quarta-feira, janeiro 6

Sabiás, alma-de-gatos e árvores!

Metrô Santa Cruz, 07:00
Não sou daqueles que têm os cinco sentidos dos mais aguçados, até pelo contrário. Meus sentidos me dão experiências abaixo da média do esperado. Acho que nascer sem sentidos muito desenvolvidos me fizeram prestar mais atenção para certas nuances da experiência corporal. Por exemplo, ao cheirar um buquê de flores percebo mais de um perfume em uma mesma flor. No centro da rosa há um cheiro e nas bordas de suas pétalas outro aroma. O Sol pode lhes dar um perfume mais doce; em manhãs mais frescas o orvalho encolhe seu cheiro e assim por diante.
Mas, o sentido que mais se especializou em mim foi mesmo a audição. Talvez devido a um acidente, ainda no exército, quando o barulho infernal dos canhões, contra ouvidos já frágeis, acabou desensibilizando de vez minha audição. Como tive que prestar muito mais atenção ao que se passa por perto, atribuo a isso minha capacidade para ouvir alguns sons, em detrimento de outros. Pode-se dizer que privilegiei alguns barulhos desprezando outros, para sobreviver a algazarra da vida.
Coloco na conta da infância vivida entre árvores e bichos de toda natureza, minha escolha por ouvir aves e outros sons no meio dos sons mecânicos da cidade (junte-se a esta conta minha experiência como escoteiro do Dom Bosco e depois uma longa estadia nos contrafortes da Serra do Cervo). Entre todos os barulhos que as ruas produzem identifico o canto do sabiá de começo da noite entre as árvores, assuntando seu ninho. Ou, no meio do dia, os sanhaços e bem-te-vis citadinos numa gritaria danada quando dois machos e uma fêmea exercem seus buliços sexuais.
Há algum tempo descobri uma verdadeira trilha entre as ruas da Chácara Inglesa, repleta de pequenos ninhos e tocas onde vicejam ovos e filhotes, que depois vão fazer destes limites seu mundo. Um casal de sabiás, fez seu ninho em uma sebe bem fechada, que só pude achar devido a vozinha choca da fêmea. Sua irritação com minha proximidade e a tentativa do macho de me desviar a atenção me levou direto para seu esconderijo, onde dois filhotes dormiam aconchegados. Fiquei ali olhando sua respiração rápida, inflando as pequenas costelas, olhinhos cerrados. Achei que estavam bem guardados de gatos e outros predadores.
Acompanho há duas semanas o crescimento de dois outros filhotes, desta vez de pardais, que fizeram seu seu ninho em um semáforo (pasmem!) que fica no alto e em cima da rua. Em baixo passam, além de carros de toda espécie, ônibus articulados, com seu barulho infernal! O casal achou que ali está protegido o suficiente.
Foto: Geya Besse
Sabiás, bem te vis, sanhaços, pombos, perequitos, pardais, são muito comuns nas cidades, principalmente nos bairros mais residenciais. Um pouco menos comuns as curruíras e sebinhos. Convivemos tão bem com eles, que nem lhes prestamos atenção. Não supreende encontra-los em arbustos no jardim, na janela nos olhando com seus olhinhos inocentes e curiosos e até mesmo dentro de casa catando alguma faísca de comida. No entanto, nunca me acostumo com sua presença; sempre levo um "susto" com sua presença em meu caminho.
Foto: https://www.flickr.com/photos/flaviocb/304437095
Entretanto, uma supresa e tanto foi ouvir, dia desses, um gemido de gatinho novo seguido de um canto de bem-te-vi vindo do meio da folhagem de uma frondosa Sibipiruna, duas ruas acima de casa. Sabia que estava para ver um pássaro bem mais raro. Procurei um pouco e logo identifiquei uma longa cauda de penas marrons e manchas brancas, que eu bem conhecia da minha vida no campo. Tratava-se de uma Alma-de-gato, com seus olhinhos desconfiados. Por quê alma de gato? Tenho minha teoria bem particular. Ela escala os troncos, apesar de poder pular de galho em galho quando necessário. Pode cantar como um bem-te-vi, porém o que chama a atenção é que mia como gato bebê. Acho que por isso acabou sendo chamada por alma-de-gato. Ela não esperou muito minha contemplação. Logo subiu pelo tronco até quase o topo e depois mergulhou no ar corcoveando no seu jeito inconfundível de voar, sem nenhum pio para que nenhum gatuno pudesse saber onde é seu ninho... e desapareceu entre o casario. Fiquei ali, um instante, saboreando o momento, ciente de sua raridade. Pode ser que leve meses até que nos encontremos de novo. Valerá a espera.  

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

  1 – Dos livros: vamos ler a publicação das “Obras Completas de Freud", da Companhia das Letras, tradução do alemão, que por sua vez, ...