quinta-feira, fevereiro 18

Uma vida malograda!

[Pensou Mathieu depois de fechar a janela do quarto como se quisesse com o gesto encerrar sua história com Marcelle] ‘Muito barulho a toa, por nada. Por nada’. Essa vida era-lhe dada a toa, ele não era nada e, no entanto, não mudaria mais. Estava formado. Tirou os sapatos e ficou imóvel, sentado no braço da poltrona, um sapato na mão. Sentia ainda no fundo da garganta o calor adocicado do rum. Bocejou. O dia estava acabado e acabava sua juventude. Morais comprovadas já lhe ofereciam seus serviços. Havia o epicurismo desabusado, a indulgência sorridente, a resignação, a seriedade de espírito, o estoicismo, tudo isso que permite apreciar, minuto por minuto, como bom conhecedor, uma vida malograda. Tirou o paletó, pôs-se a desfazer o nó da gravata. Repetia bocejando:
- Não há dúvida, não há dúvida, estou na idade da razão. (Os caminhos da liberdade -1 Sartre, 1945).
Como evitar que minha vida malogre como a do Mathieu? Uma possível solução é a indulgência alegre do epicurismo desbragado. A outra é o estoicismo resignado, a severidade moral do cristianismo. Mas talvez haja uma seriedade hedonista, cuja ousadia de sorrir perante o horizonte do malogro existencial possa algo... Vejamos o que quero dizer com isto.

domingo, fevereiro 14

O amor-próprio é cego!

Cyrano, que ama Roxana, que ama Cristiano, abdicando de seu amor oferece a carta que fizera de próprio punho ao belo Cristiano que a oferecerá àquela formosa e delicada mulher. Cristiano se espanta por Cyrano já ter consigo uma carta tão adequada a sua situação, uma vez que não sabe verter em letras seus sentimentos. Não é poeta, nem tampouco muito inteligente, mas ama Roxana com aquele sentimento bipolar entre doce e agudo que toma os apaixonados. Ainda assim, sem as defesas de quem está resguardado da paixão, consegue desconfiar de Cyrano e lhe pergunta como pode ter uma carta que se encaixa tão bem a Roxana. E Cyrano lhe responde:
    Entre nós, [poetas] há sempre reservadas
    Epístolas de amor a falsas namoradas.
De modo tocante se justifica...
    A nossa amante é um sopro, um sonho rosicler
    Na bolha de sabão de um nome de mulher!
Cristiano pergunta se não precisa alterar nada do que está escrito para remete-la a Roxana, uma vez que foi feita "assim no ar", sem endereço certo. Cyrano garante-lhe que a carta lhe assenta perfeitamente, e acrescenta:
- O amor-próprio é cego, e, sobretudo, crente: 
  Roxana há de supô-la escrita expressamente.  
  O que será fatal a Roxane em seu encontro com Cristiano e a falsa-verdadeira carta será justamente seu amor-próprio, ou seja, o sentimento de que, sendo quem é, só pode ser o alvo daquela carta e quem a escreveu certamente seria o homem que declarava amá-la. O amor próprio é, além de cego, ingênuo. Não possui as condições necessárias para discernir os fatos e as situações, nem, tampouco, de onde vem o verdadeiro amor, pois é presa ao próprio espelho de seus olhos. O amor-próprio é antiamor, na medida que, de tão narcísico, mal pode relacionar-se com a idéia de depender do amor de outro. Quem, cujo amor-próprio impera - cego e crente - jamais poderá lançar-se no mundo incerto do amor, pois prefere a certeza de seu próprio umbigo a ter que investir lá fora, no mundo, nas dobras do corpo e da mente do outro. O amor-próprio é, às vezes, dito como orgulho-próprio. E, se é verdade que tem sua utilidade para defender o eu de ataques da realidade, quase sempre deixa indefeso o eu dos ataques de si próprio, do auto-engano. Não é assim tão comezinho encontrar alguém que se sente amado sem se sentir atacado em seu amor-próprio, exatamente porque ama; mas nossa profissão psicanálise participa de muitas construções analíticas que prescindem do orgulho próprio vivendo um amor do outro - dependendo e sentindo alegria na dependência. Mas uma maioria simples ficará a meio caminho disto, onde os sentimentos atrapalham ao invés de ajudar, se vendo na contingência de ter que lançar mão do orgulho-próprio. 

    Roxane acaba de ser enganada pela carta certa do homem errado.
    Foi Lacan que disse que uma carta sempre chega a seu destino; mas se algumas nem sequer saíram do lugar que se pensa terem saido, como podem atingir sua meta? E outras não atingem seu objetivo por causa do amor-próprio de quem deveria recebe-las. Talvez devêssemos dizer que toda carta chega a algum lugar; pode aportar bem distante do domicílio, ainda que na mesma residência...
 E isso ainda não é o mais sinistro; pode ser que chegue ao seu destino e estar em causa sua destinação, uma vez que o criador da carta está em jogo - quem a enviou é um outro...

sexta-feira, fevereiro 12

Marcelle, Mathieu e os caminhos da liberdade (Sartre, 1945)!

Mathieu é daqueles que não se arriscaria a uma mentira mesmo que para isso tivesse que recusar a mais bela aventura do mundo. Seu medo louco de se iludir, do auto-engano, estava diretamente ligado ao amor que sentia por Marcelle. Na verdade era o sentido profundo daquele amor que só se dava na inteira lucidez. Clareza que se sustinha no sentimento de ser sua companheira, testemunha e juízo. Convencido de que ao mentir para Marcelle, estaria mentindo para si próprio, Mathieu se via juntado a ela como um corpo só.
Mas, naquele dia, após Marcelle abrir a porta de seu quarto para que ele entrasse, com seus sapatos numa das mãos, evitando acordar sua mãe, sua habilidade em perceber segredos lhe indicou algo fora dos eixos. Será que Marcelle teria quebrado o contrato de honestidade total?
- Que é que há? - perguntou em voz baixa.
- Nada - respondeu Marcelle, igualmente em voz baixa.

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...