terça-feira, maio 19

A VIDA NOS BOSQUES



A VIDA NOS BOSQUES

SÁBADO, 16 DE MAIO DE 2009

Walden

Numa manhã nevoenta e fria da primavera de 1845, na encosta do bosque de pinheiros que ladeava o lago Walden, em Concord, Massachusetts, nos EUA, Thoreau iniciou a aventura que iria marcar gerações e gerações, por mais de século e meio, ecoando até nossos dias. Munido de um machado e ferramentas emprestadas construiu sua casa em uma colina de face para o lago cujas águas se mantinham congeladas por grande parte da estação. Testemunha silenciosa do surgimento da modesta moradia na encosta de uma sua colina, o bosque recuperava-se da letargia de inverno sob o som seco das marteladas que juntavam caibros, vigas e tábuas que dariam acolhida ao novo morador. Nas margens do lago o inusitado ermitão pretendia “viver em profundidade e sugar toda a medula da vida” num modo de subsistência, contemplação e vida no seio da natureza. Representante vívido de um movimento filosófico cuja proposta essencial tratava da simplicidade voluntária, da desobediência civil e da resistência pacífica, motores intelectuais que inspiraram Gandhi1 e os hippies, Thoreau era um homem que acreditava que os monoteísmos promovem um corte do homem com a natureza, levando-o a destruir seu lar, por causa de promessas paradisíacas e redenção de pecados, entre os quais o desrespeito à natureza. Homem de formação clássica, tendo exercido o magistério, seguiu carreira de escritor e conferencista, sempre ocupado em delatar o vazio da vida nas sociedades dominadas pelas religiões e pelo belicismo, particularmente a americana. O “rebelde de Concord”, escreveu Walden, ou a vida nos bosques como um inventário dessa experiência, bem como um libelo contra o consumismo – crítica que torna-se cada vez mais atual. Como um profeta inspirado pela deusa natureza, centrou sua atenção em listar as necessidades básicas do homem, demonstrando que o mercado (na época ele falava em civilização) as distorce e inventa outras supérfluas que levam o sujeito a uma liturgia do consumo, perversa e auto-replicante. Sua obra se tornou a cartilha, ainda atual, de uma labuta contra o excesso de bens que empobrecem o homem e enfraquecem seu caráter.


Walden Two

A experiência de Henry David Thoreau tocou vivamente uma outra pessoa, dessa vez um psicólogo americano, que escreveu uma utopia educacional chamada Walden II2, usando sua teoria psicológica behaviorista para construir uma comunidade com alguns dos princípios escritos por Thoreau. Se na primeira obra foi descrita a experiência solitária de um romântico transcendentalista, junto à natureza, a segunda obra se tratava de uma ficção onde Burrhus Frederick Skinner propõe um modo de vida com os mesmos propósitos, sem palavras de ordem religiosas, para uma nova sociedade. Em Thoreau temos o homem solitário, heróico, apegado à verdade como guia da consciência moral; em Skinner, a sociedade comunal em que cada indivíduo vive uma partilha das experiências pessoais, no intento de engrandecer-se individualmente e como ser social. O princípio geral está na crítica à insânia da vida metropolitana e a eleição corajosa de uma vida simples, sem o consumo aleatório e sem a tensão da megacidade.

Serra do Cervo – Sul de Minas – Walden três?

Em meados de 1984, trabalhando para a Global Editora como desenhista e capista de livros, tive que ler algo da obra de Thoreau3, recém traduzida, para criar sua capa, o logotipo da coleção Armazém do Tempo e a arte final, escolhendo as fontes que mais se adequariam à atmosfera da obra. Tudo que fiz foi aprovado, menos a ilustração de capa, o que foi uma sorte! Na intenção de propor uma outra ilustração me vi na contingência de lê-la por inteiro. Fiquei vivamente tocado pelo que li; encontrei-me retratado lá, pelo menos em algumas convicções. O que ia “ouvindo” do autor me era estranhamente familiar – desde minhas experiências como escoteiro pela orla silvestre do norte do Paraná, aprendendo meios de sobrevivência em ambiente selvagem, até a experiência de maneabilidade física por meio de extenuantes exercícios de combate na Serra do Mar, como soldado do regimento de cavalaria mecanizada de São Paulo. A idéia se resumia, como combatente, em conseguir sobreviver o melhor possível em condições precárias de terreno e de condições climáticas; como escoteiro, a idéia era viver de modo consideravelmente confortável no meio silvestre, transformando as precariedades do lugar em uma moradia. Mas o gosto inicial pelos bosques vinha de uma infância entre matas, rios e lagos, nos arredores de Apucarana e dos passeios com a “madrinha” Pina4 até as terras dos meus tios-avós em Pirapó. Filho e neto de mineiros, fortuitamente nascido paranaense, assim que pude, mais exatamente em 1994, adquiri uma extensão da Serra do Cervo, para lá instalar um centro existencial5, onde pudesse viver segundo as premissas de Thoreau, bem como fazer funcionar um centro de difusão de intervenções psicológicas, acessível ao interessado em geral. Os bosques da Serra do Cervo são a invenção de duas pessoas, como foi o Ashram; Vania e eu. Para isso, unimos três paixões que tornaram nosso walden habitável: o amor de esposos, o respeito à natureza e a paixão pelo trabalho existencial com nossos alunos, pacientes e clientes. Neste blog trataremos do cotidiano que borda nossa existência nos Bosques da Serra do Cervo.

16/05/09 - A serra do Cervo amanheceu brilhante, lambida pelos primeiros raios de sol, cálidos e insistentes; logo aqueceu ao ponto de tornar-se coberta de espessa neblina, que se estendeu até o meio da manhã. Levantei cedo e depois de um suco de laranja, fiz os alongamentos usuais, desci pela orla do cafezal coberto de grãos rubiáceos e tomei a estrada que vai até o alto da serra. Costumo correr primeiro subindo-a para que possa ter forças para descer, quando o peso do corpo ajuda a “rolar” de volta. Na ida passei por uma cascavel morta; sua travessia do asfalto terminou tragicamente. Isso me remeteu à lembrança do encontro que tivemos a três dias com uma jararaca tomando sol sobre a brachiária exatamente onde Vania ia roçar. Era a maior entre todas as que vimos até hoje; fora a adrenalina de assusta-la de volta para sua toca, nosso humor de sempre nos fez chama-la de “a mãe de todas”. Com estes pensamentos voltei para casa. Ao chegar, dois jacus, que migraram para aqui depois de nossa chegada e da plantação de pomares e árvores, desceram no abacateiro a quatro metros da porta de casa. Foi tocante ver que aquele casal estava investigando um bom local para sua morada perto das frutas que destinamos a eles. “Que façam um ninho bem perto de nós”, pensei. Preparei a roçadeira e subimos o pomar que se espalha numa encosta não muito, mas suficientemente íngreme, para tirar o fôlego, tal como fora correr serra acima. Ao roçar, fomos juntando o capim no entorno das fruteiras – começando pelas mexeriqueiras e laranjeiras. Talvez ainda hoje voltemos a roçar e cheguemos até o jamelão e os abacateiros... Trabalho pesado; suor a ensopar a roupa; mas resultado muito prazeroso... As laranjas amadurecem e está na hora dos cuidados de inverno para que dêem frutos pelo inverno e parte do verão.
Para descansar do trabalho na terra e dos afazeres domésticos, leremos. Acabei de ler o Tratado de ateologia, algumas críticas literárias de Sartre, um capítulo sobre memória e história, da Onice; Ontem iniciei o Tratado da eficácia; conversei com Onice sobre meu texto, que tem o Teatro Municipal de Pouso Alegre como corpus. Vania acabou de ler Leite derramado e vai começar o Tratado de ateologia.
Amanhã, domingo, viajaremos a Monte Santo de Minas para buscar nossas roupas, ferramentas de lavoura etc. que ficaram no sítio acabamos de reformar para vender. Serão 230 quilômetros de ida. Deixaremos o Soneca Golden Boss, o Rabicho Bicho, a Kely Lulú e a Gabi Blue cuidando dos bosques até depois de amanhã.



1 Muitas obras falaram da saga gandhiana; desnecessário marcá-las aqui.
2 Walden II, uma sociedade do futuro (E.P.U. 1978). Li o livro na primavera de 1979; Skinner o publicou em 1948.
3 Walden, ou a vida nos bosques de Henry David Thoreau. A versão que fiz a arte gráfica foi da 1ª edição, de 1984, Editora Global.
4 Era minha avó materna, Josefina Colauto, depois da Luz, que queria ser chamada por “madrinha”, para não parecer, segundo me lembro, mais idosa do que era de fato. Espero não estar manchando sua memória, contando esta intimidade.
5 Esse centro vivencial é a versão rural do Ashram – Centro de Estudos da Medicina, Arte e Filosofia da Índia Antiga, que funcionou em São Paulo entre os anos de 1990 e 2002. Hoje, aqueles estudos se ampliaram com a aplicação do conhecimento cura sui dos filósofos gregos e das técnicas de si indianas, trabalho que acabei publicando em livro (Energia vital, Ed. Roka, 1999).

2 comentários:

FREUD - GRUPO DE ESTUDOS

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