terça-feira, julho 20

Os caminhos da liberdade!

     "Espantar as palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando o encontro ao fim de si mesmo..." (Jean Paul Sartre - 1945, segundo volume do romance "Os Caminhos da Liberdade" - tradução de Sérgio Milliet, 4ª edição - Ed. Nova Fronteira).

       Os filósofos falam na terceira pessoa (ele) ou na primeira pessoa do plural (nós). Eventualmente dizem "o homem", "o vivente", "o ser", "o ente". Sartre, nos momentos cruciais da demonstração de seu pensamento existencial, preferiu, ou foi obrigado pela força do pensamento que o ultrapassava, dizer "eu". Não que não se utilizasse dos outros expedientes de localização do ponto de vista. Mas, exagerava, talvez conscienciosamente, no uso da primeira pessoa. Foi um homem que se colocou sem medo de contradizer-se, pois como ele mesmo se define em uma entrevista para uma televisão, era "um qualquer". Tratava, na entrevista, da ousada criação do Tribunal Russel, quando lhe perguntaram algo que sugeria que ele deveria ter certas qualidades para subscrever tal tribunal - feito para julgar crimes de guerra.
       Original, ousado, pensador brilhante, pessoa enredada no político, para o bem e para o mal, não fugiu da responsabilidade de posicionar-se e ter que responder pelos maus efeitos de sua escolha. Por outro lado mal se referia aos bons efeitos - eles simplesmente não lhe interessavam tão logo provocados. Condenado a ser livre, no seu próprio dizer, escolheu-se na suas escolhas e pagou todas as faturas de suas opiniões. Liberdade foi seu tema mais pungente.
       Um paradoxo daqueles que sempre gostou de nos colocar, vemos surgir a liberdade como uma pena a que fomos condenados sem julgamento formal. E as palavras seriam um livramento condicional desta pena - um sursis. Livramento da liberdade, da escolha, do fazer sentido. Um livramento que inexoravelmente, entre uma palavra e outra, é contrariado e nos faz tornar à mesma pena; só para fazer tudo de novo. Quando já estamos com nosso alvará de soltura, tropeçamos em outra palavra e lá vamos nós, de novo, à prisão de ser livre.
          Sursis, que naquela frase cifrada, um verdadeiro código escondendo talvez um pensamento mais complexo do que pode nos informar, aparece como o livramento condicional que cada palavra nos impõe, mais do que nos premia. Se, conforme nos diz, ou penso entender, em outros momentos de sua extensa obra, estamos condenados à liberdade, cada palavra nos livra dessa condenação, dessa pena existencial, que jamais pode ser plena, e por isso, palavra puxa palavra, nos deixando com a sensação de que uma vez privados de liberdade agora somos, paradoxalmente, livres. Cada palavra nos livra, mesmo que condicionalmente, da liberdade, pena perpétua e mortal.
       Cada palavra, funcionaria como uma suspensão condicional da liberdade. Nas palavras vê uma cadeia infinita de suspensões da pena de liberdade, tornando-nos presas da linguagem, ou ainda mais complexo, segundo Pêcheux, efeitos de linguagem. Condenados à liberdade, como Sartre nos diz, ou a significar como Orlandi nos lembra; presos às palavras, vamos suspendendo condicionalmente a execução da pena privativa de liberdade - o sursis.  
         Se o sujeito é constituído por linguagem, se seu osso é feito de linguagem, tornando-o, pelo uso das palavras, livre da liberdade, ainda que condicional e provisoriamente, então o sujeito é uma cadeia de sursisSe cada palavra é uma suspensão condicional da pena de significar, significa que nossas vidas são feitas de uma infindável corrente de pequenas suspensões condicionais da condenação pela liberdade. Fico curioso com o que se dá, ou o que fazemos nestes períodos de liberação da liberdade. Mas talvez existam apenas como um "experimento da língua", como nos propõe Giorgio Agamben, outro filósofo.



         Pois cada palavra é um átimo de sursis; e porque pululam mal se nos deixam experimenta-las e lá vem novo sursis. Trazidos à vida pelas palavras, pela linguagem, pela língua, pela ideologia (nos moldes da Análise de Discurso) vamos sobrevivendo aos ataques das escolhas, da liberdade, por conseguinte. O que se dá entre uma palavra e outra? Entre dois sursis...? A saída do personagem era tentar espantar as palavras; seria abandonar-se, irrevogavelmente, à liberdade? Será que colocar as palavras acompanhadas da terceira pessoa pode ajudar nessa missão quixotesca? Perguntas! Perguntas!!    

Um comentário:

  1. SOBRE LIBERDADE .
    Não há quem possa subtrair à palavra o gesto da existência. Fênix, em memória, estará sempre entre uma linha e outra, entre um riscado e outro, versos, verbos. É inútil mutilar fibras que se fizeram folhas acreditando-se deter no espaço do tempo o que não se detêm pela força da vida que se espalha feito vinha pelas veias do ser, em teias habilmente tecidas em luz .
    A palavra será sempre a palavra, lavra, tecido translúcido em imagens belas.
    Se o que temos de mais frágil , em matéria, pode ser contido ,subjugado de alguma forma, essa fronteira se dilui ao influxo do pensamento , sempre livre de amarras Nada, nada pode ser feito para deter um olhar que se debruça entre uma paisagem bela e o efeito de sentidos que em silêncio que diz, ao nos depararmos com uma manhã cheia de brisa e seres alados que voam na dança da vida e dizem outras vidas. Nenhum som pode ser contido e impedido de entrar na alma levando-nos a lugares que somente cada um de nós , na liberdade de sentir e recordar temos.
    Por isso, mesmo que não possamos continuar a escrever e escrever , trocar o verbo, o que nos toma continuará a grafar sempre, em linhas simples no dia-a-dia do ser, o que o coração de mais precioso guarda. Guardar assim , no deleite do silêncio em prosa e verso, poema desenhado em pensamento é um ato de vida, gratuidade que não se dobra a nenhum influxo. O ato da sublimidade da leitura em suas formas distintas levará sempre , de alguma forma, por força das imagens, a olhares e sorrisos que jamais, jamais podem ser apagados na janela do tempo. Presença viva que não se pode deter.

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