domingo, dezembro 15

Voltaire, Sartre e o melhor dos mundos possíveis!

Luz: Sábado - 20:00h

A luz do dia se esvai exatamente enquanto caminho para a saída do metrô que dá para a Rua Mauá. Tenho uma certa reverência por este nome... "Mauá" me soa bem aos ouvidos e nem sei ao certo qual a referência. A esquina entre a Mauá, que ladeia a estação da Luz e a Rua Cásper Líbero é a mistura amalgamada de figuras bem desenhadas dos inferninhos. Talvez uma extensão ou deslizamento da antiga Boca do Lixo lá pelas bandas da Praça da República. Nesta hora, num sábado, noite azul escura no céu, a cena é dominada pelas prostitutas sexagenárias e uma centena de homens de pouca idade tomando cerveja nos beirais de pequenos hotéis rescindindo a cloro. 
Apesar da aparência um tanto agressiva, estão ali de boa fé, na sacristia do sexo, e não estão ligando para nós meros passantes. Só querem seu quinhão de alegria numa semana que os triturou de alto a baixo, de nuca a calcanhares, noutra sacristia - a do patrão. Estou ali de passagem e não pretendo ficar mais que o tempo de, a passadas decididas, ganhar a direção da antiga estação de trem Júlio Prestes. Saio do metrô que dá para a Cásper, viro nos calcanhares e tomo a Mauá. Resolutamente. Vai que nem todos ali são de boa fé.
       À direita a bela construção da Luz, à esquerda uma série de prédios corroídos pelo tempo. Passa por mim uma pequena puta, corpo magro, quarenta e cinco quilos, carregando no ombro direito um rádio a pilha, onde toca uma música bem cadenciada, um ritmo dançante, que desconheço. Mais a frente um homenzinho também magro, copo de cerveja na mão, dança gostosamente na calçada para só tropeçar no chão irregular e quase cair à minha frente. Mas, bêbados se equilibram melhor que praticantes de taichi. E ele ficou em pé, grotescamente ereto e me cumprimentou com um sorriso bobo. Devolvi o cumprimento com o sorriso mais bobo que eu podia desenhar na cara e não dei motivo para conversa. Vai que a conversa era das boas... e eu tinha um compromisso logo adiante.
  A Júlio Prestes me dá sensações estranhas. Não passei ali mais que meia dúzia de vezes nos quarenta anos que conheço São Paulo. Mas foi em suas calçadas que pisei o solo paulistano em 29 de dezembro de 1973. Numa tarde quente e abafada. Chegava de Apucarana depois de uma longa viagem que começara no dia anterior. Me lembro que olhei muito tempo as fachadas do prédio, com os olhos mal dormidos sendo cozidos pelo calor que vinha da construção. Depois tomei o rumo da Penha, levando bagagem acima de minhas forças.
       Mas, agora estava ali, a convite de Vanusa Barbosa, uma das coralistas do Coral Municipal da Cidade de Santo André, para assistir "Candide", uma pequena ópera, escrita por Leonard Bernstein, bem engraçada, baseada numa sátira escrita por Voltaire. Entro na Sala São Paulo e não reconheço o lugar que um dia frequentara por algumas horas como passageiro do trem que ali freara rodas. Fico desorientado. Mas logo retomo o porquê estava ali. E minha estação de trem vai perdendo significado para o espetáculo irreparável que se descortinou. 
Já conhecia Cândido, ou Do Otimismo, ao ler Voltaire. No entanto, a leitura de outro filósofo, desta vez Sartre, "o Voltaire de nossa época", como foi dito pelos franceses, me é mais saborosa. Enquanto no século das Luzes o iluminista foi defendido pelo próprio rei, que o deixou livre para pensar, Sartre foi deixado livre pelo próprio Charles de Gaulle, a quem o filósofo fez tanta crítica que um de seus ministros sugeriu sua prisão. A frase famosa do então presidente da França foi mais ou menos esta: "Não se prende um Voltaire", repetindo seu antepassado. Um ato de cavalheiro.
         Voltaire batia seu látego verbal contra muita gente, mas especialmente contra Leibniz, que nutria uma otimista (cândida) visão de mundo. Contra o slogan "o melhor dos mundos possíveis" de Leibniz, Voltaire lança uma campanha de deboche e descrédito, com um humor ácido e cortante. Inventa outro discurso: "devemos cultivar nosso jardim", um dito que merece leitura, uma vez que é a resposta do filósofo ao otimismo leibniziano. 
A peça de Leonard Bernstein, pelas bocas e corpos de vários corais, muitos cantores, maestro impecável, fez jus ao Candide. Nos fizeram rir de nossa condição humana, embora eu tenha visto um ou outro movimento contrafeito na platéia. Contudo, não se prende artistas por dizerem sobre nossa alma!
Se todos os que estavam assistindo Cândido pegassem o metrô da Luz à 00:05 de hoje (domingo), saberiam que mundo viceja pela Mauá, Cásper Líbero, Aurora, Brigadeiro Tobias, Duque de Caxias e uma dúzia de ruas que desafiam o otimismo. São cândidos e cândidas que, definitivamente, desdizem o "melhor dos mundos possíveis" leibniziano. Mais parecem confirmar a sátira de Voltaire. O cheiro de cola, crack, álcool, tabaco, as vozes empasteladas pelo vício, certamente empanariam o coro do otimistas. Muitas cenas da ópera se descortinariam à sua frente, sem retoques...
Um pouco antes de entrar na Luz, um homem se aproxima e pede cigarro. Digo que não tenho.
- Não tem ou não fuma?
- Não fumo! 
- Ah bom!
- Quer um dinheiro para compra-los?
- Não, dinheiro eu tenho, só estou com preguiça de ir comprar!
Faço um gesto de mão e cabeça, dando a entender que não posso ajudar. Me enfurno no metrô e vou para o "meu jardim", seja lá o que for que isso queira dizer...  


http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/30/imagens/i276736.jpg

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