quarta-feira, dezembro 11

Only Jesus Saves, a gramática do sexo e a faixa amarela!

Sé. ..
08:15 - 11/12/13
     Ouço uma linda voz masculina cantando algo que inicialmente se confunde com o rilhar do aço do metrô; mas sinto que seu timbre habita entre suave e profundo, com um curioso sotaque estrangeiro. Vem detrás e do meio da multidão que intenta entrar no vagão usando cotovelos e ombros. O dono da voz, como todos nós ali, ajoelha-se na liturgia da opressão horizontal da qual nos ocupamos cotidianamente - digamos o trem nosso de cada dia.
     Na cidade, trens, ônibus e metrôs democratizam a agressão e emparelham homens e mulheres na função de chegar a um destino. Por exemplo, a tradicional fragilidade feminina - o sexo frágil, assim dito - empurra, ombreia, dá joelhaços e pede desculpas como qualquer outro ser vivo movido a testosterona. Não há diferença entre aqueles seres suaves, de batom e brincos brilhantes, vestindo jeans entrando no rego de tão justos, e aqueles outros seres, um pouco mais rústicos, brincos brilhantes e jeans esmagando os excedentes corporais. Quanto ao batom receio não ter visto nenhum portador de testosterona usando-o. Creio que se trata da hora. Talvez a noite concedessem para uma corzinha a mais nos lábios.
     A voz chega mais perto. Não consigo entrar, nem sequer avançar no campo de batalha. Pois se trata de um. Onde não viceja fraqueza. Senhorinhas septuagenárias metem socos e bolsadas para descolar um vácuo de trinta centímetros quadrados onde se instalam ofegando. Os pulmões devem ter se encavalado sobre o coraçãozinho, para caberem em tão pequeno espaço. Impropérios grassam pelo vagão, quase sempre à meia-boca. Uma voz metálica insiste: "Fique atrás da faixa amarela! Ela é a sua segurança! Evite acidentes!"      É claro que se a gente ficar atrás da propalada faixa nunca entraremos no danado do trem. Sempre tem uma dúzia de espertinhos que entra exatamente pelo espaço deixado pelos obedientes.
Agora ouço o canto nitidamente. "Only Jesus Saves!", depois repetido "Somente Jesus salva!" Repetido em duas outras línguas que fiz de conta serem o japonês e o árabe - o primeiro por causa da memória de meu professor de judô e o segundo por causa da Cris, que me martela os ouvidos com um 'inshalah!!', ou algo assim, quando me vê, depois de muito tempo sem visita-la. Os cotovelos da voz devem ferir mais que os meus, porque, de fato, ele já está há um passo de mim, enquanto avancei só três centímetros.
     Há quem não está presente, apesar de vermos seus corpos. Certo casal nem presta atenção à barafunda de gente. Ele, bem maior, cuja testa e nariz se alinham sem aquela curva que segura nossos óculos; ela, pequena e bela, rosto brilhando de prazer. Ele a pega com uma das manoplas na pequena nuca e com o polegar gigante acaricia sua orelha esquerda estreitando-a na barriga. A outra manopla aperta docemente seu quadril acima do cóccix. É a gramática do amor sexual resistindo ao empastelamento metropolitano.
     Levo um empurrão enquanto ouço na nuca a voz gospel cantando aquela ladainha agradável. O empurrão me coloca, de um lance, no vagão. Agradeço a ajuda. Uma mulher jovem liga a câmera invertida de seu celular e investiga diligentemente as sobrancelhas penteando-as com as pontas do indicador e médio, passa algo que lhe dá brilho nos lábios e joga, com golpes de cabeça, os belos e longos cabelos para os lados e para trás, uma, duas, três vezes. Na terceira consegue desenrosca-los da mochila de um dos agonistas da cena. Com isso faz com que eles despenteiem e pareçam naturais. Gostei do efeito.
     Atrás dela e entre três ou quatro ombros vejo um japonês de mais de cinquenta anos, um dos braços para o alto em cuja mão segura uma sacola de pano azul, que acredito estar recheada de isopor de tão leve que parece. Em silêncio mostra, a cada dois ou três segundos, um dos lados dela. Em um lado está escrito "somente Jesus salva", mais abaixo letras em japonês ou chines, do outro lado "only Jesus saves", em baixo letras em árabe ou outra escrita parecida.
     Parece que sou portador de síndrome persecutória, mas tenho certeza que ele me escolheu entre todos e me olha fixamente através das grossas lentes de seus óculos. Passa a virar a sacola, naquele mesmo ritmo, mas agora para me salvar a alma. Ficamos assim, hipnotizados um pelo outro, por alguns três minutos.
     A porta se abre na Sé. Ele sai cantando lindamente. Agora consigo ver que suas roupas estão marcadas com as mesmas mensagens. Ele sobe as escadas rolantes para a Praça da Sé.
     Eu vou para o Brás...


Um comentário:

  1. Sei que há uma outra voz linda, como a do cantor. Uma voz que entoa outras vozes, uma voz que canta em contos, encantos e encontros. Uma voz que escreve e que desliza-se em letras que ora sobe ou desce as escadas do metrô. Quanta graça essa voz descreve, como o metrô fica bonito de se ver, só porque a voz desse querido escritor não vive de ensaios, ele encena no "papel virtual" as cenas que seus olhos descortinam e desvenda à escuridão de outros olhos: os distantes, os distraídos, os desencantados, os solitários, e outros mais , um teatro da vida real em nuances cheios de poesia. Seria um desperdício guardar tantas cenas em tão bem escritas palavras. Bravo!

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