segunda-feira, setembro 21

Apresentação da minha dissertação à banca examinadora! (2008)

     “Para chegar a este momento, acumulei dívidas de gratidão com uma legião de pessoas. Nomeando-as aqui, de público, é o mínimo que posso fazer para agradecer seus préstimos, sabendo de antemão, que essa devolução será irrisória, perto do que me proporcionaram no percurso desse mestrado. Além disso, passarei pelo constrangimento certo de esquecer alguém que tenha me privilegiado com sua acolhida, ensino ou apoio.      Quero agradecer ao Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini por sua orientação, instigação ao pensamento e respeito por nossas diferenças. Agradeço aos Professores Doutores Ronaldo Teixeira Martins e Romualdo Dias, por aceitarem examinar e criticar minha dissertação. Às Professoras Doutoras Míriam Santos e Telma Domingues, que ciosamente me apontaram o rumo da Análise do Discurso, suas vicissitudes e alcances, na esperança de que eu pudesse um dia operar com as ferramentas apresentadas. À Profa. Dra. Maria Onice Payer, por sua leitura arguta, atenta e minuciosa na qualificação desta dissertação. À Profa. Dra. Hammes que me deu cálida atenção, na UFSC, lendo Bakhtin comigo. À Profa. Dra. Rahel Boraks, que me supervisionou, usando as idéias de Winnicott, durante minha graduação em Psicologia e, posteriormente, ao clinicar. À Profa. Dra. Elsa Dias e Prof. Dr. Zeljko Loparic, que me reafirmaram Winnicott. Dediquei esse trabalho à esposa Vania.
     Professoras, professores, colegas e amigos. Como vocês, passo pelas delícias e amargores de viver em um corpo, ou como um corpo, ou apesar de um corpo. E isso há tanto tempo, que o início disso tudo me desapareceu nas águas escuras da memória, lugar e tempo, não cronológico ou topográfico, que insisto em revisitar. Essa olhada para o passado já me impôs uma psicanálise pessoal; estudos de outros sentidos para o corpo nas culturas japonesa, chinesa e indiana; e, às vezes, algum assombro com a irrupção desse tempo ahistórico, no cotidiano, transbordando psicossomaticamente, me esculpindo a carne.
     Quando escoteiro me relacionei com a idéia de um corpo sempre alerta, espartano, conduzindo-me às melhores saídas frente as vicissitudes do terreno. Depois, tendo como veículo as artes marciais, toquei um mundo cujos corpos prometiam segredos de força e harmonia quase sobrenaturais; corpos que eram a extensão do mundo, onde tronco, cabeça, mãos e pés se uniam numa letalidade ritual e meditativa. Na sala templária do ensino marcial o corpo era campo de duas batalhas: contra os próprios sentidos, controlando a dor, e contra o oponente, controlando o medo. Ingressei no exército, onde corpo e máquina de guerra eram extensões de uma mesma unidade; onde olho e alça de mira unificavam-se no cálculo do deslocamento do ar, na apuração do pesadume da gravidade e pela fuga do alvo. Lugar onde o corpo, apropriado pelo Estado, é treinado até que sua materialidade seja o próprio corpo da lógica militar. Ao sair do regimento de cavalaria mecanizada retomei minhas disciplinas corporais, mais particularmente aquelas que advinham das artes medicinais indianas. Ali retomei contato, que mantive por décadas, com um sentido de corpo onde a anatomia, biologia e fisiologia formavam pilares de um corpo-templo em que se dava uma litania de fonemas e fórmulas verbais no formato de culto a forças corporais intangíveis, cujo fim seria sua transubstanciação – uma espécie de unção do corpo. Esse intento me fez estudar as seis filosofias clássicas indianas, cada uma com um sentido próprio desse fazer do corpo. Ansioso por conhecer um corpo indefectível, uma completeza de sentidos, vasculhei em Freud, Reich e Jung, na psicanálise, e Sartre na filosofia, outras possibilidades de significação de suas formas e outras abordagens aos seus limites. Mais um pouco e me tornei terapeuta corporal, pois acreditava que isto me dava mais liberdade para essa aventura com os corpos. Depois graduei-me em Psicologia, retomando Freud na versão de Donald Woods Winnicott e seu conceito de psicossoma, uma sua tentativa de reinventar um corpo para a psicanálise. Foi aí que ingressei na clínica psicossomática, envolvendo-me com a carne que sofre onde o simbólico se esgarça.
     Esta saga por entre sentidos de corpo e sua inexequível materialidade foi tão massiva e fascinante que, em muitos momentos, paradoxalmente, esqueci essa mesma evidência, sua existência, sua materialidade e me relacionei com a corporalidade como se não houvesse questões quanto a sua formação, sua relação com o sujeito e seu estatuto frente ao social. Com o passar dos estudos soube que ele é a presença sem a qual não podemos sequer ser demarcados como sujeitos; e mesmo quando o corpo não está lá onde é exigido a se apresentar materialmente, sua figura, sua numeração, suas digitais, seu formato e outros corpos são convocados a lhe dar suporte, existência e sentido à sua ausência. Na verdade, em certos casos, quanto mais ausente, mais presente ele se torna nos suportes cotidianos da vida citadina. Definitivamente, isso não nos incomoda e nem chama a atenção, mesmo que seja sua ausência, desde que seja uma ausência consentida e administrada pelas instâncias sociais erigidas para localizá-lo, dando-lhe corpo. Veja-se, por exemplo, o caso em que mesmo presentes, prescindimos do direito de falar, e um outro corpo, advogado por nós, fala de nosso lugar, somos falados por uma boca estrangeira, boca essa que nos representa e constitui. Ou nos casos em que, sob procuração, o corpo desaparece da cena, deixando traços, senão de sua presença, pelo menos de sua passagem; traços bem registrados em superfícies que possam atestar a sobrevida do corpo. É verdade que, às vezes, a evidência do corpo é definitivamente apagada, por que incômoda, por que embaraçante, por que produz mais sentidos na ausência; é o caso de um certo corpo subsumido na cruz e hóstia cristãs.
     No correr deste mestrado foi-se constituindo uma pergunta: o que de fato faz com que haja corpo? Bastam sua imagem e materialidade para que sua presença seja indiscutível. Mas, de que materialidade se trata? Qual seu estatuto, frente ao sujeito? Desde quando podemos dizer que há corpo? Em que momento esse construto se inicia? Primeiro haveria uma base material e depois um corpo aposto a ela?
     Com isso em mente acabei fazendo a questão que intitula a dissertação, O discurso encarnado: ou a passagem da carne ao corpodiscurso, pois em certo momento me pareceu que se poderia mostrar a passagem de simples tecidos vivos ao corpo pulsional ou ao corpo como efeito de linguagem. Nada que muitos autores, do campo psicanalítico já não houvessem tratado, com consequências importantes na compreensão de certos sentidos de corpo, para as ciências, mas que eu quisera olhar pela lente do discurso. Não fosse as contribuições de Orlandi, com sua abordagem ao corpo pela lente de uma teoria do discurso, localizando um corpo político, da pólis, unido ao corpo da cidade e não teria percebido que poderia me aproximar do corpo pulsional e do corpolinguagem pela via da historicidade, pelo ideológico. É certo que a carne estava ainda mais soterrada que antes, mas agora já podia falar de sua passagem ao corpo feito de discurso, ou seja, um corpo-efeito-histórico e construído a partir de uma agência ideológica. Como psicanalista psicossomatista, frequentemente vejo uma espécie de retorno da carne, que um dia desaparecera na cortina de fumaça da elaboração simbólica, retomando um certo grau de infans simbólico, revivendo no sujeito um cerne sem voz, que retoma a cena vindo à flor da pele, pondo-o em carne viva.
     Fui percebendo, já na tentativa de enunciar o problema que me impunha, que a carne aparece de tal modo atada à ordem de um discurso, funcionando dentro de uma dada formação discursiva, em um dado espaço social, que sua presença se apaga, sem apagar sua materialidade, pois sem a carne não haveria corpo. Porém, o que poderia se chamar por carne no corpo do sujeito? Autores como Freud, Lacan, Winnicott, Althusser, me ajudaram a sustentar uma argumentação que se dá na presença do sentido de carne como um impossível de se ordenar, porque é a ponta do real no corpo do sujeito, surgindo como algo a se matar pelo que decidi chamar pelo termo discursivização da carne. Essa discursivização me pareceu um correlato da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, na fórmula proposta por Althusser. Na verdade, foi a partir desse axioma que me surgiu o interesse de saber se não se trataria de uma interpelação da carne em sujeito pelo discurso, numa teoria do discurso. Há ainda, que se admitir, que o sujeito, apesar de ser o resultado de interpelação do indivíduo pela ideologia, aparece como sendo desde sempre sujeito, o que complica sobremaneira falar sobre uma carne que o antecede, ou como gênese do sujeito. Daí que reafirmei uma carne teórica, para localizar um certo tempo, lugar e modo pelo qual se dá a interpelação.
     Com isso em vista, passei a uma tentativa de saturar adequadamente meu objeto de estudos na forma de um possível sentido de corpo para a Análise de Discurso, seguindo os traços da presença dessa passagem em certos textos e autores que a representam e, nesse movimento, tentei verificar a existência de um corpo de carne que precede, mesmo que apenas como objeto teórico, o trabalho de simbolização. Poderíamos dizer que os sentidos de corpo são tracionados por uma base carnal para que se dê o discurso, assim como a cidade precisa do seu território, tal como nos propõe Eni Orlandi em sua obra Cidade dos sentidos? Estaria o corpo, por sua cabal materialidade discursiva, atado ao território-carne, sendo isso passível de descrição? Escolhi iniciar com esta obra, obrigado por minha trajetória pessoal, pelo discursivo do corpo em Orlandi e pela disposição da autora em considerar o corpo como um dos campos do político-ideológico.
     O que deveria eu fazer, então, se meu objeto de trabalho tem essa qualidade de ser volúvel, e não se deixar apreender? Que não (em)presta sua materialidade para estudos a não ser com muito custo e sem garantias? Que sua materialidade é plástica e se deixa moldar, mas com a condição de que o poder modalizante (o Estado, por exemplo) também se modifique no processo mesmo de modalizá-lo? Que seu fundamento é o assujeitamento à ideologia, à linguagem, ao sentido, por isso ao simbólico, ao imaginário, restando do sentido de corpo, algo que se confunde/aproxima do sentido de sujeito?
     Que o sentido de corpo é apreensível pelo discurso, tal como a cidade, Orlandi já me advertira em sua obra.
     Esse processo de discursivização da carne forçou-me a evoluir sentidos como o que contraí num enunciado com esta estrutura: a carne, interpelada em corpo pela produção de sentidos, pela linguagem, pelo ideológico, erige o sujeito. Sem sua materialidade não podia ver o corpo discursivo, mas isso nada facilitava em termos de entender o tempo e lugar dos processos que levam o corpo, que é discurso, surgir de simples tecidos vitais.
     Num segundo momento quis ressaltar, brevemente, os principais quadros polissêmicos da palavra corpo ao longo da História, na esperança que isso ajudasse me haver com o corpo da ordem do discurso. Os vários sentidos de corpo que fomos habitando texto afora só fizeram demonstrar sua opacidade, sua gritante ambiguidade; sentidos que se sobrepuseram, mesclaram-se, refundiram-se. O corpo já teve, por exemplo, os sentidos de máquina, instrumento da alma, túmulo da alma, mecanismo, organismo, só para citar alguns deles. Mais exatamente, me vi na contingência de aceitar uma simultaneidade de sentidos organicamente dispostos e fazendo efeitos uns nos outros. Devido ao quanto é especial essa relação entre carne, corpo e sujeito, um se torna metáfora do outro, sem recobrir todos os seus sentidos mais exercidos. Em certos momentos pude entrever claramente que para certos pensadores corpo significa organismo, e em outros aparece como um corpo existencial.
     Num terceiro momento, tentei entender o como se dá a aparição do indivíduo à ordem do discurso, pelo nascimento, a partir da carne. Como se dá a discursivização da carne e o processo pelo qual se constituiria a subjetividade, e, por conseguinte, o corpo do sujeito. Trouxe a mãe, eu diria uma mãe winnicottiana, e sua participação na construção fisiológica do indivíduo, tentando ver como ela pode encarnar o discurso ao ponto de liga onde o bebê inicial se embebe e pode dizer “eu sou”, para que mais uma vez se confirme o efeito ideológico elementar, onde o indivíduo se sabe sujeito desde sempre. Será que Althusser estaria dizendo, no centro, ou antes, ou por detrás de seu enunciado (aludido acima) que indivíduo se pareia com carne? Ou no esquema orlandiano que apresenta os dois passos da subjetivação, apresentado em Discurso e texto, o termo bio de “bio-psico” se poderia considerar no mesmo sentido de carne? Para isso, reproduzi seu esquema de individualização do “indivíduo em primeiro grau” (bio-psico) em “indivíduo em segundo grau” (social).
     Neste ponto, antes de continuar, devo informar sobre um incômodo que me acompanhou por todo o trabalho. A presença de traços de biologismo, desenvolvimentismo, psicologismo e idealismo, em quase todas as contribuições teóricas aqui trazidas para dialogar. Registre-se que em Pêcheux e Orlandi, em sua evocação de uma teoria do discurso, a biologia e seus avatares (desenvolvimento, psicologia) são recusados. Ao trazer Winnicott para descrever a passagem da carne ao corpo-discurso eu sabia de um certo biologismo em sua obra, mas de uma ordem que devo definir por “capacidade de existir”, em seus próprios termos. A “preocupação materna primária” - “episódio esquizóide, onde um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente” se torna um “ambiente especializado” produzindo uma certa biologia psicanalítica, por assim dizer. Quem se adapta é o ambiente e não o organismo. E se trata de uma adaptação invisível para a mãe – a mãe como ambiente, pois esta se encontra em um “adoecimento” (que reúne clivagem e delírio) acessando sua experiência de vivências como bebê. Não há, numa mãe boa o suficiente, um “eu sou” integrado que possa resistir ao episódio esquizóide. O ambiente é ela (a mãe) e não está lá fora e sim junto com o bebê, formando um – precariamente é verdade, mas nada que não possa levar as experiências acima citadas a formar um inconsciente – um sujeito.
     Nos parece vantajoso se pensar o ambiente/ideologia como um com o indivíduo; ambiente que está apagado pela inscrição materna desde dentro, mas que funciona desde fora. Também parece que isso justifica a ordem do discurso surgir sem ter origem – ser eterna, portanto. Apaga-se uma dualidade entre ser e existir e disso surge um sujeito já identificado com o “ambiente”, mas não adaptado, e sim, atuante.
     Nesse caso, “ideologia” deve ser entendida como uma tela de sustentação que não possui as qualidades de externo ou interno, mas que permite ao indivíduo se tornar sujeito, sem que para isso ela tenha de se comportar como um outro separado, frente ao qual tal assujeitamento se dá, ou como um indivíduo se adaptando à ideologia.
     Há ainda, de se considerar mais de perto o sentido de corpo neste ultrapassamento. Se tem algum valor o que vamos levantando, só poderíamos falar em sujeito como a relação entre ideologia e carne. Contraindo mais a fórmula, podemos entender sujeito como relação. Entretanto, essa relação acontecida a partir da carne que se torna discurso/interpretação, impõe um espaço entre a carne e o sujeito – o corpo. Com esse raciocínio passamos o corpo para uma instância de entremeio – nem carne, nem sujeito, ao mesmo tempo carne e sujeito, sem o qual nada acontece, nem no “exterior”, nem no “interior”.
     Num quarto momento voltei-me novamente para Orlandi; desta vez para tratar de textos onde a autora propõe formulações sobre a escrita no corpo, um corpo que pareceu apropriado a uma teoria do discurso, por sua plástica simbólica, sua inscrição no urbano e de novo seu atamento ao território da cidade. Pensei, com todas as dificuldades para se circunscrever meu objeto, que o estudo da tatuagem como uma materialidade discursiva que se dá diretamente no percebível do sujeito (seu corpo e sua pele), tem as propriedades primeiras, para se tornar um exemplo tanto da carne participando da evocação do sujeito a partir do sentido, quanto do sujeito sendo desenhado nos contornos da carne.
     Devo encerrar esta apresentação me contentando com o fato de ter captado um certo sentido de corpo já existente para a AD, mas, também, de ter levado adiante essa prospecção ao ponto deste sentido ter se tornado, diria, um pouco mais visível. Contornos apenas, é verdade. Com certeza a passagem da carne ao corpo; ou a discursivização da carne em corpo, como tentei sensibilizar, só fez problematizar o corpo ainda mais. Soube, com a construção do texto, que o conceito de corpo no interior dos vários nichos de saber se apresenta multívoco, ambíguo e deslocando-se constantemente, inclusive retomando conceitos total ou parcialmente abandonados e mesmo conceitos contrários convivendo em uma mesma sociedade de pensamento. Isso tornou muito difícil a saturação do problema, no momento em que enunciamos nosso objeto de estudos. Serei direto: o corpo não é essa evidência que nossos olhos ou certas mídias nos impõem. Nem a carne é tão evidente, quanto algumas ciências nos fazem crer. E porque se apresenta insaturável, aquela passagem carne-corpo nos coloca problemas que só fazem enriquecer o tema.
     Sem uma materialidade linguística escolhida para mostrar a passagem da carne ao corpo, me auxiliei de autores, alguns bem caros à AD, que fizeram sozinhos grande parte do trabalho. Se falhei em mostrar aquela passagem, penso ter chegado, com esses autores, a uma carne teórica, condição para pensar o corpo discursivo.
     Outra báscula desse nosso estudo é que ao tentar visualizar a passagem da carne ao corpo – o corpo como o produto da discursivização da carne – parece que acabei por entrar num viés onde o corpo é condição sine qua non para a constituição do sujeito, ou mais exatamente, que a discursivização da carne constrói o sujeito. Não me pareceu, com isso que algo se perdeu; até mesmo entendo que algo se fixou daquilo que Orlandi já trazia de um corpo, que tal como a cidade, deve ser entendido pelo discurso. Se a báscula se impôs, talvez algo deva ser dito desta composição corpo/sujeito, onde a barra pode ser a representação da situação sui generis de um sujeito cuja aparição só se dá pela corporalidade – resultado da discursivização da carne infans.
     Outra dificuldade da proposta são aqueles fantasmas de um certo biologismo e desenvolvimentismo, espectros de psicologismo, que desde Pêcheux se vem conjurando no correr da constituição da Análise do Discurso. É claro que isso não justificava eu não tentar me desvencilhar ainda mais destes percalços em outros estudos. Winnicott com a inversão da adaptação ao meio, onde o meio é o bebê e não o mundo, onde a carne é que força o mundo a atendê-la me ajudou no primeiro lance.
     Ao fechar esse percurso, estou convicto, até por causa do quanto parcial acabou se dando a abordagem aos sentidos de carne e corpo, naquela passagem que me tomou a atenção, que o assunto pode e deve ser enfrentado com outros autores e confirmando a presença de um Lacan para entender-se melhor o que nos propõe Orlandi, sobre corpo, em seu livro Cidade dos sentidos, em seu artigo sobre a inscrição no corpo e no artigo sobre a textualização do corpo. Lacan pode ser evocado no seu dizer: a letra é a inscrição do significante no corpo (Escritos, 1998).
     Outro ponto: Ao propor o termo composto corpo-discurso (como um corpo discursivo ou corpo do discurso), ainda no começo da empreita, não sabia do fardo a ser transportado, quando se abre essa caixa preta das palavras. Mas que outro termo levantar para dar conta desse corpo estranho ao sujeito e caro ao Estado e Ideologia, onde está investido o capital social, tanto na forma do custo econômico de sua manutenção, mas também no custo moral de sua territorialização? Pode-se avançar nesta trilha onde o corpo é um investimento caro ao Estado, tanto na ordem do político, quanto na ordem do econômico, e isso já se entrevê no trabalho, quando falamos o que pensamos ser o estatuto do corpo para que tenha essa propriedade de estar investido na forma de capital social, capital concreto (os preços e custos de sua manutenção) e capital simbólico (cultural).
     Ainda me pergunto se ao colocar, em um segundo momento, a barra entre sujeito e corpo (corpo/sujeito) fiz algum progresso em entender as relações discursivas do sujeito com seu corpo; ao falar de tatuagem, tendo Orlandi como guia, comecei algo que acredito deve-se continuar, se se quiser ir adiante com os sentidos de sujeito cujo corpo é subjetividade. Inclusive me indago sobre uma certa aproximação entre a já consagrada noção de corpo pulsional e a de um corpo discursivo; já sei que um não recobre ou verga o outro. Mas não ouso saber as consequências dessa diversão (divergência) de sentidos. Pode-se-ia responsabilizar essa condição de corpo/sujeito pelo sentimento do sujeito saber-se, sentir-se, entender-se como sempre-aí? Ou seja, sua condição de ser sujeito-em-um-corpo é que lhe impõe o sentimento de existir desde sempre, prescindindo de prova mental disso, sendo um dos efeitos mais fundantes da ideologia?
     Projeto continuar com o entendimento do que chamei por discursivização da carne e me parece necessário desenvolver a idéia de um ambiente que se adapta ao indivíduo, aproximando tudo isso dos esquecimentos pechêuxianos, a identificação com uma formação discursiva, e incluir o corpo vivo (a carne) no processo de assujeitamento. Talvez eu devesse dizer que minha estranheza em perceber um corpo cuja materialidade é discurso, me faz propor que o corpo é estruturado como uma linguagem, embora não saiba das consequências teóricas ou do peso da afirmação ou mesmo se me descubro chovendo no molhado. Com tudo isso no espírito, iniciei estudos em Foucault, Agamben e outros, prospectando os procedimentos de controle social a partir do corpo.
     A todos obrigado, mais uma vez, esperando que essa breve apresentação tenha localizado minimamente nosso objeto de estudo facilitando questões, críticas e sugestões àqueles que não leram a dissertação*” .
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*Disponível em www.levileonel.com.br ainda sem uma correção ortográfica final. Título: O discurso encarnado: ou passagem da carne ao corpo-discurso.

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