
Mas, Sartre sabia, a julgar por outras personagens em contraponto a Delarue, inclusive personagens de outras obras, que Mathieu encarnava a liquefação gigantesca, irrevogável e inexorável que acometeu o sujeito do começo do século vinte, mas já anunciada desde os primórdios da Idade Moderna, em Descartes e pelos poetas europeus. Foi um rápido derretimento de apenas quatro séculos, que desmilinguiu o osso do homem - o sentimento de que era um ser uno, causa de si mesmo e centro do mundo. A criação de Sartre nada tinha de espetacular, heróico ou surpreendente; era apenas um amontoado cujo nexo consistia em duas sensações bastante singulares: uma eterna espera do momento em que seria livre, uma disponibilidade para esse ato teatral, quase inumano; e a sensação de que sua vida estava em outra paragem, que não se dera à luz de modo cabal. Esse nascimento o colocaria livre, mas deveria ser por um ato de vontade. Um outro luxo burguês, como disse o filósofo, a propósito da contemplação, logo no início de "O existencialismo é um humanismo".
Mas o desalojamento do sujeito do centro de si mesmo já se anunciava na crítica copernicana à concepção de Cosmos afirmada por Aristóteles (384-322 a.C) e Ptolomeu (100-170). Estes tinham como certo a dualidade platônica constituída de dois domínios ou realidades. Uma realidade eterna e plena (o domínio celeste); e a outra constituída de eterno nascer e morrer, formada pelos elementos Terra, Fogo, Ar, Água, em constante interação, gerando matérias ou mundos uniformes e não uniformes, realidades que se relacionam, mas com essências radicalmente diferentes: uma é divina; a outra é humana. A divina é eterna, etérica, governando o Sol, a Lua e os planetas em geral. A humana é sublunar, governada, perecível, mortal.
Entretanto, na medula do homem estava a essência divina, segundo cria o homem platônico-aristotélico. Além de ser a verdadeira natureza do homem ela podia chamar o homem a se auto-criar, causar-se a si mesmo. Nas palavras de Platão, a fazer uma auto-parturição (um parto de si mesmo). Contrariamente o cristão também possui uma centelha divina, que é impotente para causar a si mesmo, talvez o ponto onde começa seu afastamento do platonismo/aristotelismo.
Pois é exatamente esse homem possuidor de uma essência divina, que combinava com o sistema cósmico de Aristóteles; um homem cujo centro ressoava com a dualidade celeste/sublunar. Conforme esse homem vai sendo descentrado, ressoando com o descentramento da Terra, há uma banalização de sua vida, uma superfluidade da existência. O homem não possui centro e não pode causar-se a si mesmo. Isso não quer dizer que aceitaríamos isso de modo passivo.
No passado o homem fora aquele para quem o mundo existia e também por meio de quem a realidade se erguia. Agora, principalmente a partir de Copérnico, a Terra sai do centro do universo e o homem começa a ser sujeito - um ser cujo centro não é ele próprio. Disso a psicanálise e o existencialismo vão tratar por longas décadas. A primeira tenta salvar o sujeito dizendo que ele é seu inconsciente. A segunda é mais cruel: o nada é o centro do sujeito.
O poeta Sá de Miranda (1481-1558) já tão cedo advinhava ou estatuía a nova condição do homem moderno - um homem em conflito com seu próprio centro. Em desavença consigo próprio; mal vizinho de suas próprias fronteiras; sem poder viver em seus domínios; em uma guerra civil em suas próprias fronteiras. Irmão contra irmão, filhos contra pais, como bem exemplifica um dos versos onde é inimigo de si mesmo. O poema, uma joia da literatura mundial, é um esgar de angústia, própria daqueles que não mais podem deter o estado de sítio em que o homem moderno colocou suas próprias praças internas. O poema diz melhor:
COMIGO ME DESAVIM
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
(Sá de Miranda)
Mathieu Delarue tinha saudades do tempo em que o homem podia dizer-se causa de si mesmo, centro do mundo, possuidor de essência verdadeira. Esse tempo passou. Hoje, dizer isso para si mesmo é uma extravagância burguesa, um luxo. E o luxo é sempre extravagante.
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