Hipócrates (460-370 a. C.), o
pai da medicina, já trabalhava com o termo “melancolia” –
“mélas+kholé” – bile negra e, mais tarde, Aristóteles
(384-322 a. C.), pensou-a como um estado d’alma, temperamento muito
singular que propicia o filosofar. O filósofo seria dominado por
essa bile, o que o sensibiliza para o contato com os deuses, algo
como uma possessão que viria de fora e que lhe permitiria ter um
contato privilegiado com as coisas reais, verdadeiras. Como seu
estado biliar o torna vazio, desapossado de si, ele pode ser apossado
pelos deuses e enxergar mais lucidamente a realidade.Mais tarde, com a ascensão do
cristianismo, a melancolia continuaria a ser importante em seu papel
de aprofundamento de certa sabedoria, mas não sendo resultado de um
apossamento dos deuses; pelo contrário, por causa do homem
separar-se de Deus. Essa tristeza melancólica adviria desse
afastamento; esse estado de errância, levaria a um falso saber, bem
diferente daquele saber do filósofo grego. Havia ainda, um estado
mais comprometedor que tinha por nome “acídia”, que Tomás de
Aquino identificou como “dissipação do espírito”, um tédio,
“falta de cuidado” com os bens da alma, que acabava em apatia,
preguiça e desleixo com as coisas do espírito. A melancolia
aprofundava experiências pessoais, ainda que com um fundo de
tristeza, mas a acídia poderia levar um monastério a ser destruído,
porque era contagiosa; os monges poderiam se contaminar com esse
deletério estado de doença da alma. Apenas no século 19 é que
surgiria o termo “depressão”, como um sintoma menor, submetida a
um sintoma bem mais importante que era a “mania”; até então, o
termo se referia a bradicardia (baixa taxa de batimento cardíaco), a
depressão cardíaca.
Pinel, no começo do século
19, ressalta o termo “alienado”, para designar o estado de mania,
afecção ligada aos afetos (emoções, humor, sentimento); percebe
que há uma regularidade clínica em que a mania era seguida de
rebaixamento dos afetos – depois da mania, viria a depressão. Essa
situação subalterna da depressão à mania, continuou pelas
primeiras décadas do século 20. Por exemplo, Freud a considerava
como “inibição”, uma dificuldade para se engajar na vida;
sintoma de não investimento de vida no mundo, por conseguinte, nas
relações que o compõe. Uma outra questão que permeava as afecções
do afeto – e com o correr do tempo, a depressão se torna a
principal – é se haveria componentes químicos cerebrais que a
determinariam; pergunta que se faz ainda hoje, em todos os
“transtornos mentais” elencados nos manuais de medicina
psiquiátrica.
No século 18, Adam Smith, o
pai do liberalismo e da economia, afirmara que o egoísmo é
fundamental para o crescimento econômico – quanto mais egoísmo
individual, maior eficiência coletiva – indo contra a
solidariedade, embatendo-se com o cristianismo, que poderia
empobrecer os povos. Essa proposta será importante para produzir a
futura depressão.
Entre 1900 e 1939 muita coisa
aconteceu tanto na cultura, quanto na economia: de 1914-18 explode a
primeira grande guerra; em 1916, é inaugurado, em Zurique, o
Dadaísmo; em 1917, acontece a revolução Russa; em 1918-20 eclode a
gripe espanhola; em 1920-24, nasce em Paris o surrealismo; Freud, no
ano de 1929, escreve “Mal-estar na civilização”. O marxismo se
consolida como uma visão alternativa de economia.
Em 1929, com a quebra da bolsa
de Nova Iorque, pela primeira vez se pode fazer uma relação direta
entre os estados depressivos e eventos do mundo; até então parecia
mera ilação intelectual, sem dados concretos. Não à toa surgiu
termos como “grande depressão”, “crise de 29”, “depressão
de 29”, “crash”, “crack”, devido ao tamanho da movimentação
social em decorrência da imensa crise financeira americana que
arrastou outros países. Se seguiram aumento na média de suicídios,
adoecimento mental inusitado de uma parte importante da população
americana, especialmente uma crise emocional que misturava
impotência, desconfiança no
futuro e em si mesmo, desalento e outros sintomas que seriam o
fundo da futura depressão, que hoje está nos manuais médicos e
psicológicos. Além disso, há uma crise de confiança
com o
passado; há como que um rompimento com o passado e o advento
de uma nova modernidade não cartesiana.
Neste mesmo período, a
psicanálise está se estruturando como uma teoria e prática clínica
que visa o enfrentamento das vicissitudes psíquica do sujeito que
vai se construindo, tanto como criador como criado pelos
acontecimentos da nova modernidade. A psicanálise participa disso,
construindo e sendo construída como prática clínica deste novo
homem. Um homem descentrado de si mesmo por estar num mundo que não
é mais o centro do universo, cujo Eu não tem como centro a
consciência e sim o inconsciente. E, com Marx, o sujeito passa ser
“sujeito da história” (assujeitado à história).
Com Darwin
deixamos de ser sujeitos da religião para sermos sujeitos da
natureza.
Com estes inúmeros golpes em
nosso narciso – o sentimento de ser uno, controlador e dono de
nossa própria consciência – a melancolia se instaura em uma
parcela do mundo. Não surpreende que ela seja aquela que pode pensar,
fazer arte, literatura, filosofia. É neste entremeado de vivências
que a sociedade vai parindo seu lúgubre corpo de sintomas - mais exatamente a depressão - que vai se instaurando como o sintoma do
século.
Durante os anos 70 do século
passado, surge uma nova forma de governar as almas, uma nova razão
do mundo – o neoliberalismo, que mistura gestão (criação) de uma
nova subjetividade, com a gestão (gerenciamento) desta
subjetividade. E, em cascata, veremos, por exemplo, em 1973, as
noções psicanalíticas serem expurgadas da psiquiatria (DSM) que a
adotara, até então, com amplas vantagens de ampliação de sua
diagnose. Pinochet instaura, no Chile, com os Chicago Boys, uma nova
forma de trabalho, de economia e de governo. A guerra fria causa
insegurança e desconfiança no futuro pela polarização que impõe
e iminente conflito bélico no ar. Surge a ideia de “desordem”
mental; passa a ser corrente a noção de que se deve corrigir o viés
cognitivo para parar a depressão. Em seguida, o “conflito”, na
depressão – posição da psicanálise – é destituído de sua
posição central na psique, e se passa a uma exposição descritiva
de uma doença. Ela passa a ser, até recentemente, o fundo de todos
os outros transtornos. Uma narrativa que permeia todas as desordens
mentais.
Há uma ascensão enorme dos
remédios psiquiátricos, porque há a certeza de que a depressão é
uma doença crônica, tal como o diabetes e pressão alta, com
marcadores biológicos que podem ser interpretados e
operacionalizados. Em 1988, surge o Prozac, a pílula da felicidade.
Em 2008 a depressão deixa de ser a liga entre sintomas e
passa a ser o principal sintoma do humano. Também, por essa
data surgem os primeiros estudos, bem realizados, que demonstram o
prejuízo das funções da memória, atenção, foco e spam, causados
pelo uso contínuo dos antidepressivos.
O desviver da depressão –
alguns apontamentos sobre o estado atual da noção de depressão
- Neuropsicologia e
psicanálise concordam que há alguns marcadores biológicos que são
a base da depressão: neurotróficos que regulam a atividade
sináptica e plasticidade; algumas alterações nestas vias se
relacionam com a depressão. Citocinas pós-inflamatórias
estão relacionadas à cronicidade e gravidade da doença. Alterações
do ciclo circadiano alterado
por excesso de luzes artificiais. Excesso de cortisol e adrenalina
causado por mau estresse.
- Quem é mais atacado pela
depressão? Mulheres jovens consumidoras de redes sociais em geral e
o instagram em particular. É um campo da existência, completamente
exposto à filtragem, corte e edição da própria vida, buscando a
melhor versão de si e com isso vai colonizando o desejo até
extinguir sua força. Como desejar custa energia, basta editá-lo.
- Depressão como resposta ao
fracasso em adaptar-se ao modelo de sucesso da sociedade contemporânea – o eu-empresa, ganhadores versus perdedores,
meritocracia, homem autoconstruído (self made man); não há
sociedade, apenas indivíduos; a solteirice como ideal de vida etc.
- Como resultado de uma
fixação na relação idealizada (perfeita) com a mãe, que tem como
função fazer a criança se sentir plena; o adulto não abandona
esse ideal, que é afastado para partes do eu que estão
inconscientes. Quando fracassa nesse ideal de perfeição que o mundo
lhe deve, deprime, ao invés de buscar uma alternativa plausível
para seus desejos.
- Depressão como perda do
desejo; desvitalização do eu;
- Depressão como um
equilíbrio entre amor e ódio
ao mesmo objeto de desejo;
- Depressão como o
represamento da raiva; raiva que não é permitida sentir;
Remédios para a depressão
- O mais eficiente deles é
constituído de boas palavras; somos sujeitos da linguagem e as
palavras são nossos tecidos vivos; falar e ser escutado é muita
coisa na depressão;
- Relações sociais,
familiares, amizades sólidas, vivências de comunalidades; vida
laboral digna;
- Vida cultural variada;
- Simbolizar as perdas, se
tornando consciente de que se é feito de relações e elas são
conflituosas, não perfeitas;
- Em último caso, tomar
antidepressivos, especialmente os multimodais. Para isso, o deprimido deve se consultar com um médico psiquiatra;
Assim como a psiquiatria
recuou de sua posição medicamentosa (há uma menção no manual
atual dizendo que os pacientes merecem saber que não há marcadores
que definem a depressão), a psicanálise volta a reforçar suas fichas
na relação terapeuta-paciente nesta empreitada de levar a pessoa a
uma vida digna.
Palestra
proferida no Barracão da Tomiko, em Caldas - MG – 22.06.2024