sábado, maio 1

O crime e o castigo de Raskólnikov!

    Haverá algum tipo de crime que pode ser honroso? Mais exatamente, um assassinato pode justificar, honrar e dignificar o assassino? O crime pode ser redentor? Por mais exótica, bizarra e estranha a pergunta, na verdade essa questão já encontrou resposta prática em muitas ocasiões. Muitos assassinatos no correr da história foram justificados no cerne de argumentos que misturam teorias sociais salvíficas, guerras santas (cristãs e islâmicas principalmente; porém, há exemplares taoístas, hindus etc.), assassinatos libertadores, correcionais e outras variantes. 
     Para Raskólnikov tratava-se de salvar o mundo de gente como aquela senhora que assassinara a golpes de machado, e que, para azar dela, teve que matar sua criada que chegara de surpresa na cena do crime. A primeira morria cumprindo uma sua teoria de que o mundo precisava ser livre de gente como aquela - usurária e sem compaixão. A segunda fora um acidente, uma fatalidade - estava no lugar errado na hora errada; pura facticidade. Os dias correm e nosso anti-herói agora está na frente do investigador, que por alguma razão já desconfia que ele é o assassino. Raskólnikov não se dá por encontrado. Porfírii diz, de modo bem claro e veladamente ameaçador:
     "Estamos em presença de um caso sombrio e fantástico; esse crime traz a marca de nossos tempos, o cunho de uma época em que o coração humano se alterou, em que se afirma, citando autores, que o sangue 'purifica', em que só existe a preocupação do conforto. [...] matou duas pessoas para obedecer a uma teoria".
     Para obedecer uma teoria ou para cumprir uma profecia, para cumprir um mandado, para salvar uma nação, para justiça, para fugir do medo; mata-se por muitos motivos e quase todos acompanhados de uma teoria a ser demonstrada. Raskólnikov achava que a humanidade estaria melhor sem aquela mulher que explorava os necessitados, tomando-lhes os objetos queridos e transformando-os em alguns copeques, ou seja, centavos, tostões ou a famosa merreca. Sempre entregando menos dinheiro do que valem e cobrando acima do valor. Quase impossível recuperar o objeto empenhado!
     A golpes de machado o jovem pensa fazer justiça ao mundo; usar o dinheiro conseguido com aqueles objetos para sua formação intelectual - algo muito mais plausível do que continuarem nas mãos daquela mulher que nada faria de útil ao mundo com os tais objetos penhorados.
     Creio que numa certa perspectiva um Hitler, um Mussolini, os homens-bombas e outros pensam salvar o mundo do que chamam a escória humana. E as coisas se dão de tal modo que a teoria que tentam provar exige o assassinato. Parece-lhes completamente justificado matar, exercer a crueldade sem limites. 
     Alguns em nome da, ou escudados na soberania. Outros, como o herói de Crime e Castigo, apenas seguindo um raciocínio lógico - uma certa lógica perversa onde os fins justificam os meios. Jacques Derrida disse que é condição da soberania a violência e Giorgio Agamben busca demonstrar que há no mundo um certo tipo de gente que é simplesmente matável - o homo sacer - que fica no limbo entre cidadania e desaparecimento. Morrem nas prisões de Guantámano, nas montanhas do Tibet e também nos Carandirus do Brasil. Trata-se de vida matável, segundo a nomenclatura Agambeniana. Mas para matar não precisamos apertar o gatilho; basta nos calarmos frente a anomia social. Só com este simples gesto - gesto negativo - confirmamos que há vida matável e que nada há a fazer a não ser matá-los pelo silêncio. 
     Se os soberanos ou os Estados matam pela força ou pela inanição, nós, cidadãos "plenos" matamos os "meros indivíduos" (como li em não sei que obra) pela denegação de sua existência. Tal como raskólnikoves multiplicados, embora sem machados nas mãos, vamos matando gente "insignificante", "invisível", sempre munidos de uma boa teoria.
     Outro dia uma pessoa, que eu não conhecera até então, enquanto conversávamos num café da Vila Mariana, proferiu sua teoria em palavras bem marcadas: Quando vejo um carrão importado do lado de um carrinho caindo pedaços, sei que as coisas ainda estão funcionando. Fica claro que cada um merece o que tem; dá para ver exatamente quem trabalha e quem não trabalha. 
      Depois, achando que exagerara, tentou consertar, mas a emenda ficou pior que o soneto: O cara do carrão é mais inteligente! 
      Sem essa teoria a justificar a situação como poderíamos conviver com essas diferenças sociais sem colocar a desnudo nossa crueldade!? 
      Bem, apesar da biografia de Dostoiévski ser embebida em quase crimes, perdas de dinheiro em jogo, ataques de epilepsia e muita confusão na vida, o fato é que era um moralista e seu personagem Raskólnikov acaba indo para as galés e sofre os horrores de um castigo que, acreditamos, o purificou do sangue derramado. Tudo como manda o figurino dos romances, do cinema, do teatro e das novelas.  
     Já na vida real não creio que sejamos punidos pelo sangue que deixamos derramar se não colocamos nele nossas mãos. Mas Sartre nos puxa as orelhas quando diz que, nestas situações, o silêncio é reacionário; em outras palavras, conserva a situação com está...

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