sexta-feira, março 12

Ivich, Vania e o beijo no coração!

Vania tem traços finos, mas bem delineados, de Ivich, ex-namorada de Mathieu. Não digo tanto em relação aos contornos físicos, pois Sartre não se dá a tanto trabalho em sua narrativa a ponto de esclarecer-nos. Falo desta mulher que gravita entre menina e adulta, que estuda na Rússia, que passa algum tempo na França, sei lá para quê e acompanhada de Bóris, seu irmão de caráter discutível. Falo também de sua relação muito peculiar com a própria fisiologia e anatomia; as partes corporais nelas insistem em não coincidir com que a ciência estatui. Entretanto, em Ivich há um horror ao próprio fisiológico, que não coincide com, digamos o humor que Vania tem em relação as dobras corporais, as entrâncias e protuberâncias. Se a doença em Ivich causa obrigação de pensar no corpo, algo terrorífico, em Vania faz com que crie um outro corpo para dar conta do recado. Exemplifico: veja-se o caso do umbigo de Vania; está ligado a todos os órgãos abdominais por condutos que os tornam contíguos, coesos e extremamente sensíveis como antenas parabólicas que a colocam em contato com dimensões sem paralelo na fisiologia clássica. Assim, seu umbigo é sagrado, podendo ser tocado em muito raras ocasiões, momentos em que o adorador de seu umbigo pode se enlevar em êxtase platônico, sem a intimidade que viria a profana-lo. Terra do Nunca, espécie de Pandora (não a do filme), onde estão confusos os órgãos com a cidade, o corpo de Vania possui estranhezas dignas de nota. Para ela, que tenta com todas suas forças, entender esse troço de "o amor mora no coração", quando se força a pensar no coração como morada do amor, já inclui a barriga como a praça dessa moradia. Quando alguém lhe diz que vai dar-lhe "um beijo no seu coração" sente calafrios de pensar que a pessoa vai lhe tocar com a boca, algo que deve, em princípio ficar sem essa intimidade, digamos pouco higiênica, quem sabe até promíscua. Esse seu lado criança, que literaliza o enunciado dos pobres admiradores que formam um séquito a sua volta, pode ser sua maior força de atração, pois admiradores brotam como erva em horta de verão.
Ivich tem no seu corpo uma sombra; Vania uma força viva que não segue as leis da biologia. 
Se a amamos, a amamos por causa dessa sua exótica forma de relacionar-se consigo mesma. Me coloco frente a ela como um trovador que canta em versos um amor impossível pela esposa do rei. Só que tenho a pretensão de ser eu próprio o rei. Não tenho saída! Se não for assim, outro trovador pode achar de lhe fazer versos... e ela achar de os considerar mais rimados...!   

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