terça-feira, abril 7

Em caso de emergência...!

Metrô Santa Cruz: 07.04.15 - 08:05h
Escorrego para dentro do trem, resistindo a uma vaga de gente que sai. Fico feliz de encontrar um lugar que não preciso ficar olhando para o queixo ou o pescoço de um colega ou uma colega de aperto cidadão. É meu lugar preferido, já que andar de metrô é minha realidade, um pouco escolhida, outro tanto imposta. Acho que contribuo com o planeta se usar este transporte um pouco e outro pouco as pernas e solas dos sapatos. Considero sempre a possibilidade da magrela, ou bike seu nome inglês. Além do quê, é insano usar carro para se deslocar por três ou quatro quilômetros - se tenho tempo, não tenho dúvidas, opto pelo solado do sapato. Há de se prevenir com um guarda chuva e com um bom cálculo das distâncias. Se vou ter que andar mais de uma hora, vou de ônibus e metrô.
Igreja de Nossa Senhora da Saúde
Bem, como dizia, estou ali, no meu lugar preferido, bem em frente àquele espaço vazio entre a porta e as barras de apoio. Penso que serão apenas quinze minutos olhando para as letras gravadas por ali. Olho-as com bastante atenção. Dizem, que nas emergências, devo quebrar uma estrutura de plástico e puxar uma argola. Fiquei pensando em quebrar uma com um karatê e treinar o puxamento da tal argola. Afinal, por que não treinam a gente nisso?! Não tenho certeza de que consigo quebrar com um golpe de mão a onipresente redoma de plástico e que ao puxar a tal argola não ficarei com um fio na mão e todos olhando para mim dizendo: você usou de demasiada violência com a inocente argola! Agora vamos todos morrer por causa de sua incompetência para avaliar a situação!
Não consigo imaginar porque não fazem treinamento de quebrar o protetor e puxar argolas do metrô - aqueles treinamentos de bombeiros, sabem? Eu iria as seis da manhã numa meia dúzia de domingos - inclusive nos feriados - só para aprender a puxar argolas. Ficaria para sempre treinado no dito ofício e me sentiria muito seguro! Poderia anunciar a todos, em alto tom e boa dicção, quando entrasse nos metrôs: "podem teclar a vontade no whatsapp ou dormitar babando e tranquilos, aqui vos fala um expert em puxar argolas do metrô! Sua vida está a salvo!" Tenho certeza que cem por cento dos cidadãos querem fazer esse treino, desde que seja em suas horas vagas; penso mesmo que gostariam de treinar no dia das mães, um domingão, ao amanhecer, aprendendo a salvar vidas em homenagem àquelas que nos deram a vida. Ia longe com o pensamento quando o impensável aconteceu!
Uma garota, de seus 16 anos, escorrega para dentro do espaço entre eu e a parede onde está a tal argola. Sem nenhum constrangimento fica a vinte e três centímetros do meu nariz. Tem mais ou menos a mesma altura que eu e só vejo sua fronte com cabelos esticados a máquina, porque mal se posiciona, começa a teclar freneticamente no celular. Com o aperto das pessoas a volta, tenho duas opções. Olhar para as propagandas das paredes, ler e reler as instruções de como puxar a argola ou olhar para a menina. Opto pela segunda. Ela nunca saberia que estou olhando-a, detalhadamente, centímetro por centímetro. Olho-a com uma lupa...
Das orelhas descem fios brancos de plástico, que desaparecem por dentro da roupa; são orelhas morenas e belas, bem recortadas, destas que eu desenhava para a editora Ática num livro que ensinava a desenhar. Eu diria que suas orelhas são um modelo de orelhas. Os cabelos lisos a força, são escuros e poderosos, tocando-lhe os ombros com decisão. Brilham lindamente e são penteados com os dedos a cada 32 segundos. Contei para ter certeza.
É uma destas jovens muito belas, de lábios exuberantes e sobrancelhas bem desenhadas, feitas de uma mistura bem amalgamada de raças de vários continentes. Olhos de castanhos bem escuros, em cujo centro pululam imagens do whatsapp e facebook. É tão jovem que não vejo no rosto as marcas das refregas com a vida, com os desejos e os amores vividos - é lisa como uma porcelana morena. Nesta pele virginal, em alguns anos, poderemos ver os desenhos de suas caminhadas pelo mapa mundi de seu viver; mas, por ora, é puro viço de flor recém florescida. Não que não se perceba certa ansiedade com o aluvião de mensagens que chegam em suas mãos. Já estamos há alguns minutos nos "encarando" e não ergue os olhos da telinha alucinante. Vejo algum sorriso nascer de tempos em tempos nos cantos da boca e até mesmo um quase riso, que mostrou uma bela carreira de dentes. Pensei nos meus dentes empilhados e tortos e imaginei o quanto gosto que seja tão personalizados. Meus dentes são customizados. Nada da pasteurização dentária dos aparelhos de desentortar bocas. Ela tecla mais e mais, sem se incomodar com nossos 23 centímetros de distância, entre meu nariz e sua testa.
Tenho um pensamento incontrolável. Mostrar que também sei teclar freneticamente para competir com ela. Afinal meus mais de 40 anos a mais não petrificaram as juntas dos polegares (apesar de doer a beça) e posso provar numa competição, ali mesmo! Podíamos chamar o jovem com seis piercings na sobrancelha esquerda e tatuagem de dragão no pescoço, para ser nosso árbitro. Acho que é imparcial e pode nos ajudar como juiz. Se eu ganhar ela terá que me ensinar como postar no instagram; se ela ganhar, ensino-lhe a ler Dom Quixote de La Mancha. Bem, talvez ela não goste de Dom quixote. Quem sabe Cyrano de Bergerac... Bem, o jovem também tecla feito louco no seu celular e não presta atenção em nós. Não vou conseguir convencê-lo a nos ajudar na competição!
Uma voz anuncia que a estação Sé será a próxima e que devemos descer pelo lado esquerdo do trem. Ela liga a câmera frontal e se olha satisfeita com o próprio rosto. Penteia os cabelos com a mão aberta e dedos separados imitando um pente; ajeita a bolsa no ombro. A porta se abre e ela sai com toda a pressa da juventude. Pude voltar aos meus pensamentos. Será que se eu der uma tapona de lado consigo quebrar a caixa plástica com mais facilidade?  

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