Uma torrente de jeans, camisetas e tênis jorra apressada para fora do metrô. Cada uma das partes desta golfada de vestimentas casuais tem o seríssimo intuito de chegar em algum lugar e se escoa à minha frente sem se ocuparem com minha presença - nada significo, anônimo e de jeans, camiseta e tênis também! Noto, de vez em quando, que uma vestimenta destoa da maioria, tanto nelas quanto neles. Nelas, os sapatos de salto alto não pedem licença e avançam resolutamente no coração da horda de jeans, batendo secamente contra o piso indiferente, num trottoir indiscreto. Neles, costumes prêt à porter, meio mal cortados, em certo desalinho e escolhidos fora da numeração, sobre camisas amarradas por gravatas baratas, se deixam levar pelo fluxo que os empurra para o gargalo das catracas.
Apurando os ouvidos e olhos descubro que estes peixes fora dágua, estão indo a um templo. Não aqueles dos padres, pastores ou outros assentados da espiritualidade. Um outro templo em que togados dividem espaço com estes engravatados e mulheres empertigadas no alto de seus sapatos. Lá se fala da religião do direito e o deus é a lei. O incenso que lá queima é a escrita, os apensos dos processos; o sino que lá retina é a sentença que salta em firulas, elegantemente, da boca do magistrado em seu mandamus, o poder de mandar que se aplique o dispositivo divino.
Embora eu não seja a criação de Arthur Conan Doyle, sei, por dedução, olhando os volumes de papéis em seus colos, com umas capas esquisitas; ou de ouvir perguntas do tipo "qual a saída para o forum" ou "quero ir ao forum", feitas por alguns jeans-camiseta-tênis, que estamos pertos de um destes amados e temidos templos. Forum significou praça pública entre os romanos - um foro, daí o atual "fora" em contraposição a "dentro". Por um caprichoso deslize de sentido, o que era forum virou dentro; uma barafunda de significados! Por uma luta com as palavras o forum é um dentro que é público, mas proibido para o público. Só entra lá réus, acusadores, defensores, juizes, policiais e um ou outro interessado. Digo isso, porque parece que ninguém tem vontade de ir a esta praça pública chamada Forum assim, assim, do tipo: "hoje acordei com vontade de ir ao forum" e coloca na mochila um sanduíche, refrigerante e uma necessaire com os itens básicos de higiene, uma toalha e vai fazer um piquenique no forum - que é dentro e não é público. E se fosse, não parece que queremos entrar neste foro. Aliás, piquenique de domingo no forum nem pensar!
Me perco em pensamentos mergulhado em uma miríade de pequenos detalhes que separam os ternos-com-gravata dos jeans. Os primeiros obrigam seus portadores a se alinharem, manterem postura ereta e semblante mais sério que a maioria. Seu andar é um exercício de poder, de preocupação, de esmerada consciência de si. Os segundos são mais relaxados, cordiais talvez, com andar quase indolente e tranquilo. É claro que se eu olhar com mais atenção ou conversar por cinco minutos com qualquer deles, gravatas e jeans, me surpreenderei com vazios d'alma, amor e medo. E nisto vejo a trágica beleza do humano agarrados aos seus hábitos - jeans ou gravatas - sobrevivendo à dura realidade, fazendo com todo amor e detalhes o papel que lhes escolheram viver.
Agora tenho que levar meus jeans-camiseta-tênis ao seu destino...
Ahhhhhhh !que delícia esse texto. Embaralhar-me pelas letras correndo os olhos ao sabor de uma narrativa tão gostosa e poética ... ir correndo sim para ver se alcanço o dono de tamanha inspiração. Ufa!!!! Para um dia sem destino, perdida em casa numa tarde assim , nesse carnaval sem fantasias... esse teu texto me convida a sair daqui desse dentro e estar no metrô ao teu lado espiando esse corre-corre. Obrigada pela viagem.
ResponderExcluirOs textos do Levi agora vêm com bônus duplo: o texto propriamente dito e os comentários da Prof. Lígia que são muito delicados e poéticos.
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