, igualzinha às outras, subitamente, como por descuido e à traição, enoja um homem para sempre, desmonta negligentemente um mecanismo" 
(Sartre, 1947, Situações 1 p. 37, falando do livro 1919 de John dos Passos).

Quando olhamos com uma lupa as vidas que desfilam defronte nossas faces, como elas nos parecem carecer desta raridade do teatro ou do cinema; o trágico é que o cinema, o romance, o teatro, e mesmo as novelas em sua longeva exposição ao nosso olhar, são olhares com lupas. Por quê não parecem com a vida real olhada pela lente de aproximação, se usam o mesmo truque de aumentar os detalhes para alcançar dramatização? Um resposta possível (e, é certo, não a única) é que se trata de uma narrativa. A vida tem a desvantagem de acontecer em primeira mão. De não ser um acontecimento contado, fabulado. 
      Foi Sartre, também, pela boca de um de seus personagens, a nos propor que narrar é melhor que viver. A narrativa daquilo que vivemos é certamente mais atraente que aqueles comezinhos instantes de existir, sem importância alguma, que fazem a maior parte do tecido da vida. Mas basta nos dispormos a contar o vivido e os fatos mais banais tomam cor, encorpam e brilham!
      Também não adianta muito usar uma lente panorâmica para ludibriar esse sentimento de  "deslizar sem deixar marcas". Uma vida inteira de ir e vir, do trabalho para casa, da casa para a desgastada praia de sábado e domingo, ou do feriadão, da casa para o trabalho, academia, cinema no sábado a tarde quando não é possível ir a praia etc., pode ser um frágil mecanismo a desmontar sem saber quando e nem por quê. O panorama de uma existência é salvo por uma biografia, uma nota numa revista, uma fotografia... uma narrativa.
      A abundância das existências não pode nada contra essa sensação de que só fazem sentido ao serem narradas em segunda mão. Daí, penso eu, depois de algumas análises de sujeitos apanhados pela drogadição, que o abuso do álcool, o uso de drogas químicas seja uma tentativa de narrar a vida sem vivê-la, o que, além de dramático, é trágico. São gritos de socorro contra a abundância de existência sem tônus.
      A psicanálise freudiana ou sartriana, embrea uma narrativa que acaba se tornando uma segunda vida, uma vida paralela, que acaba construindo uma biografia pela fala. Em muitos casos será a primeira vez que uma pessoa veio a ter uma vida para viver - aquela da narrativa psicanalítica. Um pouco de brilho narracional aos fatos de vida esboçados e ameaçados de desmilinguir talvez seja a melhor maneira de viver uma vida viva...
     Sartre propunha fazer da vida uma obra de arte. Será que podemos pensar em uma criativa narrativa de si mesmo como a arte de viver afastado desta tristeza que chamou atenção?

terça-feira, julho 20

Os caminhos da liberdade!

     "Espantar as palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando o encontro ao fim de si mesmo..." (Jean Paul Sartre - 1945, segundo volume do romance "Os Caminhos da Liberdade" - tradução de Sérgio Milliet, 4ª edição - Ed. Nova Fronteira).

       Os filósofos falam na terceira pessoa (ele) ou na primeira pessoa do plural (nós). Eventualmente dizem "o homem", "o vivente", "o ser", "o ente". Sartre, nos momentos cruciais da demonstração de seu pensamento existencial, preferiu, ou foi obrigado pela força do pensamento que o ultrapassava, dizer "eu". Não que não se utilizasse dos outros expedientes de localização do ponto de vista. Mas, exagerava, talvez conscienciosamente, no uso da primeira pessoa. Foi um homem que se colocou sem medo de contradizer-se, pois como ele mesmo se define em uma entrevista para uma televisão, era "um qualquer". Tratava, na entrevista, da ousada criação do Tribunal Russel, quando lhe perguntaram algo que sugeria que ele deveria ter certas qualidades para subscrever tal tribunal - feito para julgar crimes de guerra.
       Original, ousado, pensador brilhante, pessoa enredada no político, para o bem e para o mal, não fugiu da responsabilidade de posicionar-se e ter que responder pelos maus efeitos de sua escolha. Por outro lado mal se referia aos bons efeitos - eles simplesmente não lhe interessavam tão logo provocados. Condenado a ser livre, no seu próprio dizer, escolheu-se na suas escolhas e pagou todas as faturas de suas opiniões. Liberdade foi seu tema mais pungente.
       Um paradoxo daqueles que sempre gostou de nos colocar, vemos surgir a liberdade como uma pena a que fomos condenados sem julgamento formal. E as palavras seriam um livramento condicional desta pena - um sursis. Livramento da liberdade, da escolha, do fazer sentido. Um livramento que inexoravelmente, entre uma palavra e outra, é contrariado e nos faz tornar à mesma pena; só para fazer tudo de novo. Quando já estamos com nosso alvará de soltura, tropeçamos em outra palavra e lá vamos nós, de novo, à prisão de ser livre.
          Sursis, que naquela frase cifrada, um verdadeiro código escondendo talvez um pensamento mais complexo do que pode nos informar, aparece como o livramento condicional que cada palavra nos impõe, mais do que nos premia. Se, conforme nos diz, ou penso entender, em outros momentos de sua extensa obra, estamos condenados à liberdade, cada palavra nos livra dessa condenação, dessa pena existencial, que jamais pode ser plena, e por isso, palavra puxa palavra, nos deixando com a sensação de que uma vez privados de liberdade agora somos, paradoxalmente, livres. Cada palavra nos livra, mesmo que condicionalmente, da liberdade, pena perpétua e mortal.
       Cada palavra, funcionaria como uma suspensão condicional da liberdade. Nas palavras vê uma cadeia infinita de suspensões da pena de liberdade, tornando-nos presas da linguagem, ou ainda mais complexo, segundo Pêcheux, efeitos de linguagem. Condenados à liberdade, como Sartre nos diz, ou a significar como Orlandi nos lembra; presos às palavras, vamos suspendendo condicionalmente a execução da pena privativa de liberdade - o sursis.  
         Se o sujeito é constituído por linguagem, se seu osso é feito de linguagem, tornando-o, pelo uso das palavras, livre da liberdade, ainda que condicional e provisoriamente, então o sujeito é uma cadeia de sursisSe cada palavra é uma suspensão condicional da pena de significar, significa que nossas vidas são feitas de uma infindável corrente de pequenas suspensões condicionais da condenação pela liberdade. Fico curioso com o que se dá, ou o que fazemos nestes períodos de liberação da liberdade. Mas talvez existam apenas como um "experimento da língua", como nos propõe Giorgio Agamben, outro filósofo.



         Pois cada palavra é um átimo de sursis; e porque pululam mal se nos deixam experimenta-las e lá vem novo sursis. Trazidos à vida pelas palavras, pela linguagem, pela língua, pela ideologia (nos moldes da Análise de Discurso) vamos sobrevivendo aos ataques das escolhas, da liberdade, por conseguinte. O que se dá entre uma palavra e outra? Entre dois sursis...? A saída do personagem era tentar espantar as palavras; seria abandonar-se, irrevogavelmente, à liberdade? Será que colocar as palavras acompanhadas da terceira pessoa pode ajudar nessa missão quixotesca? Perguntas! Perguntas!!    

sexta-feira, julho 9

Convite para seminário "A Gênese da Violência"!

Olá!
Convido você para um seminário que ministrarei em São Paulo. Trata-se de contornar as fronteiras móveis entre violência, agressividade e criatividade.
"A GÊNESE DA VIOLÊNCIA"
Visitando os escritos de Winnicott (psicanálise) tecerei os fios discursivos do que ele considera a base para a criatividade. No cotidiano acabamos por eliminar a criatividade - artística ou tecnológica - na tentativa de coibir a agressividade inerente a elas. No afã de purificar, higienizar e decantar as relações sociais, os dispositivos incumbidos desta higiene - entre eles a religião e a escola, passando pela família - acabam por desenraizar a criatividade, a espontaneidade e o acontecimento. Trata-se de jogar pela janela o bebê com a água do banho. Com a agravante que o bebê retorna pela porta dos fundos para viver na forma do antissocial ou do desafetamento. No primeiro vemos um grito de socorro buscando eco; no segundo, a desistência do grito. Entre um e outro uma multidão de desterrados, exilados e sobreviventes...
Que fazer para dialogarmos com a agressividade sem que ela nos engula a todos na desilusão deprimida ou na violência cínica? Vejamos o que poderia nos dizer Winnicott, psicanalista britânico, que viveu durante o século XX, cuja obra começa a fazer efeitos nestas questões. 
Para dialogar com sua obra trarei algum extrato de "Homo sacer - o poder soberano e a vida nua", do filósofo Agamben. Vejamos no que dará!

Local: Vila Mariana - Rua Fabrício Vampré, 148 - Metrô Ana Rosa.
Dia: 27 de julho de 2010
Hora: 20:00 às 21:45
Valor: R$ 30,00

sábado, maio 29

Sursis II - frases que apontam o gênio de Sartre!

Digam o que disserem, a pobreza deixa as pessoas vulgares. [...] sobretudo não me olhar mais; se me olho sou dois. [...] Entretanto, há um centro. Um centro: eu. Eu - e o horror está no centro. [...] Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre meu corpo, uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez conseguisse coincidir comigo mesmo. [...] Espantar as palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando o encontro ao fim de si mesmo... [...] Se eu fechasse os olhos: os olhos conduzem longe demais, para fora do instante, para fora de mim, para lá longe, nas folhas, nessas costas; o olhar acuado, furtivo, fugindo, sempre no extremo de si mesmo, apalpa a distância. [...] Onde está ela? Por toda parte: nasce de todos os lados, o trem corre dentro da guerra. Gomez aterrissa na guerra, esses turistas de branco passeiam na guerra, não há um batimento de coração que não a alimenta, nem consciência que não seja tomada por ela. [...] A guerra pega tudo, junta tudo, não deixa que se perca nada, nem um pensamento, nem um gesto, e ninguém a pode ver, nem mesmo Hitler. [...] Um corpo enorme, um planeta, em um espaço de cem milhões de dimensões; os seres não podiam sequer imaginá-lo. E no entanto cada dimensão era uma consciência autônoma. Se tentasse olhar de frente esse planeta, ele se desintegraria e sobrariam somente consciências. Cem milhões de consciências livres, cada uma delas vendo paredes, tocos de charutos, rostos familiares, e construindo seu destino por conta da própria responsabilidade. Entretanto, se a gente fosse uma dessas consciências, perceberia, através de imperceptíveis toques, de insensíveis mudanças, que estava preso a um gigantesco e invisível polipeiro. A guerra: todos são livres e no entanto a sorte está lançada. Ela está aqui, está por toda parte, é a totalidade de todos os meus pensamentos, de todas as palavras de Hitler, de todos os atos de Gomez: mas não há ninguém para estabelecer o total. Só existe para Deus. Mas Deus não existe. Contudo a guerra existe. [...] Pensou em sua vida e não a achou mais demasiado curta: as vidas não são nem curta nem longas. Era uma vida, apenas. [...] Mas não se escolhe a vocação: acerta-se ou malogra-se, eis tudo. E o pior, na sua, era que não podia voltar atrás. Havia existências que se assemelhavam aos exames finais: submetiam-nas a várias provas e, se fracassavam em física, podiam alcançar média com as ciências naturais ou filosofia. A dele sugeria antes um certificado de filosofia geral, no qual se é julgado por uma única prova; era terrivelmente intimidante. [...] Era preciso dizer a si mesmo que de certo ponto de vista, tudo se equivale: um ataque em Argonne vale um passeio de gôndola... [...] Entretanto, até aquele momento ainda restava alguma coisa a que se poderia chamar Mathieu, alguma coisa a que se agarrava com todas as suas forças. Não saberia defini-la. Talvez um hábito muito antigo, talvez certa maneira de escolher seus pensamentos à sua imagem, de se escolher a si mesmo ao acaso dos dias, à imagem de seus pensamentos, de escolher seus alimentos, seus hábitos, as árvores e as casas que via. Nada: haveria para sempre, este relâmpago seco inflamando pedras sob o céu escuro; o absoluto, para sempre; o absoluto, sem causa, sem razão sem objetivo, sem outro passado, sem outro futuro senão a permanência, gratuito, fortuito, magnífico. "Sou livre", pensou subitamente. E sua alegria transformou-se de imediato em esmagadora angústia. [...] Houve um silêncio. Somos animais, fazemos frases em torno de um instinto. [...] Fora do mundo, fora do passado, fora de mim mesmo: a liberdade é o exílio e estou condenado a ser livre. [...] Bocejavam, dormiam, jogavam cartas, mas tinham um destino, como os reis, como os mortos. Um destino esmagador, que se confundia com o calor, a fadiga, o zumbido das moscas [...] Um jovem é como viajantes que entram à noite num compartimento quase cheio: as pessoas os detestam e preferem fazê-los acreditar que não há mais lugar. [...] As ruas, as casas, os vagões, a delegacia: um mundo cheio até a borda, o mundo dos homens.

(Sursis - J-P Sartre - 1945 segundo volume do romance "Os Caminhos da Liberdade" - tradução de Sérgio Milliet, 4ª edição - Ed. Nova Fronteira)

sábado, maio 15

O cutelo dos conceitos!

Na abertura do Seminário-I (Les écrits thecniques de Freud) Jacques Lacan nos lembra que Freud diz do analista que este se assemelha a um bom cozinheiro cuja arte e experiência o leva a conhecer bem as articulações que deverá destacar, juntas onde a faca entra com maior docilidade. Claro, ali se falava da lâmina dos conceitos; é com eles que se faz uma dissecação das estruturas, seu "modo de conceitualização", o embaraço do sujeito da ciência na linguagem. 
    Na verdade o sujeito não se embaraça na linguagem senão como já seu produto - produto da linguagem. Como diz Lacan os conceitos não "emergem da experiência humana - surgem das palavras mesmo; elas são os instrumentos para delimitar as coisas". Assim, também, o sujeito não faz surgir palavras, mas surge delas; não faz nascer palavras, mas é gestado por elas. Contudo, mesmo fundados em sujeito pela linguagem, acabamos ficando a mercê da idéia de que somos compreensíveis a nós mesmos e centros da linguagem. Isso se dá por um apagamento do caminho feito pela linguagem, que é política, até formar a subjetividade, que é singular. Esse ponto de singularidade, mesmo que produto ideológico, acaba por ser aquilo pelo qual o sujeito se intitula "eu". 
      Parafraseando a música (de Erasmo Carlos?) Todo sujeito precisa de um eu para chamar de seu, mesmo que seu eu não seja, de fato, uma maravilha de eu. Estando mais para uma esperança de ser, o eu do sujeito, produto da fricção do singular com o político, deve tomar a cena criada para sua protagonização. Neste teatro do eu vale dizer que agoniza frente a si mesmo. 
     Lacan, que lida como poucos com a violência - seja da interpretação, do texto ou da vida - preferiu usar a metáfora do cozinheiro que desarticula membros com sua faca; trata-se de cozinhar tendo em mente a carne do sujeito. Se fosse um cozinheiro criando um prato vegetariano talvez falasse de pepinos em palitos, tomates em cubo ou couve em fios. Mas, com essa cozinha light ou soft, perderíamos, creio, o efeito de violência que Lacan pretendera. Parece que a psicanálise lacaniana não combina com uma salada verde, mista ou completa, como se diz no jargão dos botecos. Ou com arroz integral e feijão azuki. Ou com frutas coloridas e brilhantes dos restaurantes vegetarianos. Para a psicanálise trata-se de tendões partidos e carne vincada; de escaras e ossos à vista; de sangue e lágrimas. Foi outro Jacques, o Derrida, que disse: 
    "Pode-se estancar a crueldade sanguinária (cruor, crudus, crudelitas) ou pôr um fim ao assassinato por arma branca, por guilhotina, nos teatros clássicos ou modernos da guerra sangrenta, mas, segundo Nietzsche ou Freud, uma crueldade psíquica restará para sempre inventando novos recursos. Uma crueldade da psique, um estado da alma, portanto do ser vivente, mas uma crueldade não sanguinária" (Estados-da-alma da psicanálise - um impossível para além da soberana crueldade, p.7, 2001).    

sábado, maio 1

O crime e o castigo de Raskólnikov!

    Haverá algum tipo de crime que pode ser honroso? Mais exatamente, um assassinato pode justificar, honrar e dignificar o assassino? O crime pode ser redentor? Por mais exótica, bizarra e estranha a pergunta, na verdade essa questão já encontrou resposta prática em muitas ocasiões. Muitos assassinatos no correr da história foram justificados no cerne de argumentos que misturam teorias sociais salvíficas, guerras santas (cristãs e islâmicas principalmente; porém, há exemplares taoístas, hindus etc.), assassinatos libertadores, correcionais e outras variantes. 
     Para Raskólnikov tratava-se de salvar o mundo de gente como aquela senhora que assassinara a golpes de machado, e que, para azar dela, teve que matar sua criada que chegara de surpresa na cena do crime. A primeira morria cumprindo uma sua teoria de que o mundo precisava ser livre de gente como aquela - usurária e sem compaixão. A segunda fora um acidente, uma fatalidade - estava no lugar errado na hora errada; pura facticidade. Os dias correm e nosso anti-herói agora está na frente do investigador, que por alguma razão já desconfia que ele é o assassino. Raskólnikov não se dá por encontrado. Porfírii diz, de modo bem claro e veladamente ameaçador:
     "Estamos em presença de um caso sombrio e fantástico; esse crime traz a marca de nossos tempos, o cunho de uma época em que o coração humano se alterou, em que se afirma, citando autores, que o sangue 'purifica', em que só existe a preocupação do conforto. [...] matou duas pessoas para obedecer a uma teoria".
     Para obedecer uma teoria ou para cumprir uma profecia, para cumprir um mandado, para salvar uma nação, para justiça, para fugir do medo; mata-se por muitos motivos e quase todos acompanhados de uma teoria a ser demonstrada. Raskólnikov achava que a humanidade estaria melhor sem aquela mulher que explorava os necessitados, tomando-lhes os objetos queridos e transformando-os em alguns copeques, ou seja, centavos, tostões ou a famosa merreca. Sempre entregando menos dinheiro do que valem e cobrando acima do valor. Quase impossível recuperar o objeto empenhado!
     A golpes de machado o jovem pensa fazer justiça ao mundo; usar o dinheiro conseguido com aqueles objetos para sua formação intelectual - algo muito mais plausível do que continuarem nas mãos daquela mulher que nada faria de útil ao mundo com os tais objetos penhorados.
     Creio que numa certa perspectiva um Hitler, um Mussolini, os homens-bombas e outros pensam salvar o mundo do que chamam a escória humana. E as coisas se dão de tal modo que a teoria que tentam provar exige o assassinato. Parece-lhes completamente justificado matar, exercer a crueldade sem limites. 
     Alguns em nome da, ou escudados na soberania. Outros, como o herói de Crime e Castigo, apenas seguindo um raciocínio lógico - uma certa lógica perversa onde os fins justificam os meios. Jacques Derrida disse que é condição da soberania a violência e Giorgio Agamben busca demonstrar que há no mundo um certo tipo de gente que é simplesmente matável - o homo sacer - que fica no limbo entre cidadania e desaparecimento. Morrem nas prisões de Guantámano, nas montanhas do Tibet e também nos Carandirus do Brasil. Trata-se de vida matável, segundo a nomenclatura Agambeniana. Mas para matar não precisamos apertar o gatilho; basta nos calarmos frente a anomia social. Só com este simples gesto - gesto negativo - confirmamos que há vida matável e que nada há a fazer a não ser matá-los pelo silêncio. 
     Se os soberanos ou os Estados matam pela força ou pela inanição, nós, cidadãos "plenos" matamos os "meros indivíduos" (como li em não sei que obra) pela denegação de sua existência. Tal como raskólnikoves multiplicados, embora sem machados nas mãos, vamos matando gente "insignificante", "invisível", sempre munidos de uma boa teoria.
     Outro dia uma pessoa, que eu não conhecera até então, enquanto conversávamos num café da Vila Mariana, proferiu sua teoria em palavras bem marcadas: Quando vejo um carrão importado do lado de um carrinho caindo pedaços, sei que as coisas ainda estão funcionando. Fica claro que cada um merece o que tem; dá para ver exatamente quem trabalha e quem não trabalha. 
      Depois, achando que exagerara, tentou consertar, mas a emenda ficou pior que o soneto: O cara do carrão é mais inteligente! 
      Sem essa teoria a justificar a situação como poderíamos conviver com essas diferenças sociais sem colocar a desnudo nossa crueldade!? 
      Bem, apesar da biografia de Dostoiévski ser embebida em quase crimes, perdas de dinheiro em jogo, ataques de epilepsia e muita confusão na vida, o fato é que era um moralista e seu personagem Raskólnikov acaba indo para as galés e sofre os horrores de um castigo que, acreditamos, o purificou do sangue derramado. Tudo como manda o figurino dos romances, do cinema, do teatro e das novelas.  
     Já na vida real não creio que sejamos punidos pelo sangue que deixamos derramar se não colocamos nele nossas mãos. Mas Sartre nos puxa as orelhas quando diz que, nestas situações, o silêncio é reacionário; em outras palavras, conserva a situação com está...

sexta-feira, abril 16

Cyrano de Bergerac dá as cartas do amor!

     Cyrano está mortalmente ferido por seus traidores e acaba se deixando descobrir como aquele que de fato fizera cada carta de amor que levara Roxana a amar Cristiano. Cartas que acabaram por emprestar ao rapaz uma alma a ser amada. Com a morte tragicamente escolhida para livrar-se do fardo de ser amado sem ter alma, pelo menos aquela que fingia ser sua, Cristiano deixa a jovem destituída de sentido; busca ela, então, o refúgio de um mosteiro.
     Por longos quatorze ou quinze anos, Cyrano a visita todo sábado relatando em versos a semana, tal como um jornal falado. Roxana acredita em sua inquebrantável amizade; amizade que, sabemos nós, tem como fim esconder sua paixão pela mulher que era a razão de seus versos e mesmo a razão de sua vida. Ela lhe mostra uma carta "escrita" por Cristiano, que Cyrano "lê" sem sequer vê-la, porque a conhece decor. Estupefata a jovem realiza que sempre amara aquele que escrevera os versos que estofara a imagem de seu Cristiano.     Agora sabe que ama a Cyrano, porque dele foi vertido tudo aquilo que mais amou em sua vida. Mas é tarde demais! O gascão está em suas últimas versejações e morre sorrindo como viveu, um pouco jocoso é verdade.

     Ceder?! Jamais! Jamais! Quem és? A Fatuidade?
     - Eu bem sei que afinal sucumbo e não vos mato...
     Não faz mal: eu me bato, eu me bato!


Ataca o ar com sua espada, ofegante, um pouco já sob o efeito de delírio produzido pela falta de vida no corpo e um tanto quanto sem objetivo.

    Sei! Tudo me arrancais: a rosa, a palma, o louro!
     Arrancai... Mas existe um quid imorredouro
     Que eu levo; e que, ao entrar no alcácere de Deus,
     Varrerá largamente o luminar dos céus;
     E, puro como a glória, ardente como o facho,
     mau grado vosso eu levo...


Avança cambaleante, com a espada para o alto.

     E que é...

Cai nos braços de Le Bret e Ragueneau que o assistem nesta hora dramática; perde as forças do punho que arrocha o cabo da espada. Roxana inclina-se e o beija delicadamente na fronte e pergunta, interessada no que Cyrano levará para o mundo lunar que tanto amou e lá ficará junto de"Aristóteles, Galileu e... tantos outros..." E ele, sorrindo um sorriso no qual podemos adivinhar aquela pureza e destemor que o impulsionara pela vida, completa:

     O meu penacho!

Homem que não  pode ser contido, que vivera sempre para a luta e o amor, momentos antes deste desfecho, dissera de modo comovente:

      Graças! Mercê de vós, que amei despercebido...  

      Roxana, sem o perceber, fora amada como sempre sonhou. Por uma alma poeta e bravia. Por um homem que podia sorrir para a Fatuidade, para o acidente de existir e de morrer, e terminar tudo num sorriso que por um lado se vinga da tragicidade da morte, por outro nos apresenta essa entrega heróica ao trágico. Herói que ama sempre, mesmo que despercebido; melhor dizendo porque despercebido.
      Cyrano me encanta sempre; acho que em algum lugar em nós, recôndito, insondável, sonhamos com um Cyrano que pode sorrir para a morte - mistura de guerreiro e poeta apaixonado...
      De minha parte, fique claro que trocaria meu nariz pelo dele se eu pudesse versejar com tanta rima. Qual Roxana se me resistiria, ainda que o nariz tomasse a cena? Cyrano não acreditou que Roxana pudesse abstrair seu nariz; não acreditou que seu coração podia suplantar o corpo e suas vicissitudes...
      Mas o que seria do teatro se não fosse um amor desditoso? "Cyrano de Bergerac", para mim, se compara a "Romeu e Julieta", outro trágico desencontro amoroso. Que não me ouçam, ou me leiam, Romeu e Cyrano lá do mundo lunar; até porque se se exasperarem por ciúmes temo por Romeu. O gascão, conta-se, derrotara de uma só vez cem homens...

domingo, abril 4

Um erro original vale muito mais do que uma verdade banal!

"Não, mas o que é que estão pensando disso - gritou [Razumíkhin], elevando a voz mais ainda. - Pensam que tenho raiva deles [seus amigos] porque dizem absurdos? Estão enganadas. Gosto disso! que se enganem. É a única superioridade dos homens sobre os outros seres. É assim que se chega à verdade. Sou homem, e me engano porque sou homem. Não se chega a nenhuma verdade sem nos enganarmos pelo menos quatorze vezes, talvez cento e quatorze, e isso é até uma honra. Mas nunca nos enganamos de modo geral. Um erro original vale muito mais do que uma verdade banal. [...] Todos, todos sem exceção, é o que lhes digo, nos achamos, no que se refere à ciência, à cultura, ao pensamento, às invenções, ao ideal, ao desejo, ao liberalismo, à razão, à experiência e ao resto, numa classe preparatória de liceu e contentamo-nos em viver com o espírito dos outros (Crime e Castigo - grifo meu).
       Lacan nos indica que o eu é um outro. Talvez se possa dizer que nosso viver é, além desse eterno vestibular para uma faculdade da vida, uma vivência fadada a repetir o que o espírito de outro projeta.  Cruzamento perverso de vontade alheia com o sentimento de ficar enviscado no vestíbulo da existência; da busca da verdade com o sentimento de que o erro é que impera; a existência de cada um se dá nessa relação e não fora dela. Haverá uma saída para entrar na vida autêntica; melhor dizendo, haveria uma vida autêntica, ou esse é mais um termo do idealismo filosófico que grassou pelo pensar humano e o afastou da vida experimental - uma vida que é experiência de viver - sem tino?
      Sartre quis dizer que sim, que uma vida pode ser ou não ser autêntica, mas para defender seu ponto fez uma série gigantesca de obras, que foi do filosófico à literatura, da crítica literária ao teatro. Que eu saiba não conseguiu satisfazer-se com suas respostas; mas bem pode ser porque ele, mais que muitos de nós, soube que somos o que ele grafou, incansavelmente, "liberdade". Liberdade esta que talvez seja nossa condenação a tentarmos nos aprisionar no desejo do outro, para não sentirmos a extensão enlouquecedora de ser livre. Não sei se Sartre, Lacan ou Dostoiévski concordariam com isso; sequer se poderiam dialogar a respeito. Mas sei que, de um modo ou de outro nosso descontentamento em viver o espírito do outro não chega a nos demover no sentido de criar um espírito próprio. E até devemos nos perguntar: "Viver do próprio espírito não seria temerário, uma vez que os limites explodiriam e nada nos serviria de pele continente, e ficaríamos a mercê do desterro ou mesmo do exílio?" 
      Fiódor Dostoiévski sofreu do desterro e exílio; lutou com todas as forças para fazer diferente. Mas, foi porque viveu como "um qualquer", como diria Sartre, é que pode criar um monumento como Os irmãos Karamázov. Depois desta barafunda de ditos, só dizendo algo parecido com: só erram os que tentam acertar. Só acertam os que arriscam fazer. Ou algo do gênero, se me perdoam a bagunça!
     Razumíkhin, talvez tivesse tido, no romance, o status de alterego de Dostoiévski. Quando o personagem diz a frase acima está bêbado, andrajoso, aloucado pelos lindos olhos de Dúnia, irmã de seu amigo Raskólnikov, dividido pelo amor aos amigos que só falam asneiras, pobre ao ponto de parar os estudos... linda frase de um qualquer!

segunda-feira, março 22

Sursis - frases que apontam o gênio de Sartre!

E tudo se pusera a cair, vira as casas como eram de verdade: quedas sustadas. //A morte está inscrita nos homens, a ruína está inscrita nas coisas [...]//Cada coisa do mundo tem seu odor, sua sombra crepuscular, pálida e comprida, seu futuro particular. E a soma de todos esses futuros é a paz: podemos tocá-la na madeira carcomida dessa porteira, na nuca fresca do menino, podemos lê-la nos seus olhos ávidos, ela sobe das urtigas aquecidas pela luz do dia, ouvimo-la no tocar dos sinos.//Morto. E sua vida ali estava, em tudo, impalpável, terminada, dura e inteiriça como um ovo, tão cheia que todas as forças do mundo não poderiam fazer-lhe entrar um átomo, e tão porosa que Paris e o universo passavam através dela, dispersa pelos quatro cantos da França e condensada por inteiro em cada ponto do espaço, uma grande feira imóvel e ruidosa [...]//

sexta-feira, março 12

Ivich, Vania e o beijo no coração!

Vania tem traços finos, mas bem delineados, de Ivich, ex-namorada de Mathieu. Não digo tanto em relação aos contornos físicos, pois Sartre não se dá a tanto trabalho em sua narrativa a ponto de esclarecer-nos. Falo desta mulher que gravita entre menina e adulta, que estuda na Rússia, que passa algum tempo na França, sei lá para quê e acompanhada de Bóris, seu irmão de caráter discutível. Falo também de sua relação muito peculiar com a própria fisiologia e anatomia; as partes corporais nelas insistem em não coincidir com que a ciência estatui. Entretanto, em Ivich há um horror ao próprio fisiológico, que não coincide com, digamos o humor que Vania tem em relação as dobras corporais, as entrâncias e protuberâncias. Se a doença em Ivich causa obrigação de pensar no corpo, algo terrorífico, em Vania faz com que crie um outro corpo para dar conta do recado. Exemplifico: veja-se o caso do umbigo de Vania; está ligado a todos os órgãos abdominais por condutos que os tornam contíguos, coesos e extremamente sensíveis como antenas parabólicas que a colocam em contato com dimensões sem paralelo na fisiologia clássica. Assim, seu umbigo é sagrado, podendo ser tocado em muito raras ocasiões, momentos em que o adorador de seu umbigo pode se enlevar em êxtase platônico, sem a intimidade que viria a profana-lo. Terra do Nunca, espécie de Pandora (não a do filme), onde estão confusos os órgãos com a cidade, o corpo de Vania possui estranhezas dignas de nota. Para ela, que tenta com todas suas forças, entender esse troço de "o amor mora no coração", quando se força a pensar no coração como morada do amor, já inclui a barriga como a praça dessa moradia. Quando alguém lhe diz que vai dar-lhe "um beijo no seu coração" sente calafrios de pensar que a pessoa vai lhe tocar com a boca, algo que deve, em princípio ficar sem essa intimidade, digamos pouco higiênica, quem sabe até promíscua. Esse seu lado criança, que literaliza o enunciado dos pobres admiradores que formam um séquito a sua volta, pode ser sua maior força de atração, pois admiradores brotam como erva em horta de verão.
Ivich tem no seu corpo uma sombra; Vania uma força viva que não segue as leis da biologia. 
Se a amamos, a amamos por causa dessa sua exótica forma de relacionar-se consigo mesma. Me coloco frente a ela como um trovador que canta em versos um amor impossível pela esposa do rei. Só que tenho a pretensão de ser eu próprio o rei. Não tenho saída! Se não for assim, outro trovador pode achar de lhe fazer versos... e ela achar de os considerar mais rimados...!   

domingo, março 7

O Adolescente de Dostoiévski!

Não podendo mais refrear-me, começo a escrever esta história de meus primeiros passos através da vida. E contudo poderia dispensar isto.Uma coisa é certa: mesmo que vivesse cem anos, jamais escreveria minha autobiografia. É preciso alguém estar muito ignobilmente apaixonado por si mesmo para exprimir-se sobre sua própria vida sem se envergonhar. Espalhar no mercado literário a intimidade de minha alma e uma bela descrição de meus sentimentos seria para mim uma inconveniência e uma baixeza.
Assim Dolgorúkii, filho de Makár Ivánov Dolgorúkii, começa escrever suas memórias. Personagem central do romance "O Adolescente", ele se parece um certo tanto com os blogueiros. Ambíguo que é, não resiste a contar sua vida e, ao mesmo tempo, execrar essa forma de publiciza-la. De fato, nós blogueiros também não resistimos a gravar no éter da web, fatias de nossas vivências, instantes de percepção, drops de impressão, fingindo que não queremos mais que um ou outro olhar interessado. Contudo, não creio que sempre seja a paixão por nós próprios a nos conduzir a esse gesto, e nem uma baixeza.
Creio que blogar está mais para atestar, ou fixar, ou preencher um vazio qualquer; talvez mesmo uma técnica para fazer sentido; portanto uma técnica para apaixonar-se por si - quase sempre, a meu ver, vizinha do fracasso. Desse modo, não é a paixão por si que faz o blogueiro blogar, mas a possibilidade de criar um personagem crível e apaixonável para si mesmo. Não deixa, claro, de ser uma fascinação por si mesmo. Entretanto, não se trata de uma fascinação pelo maravilhoso em si mesmo; trata-se de convencer-se que há algum lume nessa escura alcova do eu, onde muitos personagens convivem sem se conhecer.
Dolgorúkii, rapaz de nascimento e pais ambíguos, cujo passado deve ser reconstruído, não tem saída a não ser recriar sua história. Creio que esta é de fato a história dos blogueiros - uma questão de inventar a própria história... Aceito discordância!

quinta-feira, fevereiro 18

Uma vida malograda!

[Pensou Mathieu depois de fechar a janela do quarto como se quisesse com o gesto encerrar sua história com Marcelle] ‘Muito barulho a toa, por nada. Por nada’. Essa vida era-lhe dada a toa, ele não era nada e, no entanto, não mudaria mais. Estava formado. Tirou os sapatos e ficou imóvel, sentado no braço da poltrona, um sapato na mão. Sentia ainda no fundo da garganta o calor adocicado do rum. Bocejou. O dia estava acabado e acabava sua juventude. Morais comprovadas já lhe ofereciam seus serviços. Havia o epicurismo desabusado, a indulgência sorridente, a resignação, a seriedade de espírito, o estoicismo, tudo isso que permite apreciar, minuto por minuto, como bom conhecedor, uma vida malograda. Tirou o paletó, pôs-se a desfazer o nó da gravata. Repetia bocejando:
- Não há dúvida, não há dúvida, estou na idade da razão. (Os caminhos da liberdade -1 Sartre, 1945).
Como evitar que minha vida malogre como a do Mathieu? Uma possível solução é a indulgência alegre do epicurismo desbragado. A outra é o estoicismo resignado, a severidade moral do cristianismo. Mas talvez haja uma seriedade hedonista, cuja ousadia de sorrir perante o horizonte do malogro existencial possa algo... Vejamos o que quero dizer com isto.

domingo, fevereiro 14

O amor-próprio é cego!

Cyrano, que ama Roxana, que ama Cristiano, abdicando de seu amor oferece a carta que fizera de próprio punho ao belo Cristiano que a oferecerá àquela formosa e delicada mulher. Cristiano se espanta por Cyrano já ter consigo uma carta tão adequada a sua situação, uma vez que não sabe verter em letras seus sentimentos. Não é poeta, nem tampouco muito inteligente, mas ama Roxana com aquele sentimento bipolar entre doce e agudo que toma os apaixonados. Ainda assim, sem as defesas de quem está resguardado da paixão, consegue desconfiar de Cyrano e lhe pergunta como pode ter uma carta que se encaixa tão bem a Roxana. E Cyrano lhe responde:
    Entre nós, [poetas] há sempre reservadas
    Epístolas de amor a falsas namoradas.
De modo tocante se justifica...
    A nossa amante é um sopro, um sonho rosicler
    Na bolha de sabão de um nome de mulher!
Cristiano pergunta se não precisa alterar nada do que está escrito para remete-la a Roxana, uma vez que foi feita "assim no ar", sem endereço certo. Cyrano garante-lhe que a carta lhe assenta perfeitamente, e acrescenta:
- O amor-próprio é cego, e, sobretudo, crente: 
  Roxana há de supô-la escrita expressamente.  
  O que será fatal a Roxane em seu encontro com Cristiano e a falsa-verdadeira carta será justamente seu amor-próprio, ou seja, o sentimento de que, sendo quem é, só pode ser o alvo daquela carta e quem a escreveu certamente seria o homem que declarava amá-la. O amor próprio é, além de cego, ingênuo. Não possui as condições necessárias para discernir os fatos e as situações, nem, tampouco, de onde vem o verdadeiro amor, pois é presa ao próprio espelho de seus olhos. O amor-próprio é antiamor, na medida que, de tão narcísico, mal pode relacionar-se com a idéia de depender do amor de outro. Quem, cujo amor-próprio impera - cego e crente - jamais poderá lançar-se no mundo incerto do amor, pois prefere a certeza de seu próprio umbigo a ter que investir lá fora, no mundo, nas dobras do corpo e da mente do outro. O amor-próprio é, às vezes, dito como orgulho-próprio. E, se é verdade que tem sua utilidade para defender o eu de ataques da realidade, quase sempre deixa indefeso o eu dos ataques de si próprio, do auto-engano. Não é assim tão comezinho encontrar alguém que se sente amado sem se sentir atacado em seu amor-próprio, exatamente porque ama; mas nossa profissão psicanálise participa de muitas construções analíticas que prescindem do orgulho próprio vivendo um amor do outro - dependendo e sentindo alegria na dependência. Mas uma maioria simples ficará a meio caminho disto, onde os sentimentos atrapalham ao invés de ajudar, se vendo na contingência de ter que lançar mão do orgulho-próprio. 

    Roxane acaba de ser enganada pela carta certa do homem errado.
    Foi Lacan que disse que uma carta sempre chega a seu destino; mas se algumas nem sequer saíram do lugar que se pensa terem saido, como podem atingir sua meta? E outras não atingem seu objetivo por causa do amor-próprio de quem deveria recebe-las. Talvez devêssemos dizer que toda carta chega a algum lugar; pode aportar bem distante do domicílio, ainda que na mesma residência...
 E isso ainda não é o mais sinistro; pode ser que chegue ao seu destino e estar em causa sua destinação, uma vez que o criador da carta está em jogo - quem a enviou é um outro...

sexta-feira, fevereiro 12

Marcelle, Mathieu e os caminhos da liberdade (Sartre, 1945)!

Mathieu é daqueles que não se arriscaria a uma mentira mesmo que para isso tivesse que recusar a mais bela aventura do mundo. Seu medo louco de se iludir, do auto-engano, estava diretamente ligado ao amor que sentia por Marcelle. Na verdade era o sentido profundo daquele amor que só se dava na inteira lucidez. Clareza que se sustinha no sentimento de ser sua companheira, testemunha e juízo. Convencido de que ao mentir para Marcelle, estaria mentindo para si próprio, Mathieu se via juntado a ela como um corpo só.
Mas, naquele dia, após Marcelle abrir a porta de seu quarto para que ele entrasse, com seus sapatos numa das mãos, evitando acordar sua mãe, sua habilidade em perceber segredos lhe indicou algo fora dos eixos. Será que Marcelle teria quebrado o contrato de honestidade total?
- Que é que há? - perguntou em voz baixa.
- Nada - respondeu Marcelle, igualmente em voz baixa.

domingo, janeiro 10

Graças a Deus! ... e ao Diabo!

Liane Alves da Revista Vida Simples me fez algumas perguntas:


Qual a diferença de ser bom e ser bobo? Ou toda bondade se reveste de um pouco de ingenuidade, de pureza? E o que é maldade? Existe gente que sente prazer em prejudicar? Ou é questão de sobrevivência? Existe um mal que possa ser justificado? Por que o mal parece mais forte e presente do que o bem?O que é ser bom? Existe alguém totalmente bom? Ou a gente é bom eventualmente? Se é eventualmente, existe gente com maior capacidade de ser boa do que outras? O que capacita o ser humano a exercitar a bondade? É coisa de nascença? De criação? O pessoal do campo é mais generoso do que o da cidade? Por quê?O que é ser bom? Existe alguém totalmente bom? Ou a gente é bom eventualmente? Se é eventualmente, existe gente com maior capacidade de ser boa do que outras? O que capacita o ser humano a exercitar a bondade? É coisa de nascença? De criação? O pessoal do campo é mais generoso do que o da cidade? Por quê?
Por mais que tenha me esforçado bem sei que o tempo disponível - pouco mais que uma manhã entre análises de alguns pacientes - e meus limites intelectuais, não me permitiram ir além do que transcrevo abaixo. Espero que tenha ajudado a pensar um rumo para novas questões. Quero voltar ao tema no futuro...
Existem pessoas mais, digamos, predispostas a amar. Trata-se, segundo entendo, de umas pessoas que se desenvolveram de criança em adulto, em um meio onde houve uma fusão inicial suficientemente boa entre o corpo do bebê e o corpo da mãe (ou de alguém que fez a maternagem); onde essa mãe, sem ser intrusiva – impondo o que se deve ou não se deve sentir, sem ser evasiva – deixando tudo por conta do bebê pensar, sem ser violadora – vendo tudo, adivinhando tudo, respondendo tudo, consegue estar com seu bebê numa forma de um corpo para dois, uma alma para dois, uma mente para dois, até que a criança possa criar um mundo para habitar. É muito importante que a criança possa criar a realidade e não deparar-se com algo pronto que se lhe enfiem goela abaixo. Se não for assim como poderia amar o outro ou o mundo? Se não foi criação própria, de um eu crível, amável? Como poder amar algo radicalmente diferente de si se não for por meio desta criação inicial, que dá a sensação de que aquilo que se ama é parecido consigo próprio por que foi criado por nós? O que digo aqui é inspirado nas teorias de Winnicott, psicanalista inglês, que pensou um estado inicial do bebê – estágio do concernimento – onde o bebê inicial começa a dar sinais de que sente no lugar da mãe – a dor no seio, o cansaço etc.
O bebê nascente é assolado pela crueldade, sem concernimento; não tem consideração pela mãe e sua carne exige a nutrição e tão somente. Ao chegar no concernimento o bebê já pode fazer um gesto reparador; isso significa que já pode se colocar no lugar do outro e tentar reparar os males que lhe causou. Essa é, em resumo, a base para se dizer que nascemos cruéis, mas não maus – o que não nos impede de agir brutalmente quando isso é exigido de nós. Alguém que é bom, ou que ama, é aquele que pode, com um trabalho contra a crueza, colocar-se no lugar do outro ou olhar pelo viés do outro; não por que tenha transformado o mal em bem, mas porque desde sempre criou o mundo em que vive. Isso requer dizer que ninguém muda seu olhar pela mágica – ou se está pronto para isso, desde o bebê inicial, segundo o que trouxe acima, ou não se está.
Excetuemos o caso dos psicopatas que não orbitam neste mesmo mundo, podendo dizer com calor, sentimentos pelos quais não são possuídos (não possuímos sentimentos, como os psicopatas; somos possuídos por eles). Eles, os psicopatas não são possuídos por qualquer coisa que seja.
Em geral lidamos há muito tempo com o ódio – da mãe pelo bebê, do bebê pela mãe, do pai pelos dois etc. – e só por isso podemos alcançar a dimensão do amor, que não é falta do ódio (do mal), mas uma relação de compreensão de sua presença. Afinal o eu foi erigido segundo interdições cotidianas odientas e permissões menos cotidianamente gozosas. Entre um caso e outro, nesse sentido, podemos dizer que somos bons e maus; ambíguos no próprio eixo onde giramos. Assim, não há alguém totalmente bom, e nem sempre somos só bons ou maus. Uma vez vi a foto de um grande matador, morto a tiros dentro de um carro, que usara o próprio corpo para salvar a vida de seu bebê de colo. Mas não vestimos peles de cordeiro escondendo um predador; somos tanto um quanto outro. Em geral deixamos, ou somos estimulados a viver segundo bons termos. Muito raramente escapa-se-nos o lado brutal.
Felizmente convive ao lado do sentimento de que a bondade é ingenuidade ou bobeira, o sentimento de que ser bom é ser heróico; isso harmoniza o prumo das nossas relações sociais, pacifica nossas distâncias.
Às vezes causar dor é uma questão de sobrevivência. É por aí que justificamos as guerras, um mal necessário. Mas, no âmbito cotidiano, mais trivial, podemos lutar por uma vaga de emprego, contra um outro que é mais necessitado que nós. Justificamos isso dizendo que as “armas” são as mesmas, que foi um “combate” justo, que o resultado é “isento”. Isso nos alivia a consciência. Mas, para citar só dois exemplos de fracasso dessa justificativa, temos os casos de psicanálise onde uma pessoa fracassa quando faz sucesso, por ter um sentimento difuso e profundo de não merecer o que possui por ter causado dor para chegar aonde chegou. Também é caso daqueles que “fracassam” quando começam a entrever um mecanismo social bem tramado onde muitos dos que vencem usam cartas marcadas (indicações, parentescos, fisiologismo – todos elementos do exercício do poder). Isso sem dizer que as armas não são as mesmas, o combate foi tendencioso e o resultado não isento, porque a sociedade não é justa, igualitária ou isenta. Nesse caso se sentem não merecedores por razões concretas, mas tão difusas e profundas quanto as primeiras,
Uma saída para o dilema será dizer: Graças a Deus eu estava no lugar certo, na hora certa... com as
pessoas certas! E seguir a vida como se houvesse igualdade entre os homens, equanimidade de usufruto de fortuna civil e justeza na distribuição dos resultados do trabalho. Ao crer nisso, justifica-se o absurdo da naturalização do bem e do mal...

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...